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112 – CIENCIAS SOCIAIS

MÓDULO 1

PDF GUIA DE ESTUDO DA DISCIPLINA

A SOCIOLOGIA PODE SER ÚTIL AO CRISTÃO?

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olá, caro(a) estudante. Seja bem-vindo(a) à disciplina de Sociologia.

A questão levantada no título deste módulo é legítima. Afinal de contas,

o estudante de Teologia pode se perguntar qual a razão de uma disciplina

de Sociologia no currículo do curso. A minha resposta tem por base quase

duas décadas de experiência no ensino de Sociologia em cursos de Teo-

logia e mais de duas décadas de experiência pastoral. A Sociologia é de

grande utilidade para teólogos e pastores. Portanto, neste primeiro módulo

nossos objetivos são levá-lo(a) a: 1) saber a utilidade e a importância de

se estudar Sociologia no curso de Teologia; 2) perceber as relações entre

grandes transformações sociais e o nascimento da Sociologia; 3) com-

preender as relações entre indivíduo e sociedade; 4) saber quem são os

autores considerados clássicos no estudo da Sociologia e como viam a

sociedade em seu contexto.

Mãos à obra. Bons estudos pra você!

  1. UTILIDADE E IMPORTÂNCIA DA SOCIOLOGIA

Quero destacar pelo menos cinco motivos pelos quais o estudo da Socio-

logia se faz útil e importante para todos nós, cristãos e estudantes de Teologia.

Em primeiro lugar, a Sociologia é útil porque oferece compreensão his-

tórica da formação das sociedades modernas. A organização da socieda-

de tal qual a conhecemos hoje é produto de transformações que têm sido

estudadas e explicadas pela Sociologia. Como veremos adiante, a Socio-

logia nasceu justamente no período das grandes transformações econô-

micas, políticas e culturais, entretanto não se dedica apenas à explicação

das mudanças históricas que deram origem às sociedades modernas; se

fosse assim, seria mais um dos ramos da História. A Sociologia dedica-se

também à compreensão e à explicação das mudanças sociais experimen-

tadas no presente. Portanto, todo cristão empenhado em proclamar a Pa-

lavra de Deus com relevância e conexão com as questões de seu tempo

encontrará na Sociologia uma ferramenta valiosa para seu trabalho.

Em segundo lugar, a Sociologia é especialmente útil aos cristãos por

sua ênfase no estudo das relações que as pessoas mantêm umas com

as outras. A fé cristã, por sua vez, atribui grande importância aos relacio-

namentos humanos. O amor a Deus é inseparável do amor ao próximo,

portanto o cristão tem por hábito a reflexão sobre o tipo de relacionamento

que mantém com as pessoas. A própria Igreja é uma experiência de vida

comunitária marcada pelo relacionamento entre seus membros. A natu-

reza comunitária das religiões, em geral, e do cristianismo, em particular,

não passou despercebida pelos primeiros sociólogos. A Sociologia da Re-

ligião é um dos ramos mais antigos da Sociologia e dedica-se de modo

especial à compreensão dos fenômenos religiosos.

Em terceiro lugar, a Sociologia é útil para compreensão das relações

entre as Igrejas e a sociedade. Igrejas são instituições sociais e, como tais,

estabelecem relações com outras instituições sociais. Escolas, hospitais e

creches são instituições tradicionalmente nascidas no âmbito das Igrejas

cristãs para responder a problemas sociais de cada época e contexto. Mas

Igrejas também são instadas a se pronunciar sobre temas políticos e sobre

costumes em determinados contextos. Tudo isso nos faz lembrar a dimen-

são pública da fé cristã. Igrejas não existem num vazio social, mas estão

situadas no tempo e no espaço e em relação constante com a sociedade

e suas instituições e problemas.

Em quarto lugar, a Sociologia é útil aos cristãos na busca pelo avanço da

justiça na sociedade. A busca pela justiça é um imperativo bíblico, presente

desde a lei mosaica até a revelação de Deus em Cristo. A preocupação

com pessoas em situação de maior vulnerabilidade social e econômica, tais

como crianças, pobres, viúvas, trabalhadores etc., é uma das faces mais

bonitas do testemunho das Igrejas cristãs ao longo dos séculos. Por outro lado, o apoio à escravidão e à discriminação está entre os momentos mais

sombrios da história das Igrejas cristãs. Amplos estudos de Sociologia so-

bre trabalho, grupos marginalizados, família, ideologia e mudanças sociais

constituem-se importante ferramenta para que cristãos possam discernir os

valores envolvidos em cada disputa social e possam assumir posicionamen-

tos que estejam alinhados aos princípios bíblicos do Reino de Deus.

Em quinto lugar, a Sociologia é uma ferramenta importante para a

plantação de novas Igrejas e para a revitalização de Igrejas enfraquecidas.

Tanto a leitura de dados demográficos (densidade populacional, idade,

renda, escolaridade etc.) quanto as pesquisas qualitativas a respeito da

cultura e do estilo de vida em determinada cidade e/ou bairro são instru-

mentos básicos do trabalho sociológico que podem ser de grande ajuda

para a plantação de novas Igrejas e para revitalização de Igrejas debilita-

das. Apenas a título de ilustração, recordo que estudos sociológicos têm

mostrado que períodos de crises sociais tornam as pessoas mais recep-

tivas à conversão; dentre as várias razões, a desorganização dos laços

sociais antigos facilita, por exemplo, a aceitação de um convite para visitar

uma Igreja e a disposição para considerar uma nova mensagem.

Espero que as considerações acima o(a) animem a percorrer as pági-

nas que virão a seguir. É possível, num primeiro momento, que os concei-

tos sociológicos pareçam abstratos demais ou ainda muito óbvios. Tenha

paciência e siga adiante em seus estudos. A Sociologia requer um exer-

cício de distanciamento ao qual se chega aos poucos. É mais ou menos

como ajustar o foco de uma lente. Pode demorar um pouco, mas ao final a

visão será mais nítida e colorida.

 

para pensar

A SOCIOLOGIA SERVE PARA QUÊ?

A Sociologia não é uma ação e sim uma tentativa de

compreensão. É evidente que essa compreensão pode ser

de utilidade para quem age. Nada, porém, existe de inerente

à atividade sociológica de tentar compreender a sociedade

que leve necessariamente à ação. O conhecimento

sociológico pode ser recomendado aos assistentes sociais,

mas também a vendedores, enfermeiras, evangelistas

e políticos – na verdade, a qualquer pessoa cujas metas

obriguem ao trato com seres humanos (Berger, 2002, p. 13).

  1. O NASCIMENTO DA SOCIOLOGIA

A Sociologia busca compreender e explicar as conexões entre o indiví-

duo e o contexto social. Os primeiros esforços intelectuais nessa direção

apareceram no século XIX e foram consolidados no século XX com a in-

corporação da Sociologia dentro do quadro de disciplinas acadêmicas das

universidades modernas. A questão que se pode formular é a seguinte:

enquanto a Filosofia conta com milênios de existência, por que a Sociolo-

gia apareceu tão recentemente no rol das ciências humanas? A resposta

para esta questão exige que se faça breve incursão pela História.

A sociedade urbana e industrial que se conhece hoje é o resultado

de transformações sociais ocorridas na Europa. Trata-se de um processo

que marcou a transição de um mundo agrário, baseado numa economia

de subsistência, para uma economia capitalista industrial. Esse processo

pode ser dividido em três dimensões distintas, porém intimamente entre-

laçadas. A primeira grande dimensão é a transformação econômica. A

economia pré-capitalista era fundamentada no cultivo da terra e dividia a

sociedade em duas grandes classes sociais: camponeses e senhores feu-

dais. Nessa sociedade a mobilidade social era quase inexistente. O lugar

de uma pessoa na sociedade já estava determinado pelo seu nascimento.

Entre esses dois grupos, desenvolveu-se a camada dos comerciantes e

artesãos livres. O lugar de habitação desse novo seguimento já não era a

propriedade rural, mas os pequenos vilarejos. Assim, comerciantes e ar-

tesãos darão origem às primeiras manufaturas, uma espécie de indústria

embrionária, uma vez que haverá aumento da produção e especialização

e divisão do trabalho. A fisionomia da sociedade foi sendo alterada gradu-

almente pela transformação econômica, pois duas novas classes sociais

surgiram: trabalhadores assalariados e proprietários de fábricas, conhe-

cidos como burgueses. A fonte principal da riqueza já não está mais na

terra, mas na propriedade de fábricas. A esta altura é possível visualizar a

imagem clássica do mundo moderno: a cidade e suas fábricas.

A segunda grande dimensão é a transformação política. A antiga no-

breza feudal começa a perder espaço, e as novas formas de representação

política, lideradas pelas novas classes sociais, principalmente pela burgue-

sia, ocupam o espaço político. Nascem assim os parlamentos modernos,

com as noções de governo representativo da vontade da população. A ideia

predominante passa a ser a de que os representantes devem ser eleitos

pelo voto dos cidadãos e o Estado (Governo) precisa obedecer a consti-

tuição política do país. É o que se chama hoje de Estado de Direito. Ainda

dentro da dimensão política, foi introduzida a ideia de separação entre Igreja

e Estado.A Europa havia experimentado as Guerras de Religião, e a fórmula

encontrada era que o Estado protegeria a liberdade religiosa dos cidadãos,

mas não perseguiria ninguém por conta de suas escolhas religiosas.

A terceira grande dimensão é a transformação científico-cultural. A

passagem da manufatura para a indústria moderna seria impossível sem a

aplicação do conhecimento científico ao modo de se produzir mercadorias.

O tear manual é substituído pelo tear mecânico e a máquina a vapor aden-

tra o espaço das fábricas. Um único trabalhador operando uma máquina

produzirá o equivalente ao que antes era produzido por uma centena de

trabalhadores. A mudança científica se faz acompanhar de mudança cultu-

ral importantíssima: a ideia de progresso. Firma-se a noção de que a vida

é regida por leis que podem ser conhecidas mediante a observação. Além

disso, o conhecimento deve levar à melhora das condições de vida. As jus-

tificativas tradicionais para a manutenção da vida social já não são aceitas.

Sob o ponto de vista cultural, a grande síntese da transformação pode ser

encontrada no texto clássico do filósofo Emanuel Kant, intitulado “O que é

o iluminismo?”, escrito em 1783. Nele, Kant defende que ninguém deve se

submeter a qualquer autoridade externa sem que antes tenha sido persua-

dido pela sua própria razão (consciência) a fazê-lo. Diante das imposições

e dos costumes, ensinava Kant, era fundamental ousar, questionar e inter-

rogar antes de obedecer irrefletidamente.

Os processos descritos acima abrangem um longo período de tempo,

cerca de três séculos, e uma grande extensão geográfica, a Europa e os

Estados Unidos. A sua complexidade fica evidente se observamos, por

exemplo, que a Revolução Industrial se dará na segunda metade do sé-

culo XVIII na Inglaterra, nas primeiras décadas do século XIX na França

e nos Estados Unidos e somente na segunda metade do século XIX na

Alemanha. De modo lento, foi emergindo, a partir da Europa, um estilo de

vida econômico e político que se espalhará por todo o globo nos séculos

seguintes, e a compreensão e a explicação dessas transformações sociais

serão o grande desafio da Sociologia.

 

para pensar

O SURGIMENTO DA MODERNIDADE

As três grandes transformações mencionadas acima

(econômica, política e científico-cultural) deram origem ao que

se conhece como Modernidade, ou seja, um estilo de vida

acompanhado de um conjunto de organizações sociais surgidas

na Europa, que posteriormente se espalharam pelo planeta.

2.1. Indivíduo e sociedade

A Sociologia busca compreender e explicar as conexões entre o indiví-

duo e o contexto social. O trabalho do sociólogo é feito em duas vias prin-

cipais, sendo a primeira a análise da influência do contexto social sobre o

indivíduo e a segunda, a análise da ação do indivíduo sobre o contexto so-

cial de seu tempo. É fato que o processo de se tornar membro da socieda-

de implica assimilação de amplo conjunto de regras sociais denominadas

como cultura. Eis alguns exemplos: idioma, parentesco, alimentação, ca-

samento, religião, trabalho etc.O aprendizado do idioma pátrio é excelente

para a compreensão da dinâmica de mão dupla. A criança, ao aprender

as primeiras palavras e frases na língua materna, sofre a ação direta da

sociedade, uma vez que o idioma já estava pronto antes que ela começas-

se a balbuciar as primeiras sentenças. Por outro lado, algumas horas ao

lado de adolescentes serão suficientes para revelar ao sociólogo a ação

humana sobre o idioma. Gírias, abreviações, regras gramaticais que caem

em desuso e novo sentido conferido a determinadas palavras demonstram

que os indivíduos modificam o seu idioma. Obviamente que as modifica-

ções linguísticas também são realizadas por outros grupos sociais, tais

como migrantes, grupos urbanos reunidos por afinidades, associações

profissionais, cultura de massa etc. Algumas mudanças permanecerão

num grupo restrito, outras resistirão ao tempo, espalhar-se-ão por toda a

sociedade e virão a ser aprendidas por crianças no futuro.

A principal contribuição da Sociologia, ao longo dos dois últimos sécu-

los, foi a percepção da interdependência entre indivíduo e sociedade, entre

pessoa e comunidade, entre ação humana e estrutura social. Na perspectiva

sociológica, seres humanos são moldados pela sociedade, mas não são

completamente passivos nesse processo. Por outro lado, a sociedade é mol-

dada pela ação dos indivíduos, porém, na missão que se impõem de moldar

a sociedade de acordo com seus projetos, os indivíduos são menos livres

do que imaginam ou desejam. Na famosa frase de Karl Marx: “os homens

fazem a sua história, porém, não a fazem como querem, mas a partir das condições herdadas do passado” (Marx, 1974, p. 335).

As três grandes dimensões (econômica, política e científico-cultural)

mencionadas no item anterior formam o contexto social de vida dos in-

divíduos modernos. As dimensões, a um só tempo, tanto são produto da

ação dos seres humanos quanto produzem determinado tipo de seres hu-

manos. Imaginemos, por exemplo, o impacto que essas três dimensões

sociais têm sobre a vida da família. A dimensão econômica realizou a se-

paração entre casa e trabalho. Antes da Revolução Industrial, os homens

moravam e trabalhavam num mesmo lugar. A necessidade de mão de obra

introduziu também as mulheres no ambiente do trabalho, retirando-as do

trabalho exclusivamente doméstico. O modo de se constituir uma família

alterou-se também. Os casamentos arranjados e que seguiam regras ri-

gorosas de “quem poderia casar com quem” foram substituídos pela livre

escolha dos jovens mergulhados no contexto das grandes cidades. Do

casamento feito perante a Igreja, passou-se ao casamento realizado pelo

Estado. Isto não teria se dado sem a transformação da dimensão política.

E o que dizer das transformações trazidas pela dimensão científico-cul-

tural? O casamento deixou de ser concebido como contrato entre duas

famílias e passou a ser entendido como contrato afetivo entre dois indiví-

duos. A sua finalidade principal já não é mais a procriação de filhos, mas o

suprimento das necessidades afetivas dos cônjuges. Graças ao progresso

científico, o controle de natalidade instalou-se definitivamente e o tamanho

médio das famílias foi reduzido drasticamente. Assim, a vida em família

parece-nos um bom exemplo para ilustrar como as três dimensões se en-

trelaçam concretamente na vida das pessoas.

2.2. Compreender, explicar e predizer

As transformações econômicas, políticas e científico-culturais dos sé-

culos XIX e XX fizeram surgir um mundo novo e com ele brotaram novas

questões. Uma das principais interrogações levantadas pelo pensamento

sociológico diz respeito à natureza da sociedade urbano-industrial: ela é cooperativa ou conflitiva? O que os primeiros teóricos estavam se pergun-

tando era se os problemas sociais eram passageiros e deviam-se à adap-

tação dos seres humanos ao novo modo de vida ou se eram permanentes

e pertenciam, portanto, estruturalmente, ao novo modo de organização da

vida moderna.

O que diferencia propriamente a Sociologia do pensamento social que

a antecedeu é o seu esforço para compreender e explicar a sociedade tal

como ela se apresentava a partir da segunda metade do século XVIII. A

constatação sociológica é que as transformações econômicas, políticas

e científico-culturais modificaram a estrutura das cidades, as relações de

trabalho e a composição das famílias, dentre muitas outras mudanças.

As cidades incharam rapidamente com a chegada de milhares de cam-

poneses em busca de trabalho. Londres, no século XVIII, viu-se cheia de

cortiços e assolada por pestes e doenças provenientes da ausência de

condições sanitárias adequadas. O excesso de mão de obra disponível

propiciava o pagamento de salários baixos, jornadas de trabalho de até

dezoito horas e a exploração de crianças e mulheres nas fábricas. A de-

sestruturação urbana fez explodir a criminalidade. As relações de trabalho

não eram mais mediadas pela tradição das corporações e o trabalhador

não era mais proprietário de seus meios de produção (técnicas, ferramen-

tas e materiais). A nova classe capitalista era proprietária dos meios de

produção. A força de trabalho era comprada mediante o pagamento de

um salário, em geral, insuficiente para a manutenção do trabalhador em

condições dignas. A economia de subsistência cedeu lugar à economia

baseada na produção e no consumo de mercadorias.

Sob muitos aspectos este novo mundo era melhor do que o anterior.

Havia maior liberdade, mais riquezas e bens e possibilidades de ascen-

são social. Porém, a Sociologia muito cedo percebeu que o progresso não

era acessível para a maior parte da população. As questões levantadas

pelos diferentes teóricos caminharam na seguinte direção: por que vas-

tos contingentes não eram assimilados na sociedade urbano-industrial?

A responsabilidade pela não integração era dos indivíduos ou do sistema

capitalista? Tratava-se de um efeito passageiro no desenvolvimento capi-

talista ou era algo da estrutura do próprio sistema capitalista? Qual era a

direção do desenvolvimento da sociedade moderna?

O esforço teórico empreendido pela Sociologia foi sempre na direção

de responder as questões levantadas acima. Alguns sociólogos enfatizarão

mais a compreensão e a explicação, outros, a partir da compreensão, ar-

riscar-se-ão um pouco mais nas apostas quanto aos rumos da sociedade.

Outro ponto importante nas respostas reside na pluralidade teórica. Uma

corrente sociológica assumirá o conflito como parte da própria estrutura

da sociedade capitalista moderna. Em geral, os sociólogos ligados à pers-

pectiva conflitiva pertencem ao ramo marxista da Sociologia. A exceção

é a corrente weberiana, que também acentua o conflito, mas enxerga-o

de modo diferente da perspectiva marxista. A corrente teórica conhecida

como funcionalista (ou positivista) acentuará a natureza cooperativa da

sociedade urbano-industrial e seu poder de integração.

  1. OS SOCIÓLOGOS CLÁSSICOS E SUAS PREOCUPAÇÕES

Neste primeiro módulo, iniciaremos com os chamados sociólogos clás-

sicos (Emile Durkheim, Karl Marx e Max Weber) para que possamos, no

módulo seguinte, analisar algumas das principais perspectivas dos soció-

logos contemporâneos.

3.1. Emile Durkheim

O primeiro sociólogo clássico é Emile Durkheim (1858-1917). Ele era

proveniente de família religiosa e seu pai era um respeitado rabino francês.

A formação original de Durkheim era a Filosofia, mas seu interesse em

temas sociais fez dele um dos fundadores da Sociologia em sua versão

acadêmica. Além disso, ele foi o responsável pela introdução da disciplina na prestigiada Universidade de Sorbonne, em Paris.

No Brasil é comum que cursos introdutórios de Sociologia vinculem o

nome de Durkheim ao pensamento conservador. Porém, não obstante as

críticas que se possa fazer aos seus estudos, ele é um grande pensador e

o responsável pela introdução de metodologia rigorosa para o estudo dos

fenômenos sociais. Durkheim compartilha alguns pressupostos do positi-

vismo do século XIX, mas os desdobramentos teóricos de sua perspectiva

sociológica fecundarão importantes pesquisas associadas ao funcionalismo.

Uma das preocupações centrais de Durkheim foi o estabelecimento do

objeto específico de estudo da Sociologia. Sua preocupação era demarcar

as diferenças entre temas e perspectivas dos assuntos estudados pela

Sociologia daqueles que eram estudados pela Biologia e pela Psicologia.

Segundo Durkheim cabia à Sociologia o estudo dos chamados fatos so-

ciais. Mas que eram eles? Vejamos o que escreve Durkheim:

Quando desempenho meu papel social de irmão, de esposo e

de cidadão, quando realizo os compromissos que tomei, cum-

pro deveres que estão definidos para além de mim e dos meus

atos, no direito e nos costumes. Mesmo quando eles estão de

acordo com os meus sentimentos próprios e sentindo-lhes inte-

riormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva, pois não

fui eu que os estabeleci, antes os recebi pela educação. Quan-

tas vezes acontece de ignorarmos o pormenor das obrigações

que nos incumbem e, para conhecê-las, termos de consultar o

Código e os seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, ao

nascer, os fiéis encontram já formadas as crenças e práticas

da sua vida religiosa; se existiam antes deles é porque existem

fora deles. O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir o

pensamento, o sistema monetário que emprego para pagar as

minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas mi-

nhas relações comerciais, as práticas seguidas na minha profis-

são etc., etc., funcionam independentemente do uso que delas

faço. Tomando a cada um dos membros de que a sociedade se compõe, pode repetir-se tudo o que foi dito a propósito de cada

um deles. São as maneiras de agir, de pensar e de sentir que

apresentam a notável propriedade de existir fora das consciên-

cias individuais (Durkheim, 2002, p.31-32).

Para Durkheim, os fatos sociais podem ser estudados objetivamente

porque possuem os seguintes atributos: a) anterioridade; b) exterioridade;

  1. c) coercitividade. Para entendimento dessas três características dos fatos

sociais tomemos, por exemplo, o papel social de pai. As obrigações sociais

da paternidade estão determinadas na cultura. Espera-se que o pai proteja

seus filhos e seja o provedor de suas necessidades básicas. Um pai que

não atenda estas expectativas será considerado mau pai. Porém, depen-

dendo do grau de seu desvio do padrão cultural, leis poderão ser invocadas

(pensão alimentícia, por exemplo) para enquadrá-lo em suas obrigações. As

normas culturais e as leis a respeito da paternidade são anteriores à própria

paternidade, ou seja, o pai já as encontrou prontas. Além de sua anteriorida-

de, elas são também exteriores a ele. Isto significa que não existem apenas

na sua mente, estão inscritas nos costumes sociais e também nos códigos

de normas e leis que regulam a vida familiar. Tais normas e costumes são

dotados de um poder de imposição (coercitividade), o que significa que o

seu não cumprimento poder ir da simples reprovação social até a reclusão

prisional, dependendo é claro do grau da infração.

Durkheim viveu na passagem do século XIX para o século XX, num

período em que as grandes transformações sociais (econômica, política

e científico-cultural) ainda eram sentidas de modo intenso. Formas tra-

dicionais de organização social estavam sendo desfeitas e os novos for-

matos ainda não estavam claros. A grande preocupação de Durkheim é

com a coesão social. Em busca da compreensão dos mecanismos que a

sustentam ele desenvolveu o importante conceito de consciência coletiva.

O conjunto de normas e crenças que orientam a maioria das pessoas

numa determinada sociedade forma a chamada consciência coletiva. As pessoas passam, mas a consciência coletiva sobrevive, sendo transmitida

entre as gerações. Embora para existir ela precise da consciência particu-

lar dos indivíduos, a consciência coletiva é algo completamente diferente

da consciência particular das pessoas. Na visão de Durkheim, o retrato de

uma sociedade pode ser feito somente a partir da consciência coletiva. Ela

seria a personalidade de cada sociedade.

Em sociedades rurais era possível perceber a homogeneidade da

consciência coletiva – todos aceitam as mesmas normas e sanções.

Entretanto, na sociedade urbano-industrial a consciência coletiva estava

fragmentada, uma vez que tais sociedades eram marcadas pela hetero-

geneidade. A questão central de Durkheim é: como reconstruir a coesão

social? Como fazer a consciência coletiva funcionar numa sociedade urba-

no-industrial? A resposta encontrada por ele caminha na direção da cha-

mada solidariedade orgânica, ou seja, os indivíduos precisam descobrir

sua função na sociedade, e tal função é descoberta por meio do trabalho.

A divisão social do trabalho, na visão dele, longe de produzir alienação

nos trabalhadores, seria a responsável pela formação de um novo tipo de

coesão social. As fábricas modernas, ao colocarem os trabalhadores lado

a lado numa linha de produção, estavam produzindo interação social e

retirando os indivíduos de seu isolamento social.

3.2. Karl Marx

O segundo sociólogo clássico é Karl Marx (1818-1883). Ele não foi um

sociólogo no sentido técnico do termo. Vimos acima que Durkheim, que

viveu depois de Marx, foi o criador da Sociologia enquanto disciplina aca-

dêmica. Embora Marx não seja um sociólogo, seu pensamento e pesquisa

deram origem a um ramo teórico da Sociologia.

Assim como Durkheim, os pais de Marx eram de origem judaica, po-

rém eram alemães. Eles propiciaram a Marx formação cultural sofisticada

que culminou no doutorado em Filosofia, obtido na Universidade de Ber-

lim. Embora tenha conquistado sólida reputação como erudito, a vida pes-soal e profissional de Marx sempre foi muito atribulada. Em conflito com

o governo alemão, precisou refugiar-se na França e, posteriormente, na

Bélgica. Seu sustento financeiro era proveniente da produção de artigos

para jornais norte-americanos e da ajuda que lhe oferecia, em tempos de

penúria, seu parceiro intelectual Friedrich Engels.

O pensamento de Marx recebeu influência de quatro fontes distintas. A

primeira foi a filosofia alemã, sendo sua dívida teórica para com o filósofo

  1. Hegel reconhecida por ele mesmo. As noções desenvolvidas na dialética

hegeliana – a saber, que a história é feita pelo movimento, pela contradi-

ção e pela totalidade – estão presentes no pensamento de Marx. Todavia,

é preciso registrar que Marx inverteu os sinais: não é o mundo das ideias

que governa a história, mas são os interesses materiais que determinam

as ideias históricas e o próprio sentido da história. A segunda fonte de

inspiração do pensamento marxista é o socialismo francês com as noções

de igualdade e fraternidade. A terceira é a economia política inglesa. O

Capital, obra principal de Marx, lança mão de todos os instrumentos clás-

sicos desenvolvidos pelos economistas ingleses para medição do desen-

volvimento econômico das nações capitalistas. Por fim, a quarta fonte de

influência na obra de Marx é sua participação no movimento operário do

século XIX. Marx era um panfletário de porta de fábrica e não apenas um

estudioso de gabinete.

Em que consiste o pensamento de Marx a respeito da sociedade ca-

pitalista? Valendo-se das relações entre aparência e essência, tal qual

desenvolvidas pela dialética, Marx partiu do elemento mais visível numa

sociedade capitalista, a saber, a mercadoria, para chegar àquilo que ela

esconde – o trabalho. Assim, da análise da mercadoria, chegou à essên-

cia do sistema capitalista que, segundo ele, seria o trabalho explorado.

O conceito de fetichismo foi utilizado para explicar o poder mágico que o

capitalismo aparenta ter ao exibir uma mercadoria numa vitrine. A merca-

doria “parece” ter chegado até a vitrine por si só, todavia, o que ela oculta

é justamente uma cadeia de relações sociais de trabalho que tornaram possível sua existência. Porém, tais relações de trabalho são marcadas

pela exploração dos trabalhadores por meio do pagamento de salários,

que são sempre muito inferiores ao valor gerado pelo trabalho deles. A

isso somam-se as condições precárias nas quais o trabalho é realizado e

a ausência de direitos e proteções ao trabalhador. A esse processo Marx

deu o nome técnico de mais-valia.

Marx dedicou grande esforço para examinar historicamente como se deu

o processo de transição da economia feudal para a economia capitalista.Em

lugar algum de sua vasta obra ele lamentou a existência da sociedade ca-

pitalista. Na verdade, em algumas passagens, expressa grande admiração

pelo que chama de revolução burguesa. Na obra Manifesto Comunista, por

exemplo, ele afirma que o capitalismo “criou forças produtivas mais numero-

sas e mais colossais que todas as gerações passadas em conjunto” (Engels;

Marx, 1988, p. 74). O que ele criticava então no capitalismo? Sua crítica era

dirigida ao caráter conservador da burguesia capitalista. Ele argumentava

que os burgueses, enquanto classe, haviam agido de modo revolucionário

para colocar fim ao regime feudal. Porém, uma vez feita a revolução bur-

guesa, eles julgavam que a história havia chegado ao seu fim. É justamente

neste ponto que entra em cena a filosofia da história contida no pensamento

de Marx. Segundo o marxismo, a luta de classes é o motor da história, o

que significa dizer que mudanças econômicas e políticas significativas só

ocorrem por meio do conflito entre classes sociais antagônicas. Para ele, o

que caracteriza a sociedade capitalista é a oposição de duas classes: bur-

gueses, que são os detentores dos meios de produção (dinheiro, técnicas,

ferramentas e materiais), e trabalhadores, que são os detentores da força

de trabalho. Na análise marxista, o desenvolvimento da sociedade capita-

lista conduzia ao aumento da classe trabalhadora, acompanhada de sua

crescente exploração. Paralelamente a isso, a riqueza concentrava-se cada

vez mais nas mãos de poucas pessoas. Essa combinação de exploração

crescente e concentração também crescente da riqueza, aliada à conscien-

tização política dos trabalhadores, conduziria à revolução que derrubaria o sistema capitalista. Isto não significava que todas as desigualdades entre

indivíduos desapareceriam, mas que a sociedade não estaria mais dividida

pela oposição entre uma pequena classe que controlava toda a economia e

a vasta maioria que era explorada.

O pensamento marxista exerceu, até recentemente, influência sobre

mais de um terço da população mundial. A experiência histórica do socia-

lismo soviético e dos demais socialismos do século XX assemelharam-se

muito mais a um tipo de capitalismo de Estado, mantido debaixo de re-

gimes políticos autoritários e repressores das liberdades individuais, do

que a uma sociedade livre e sem classes, tal qual Marx havia imaginado.

Não obstante a isso, é preciso fazer justiça ao pensamento de Marx em

dois aspectos: a) A análise feita por ele dos mecanismos de exploração

do trabalho continua válida para os nossos dias. Por exemplo, produtos de

marcas famosas, expostos em vitrines das grandes lojas, ocultam, tantas

vezes, condições de trabalho que são análogas à escravidão. Enquanto

isso não for superado, o pensamento de Marx continuará tendo apelo e

relevância. b) Se a história do capitalismo não tomou o curso da revolu-

ção prevista por Marx, pelo menos nos principais países capitalistas do

Ocidente, foi porque reformas sociais e trabalhistas foram feitas. E não se

deve deixar de reconhecer que tais reformas foram realizadas por conta

das lutas empreendidas pelos trabalhadores na busca de seus direitos,

e o pensamento marxista em muito contribuiu para a conscientização de

trabalhadores e lideranças do mundo político.

 

PRA PENSAR

GLOBALIZAÇÃO EM 1847?

Em anos recentes tornou-se moda falar em globalização.

Veja como continua atual o texto de Marx e Engels escrito

em 1847: “Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo

em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela

retirou à indústria sua base nacional. As velhas indústrias

nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente.

São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se

toma uma questão vital para todas as nações civilizadas,

indústrias que não empregam mais matérias-primas

autóctones, mas sim matérias-primas vindas das regiões

mais distantes, e cujos produtos se consomem não somente

no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em

lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos

nacionais, nascem novas necessidades, que reclamam para

sua satisfação os produtos das regiões mais longínquas e

dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento

de regiões e nações que se bastavam a si próprias,

desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal

interdependência das nações. E isto se refere tanto à

produção material como à produção intelectual. As criações

intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum

de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-

se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas

nacionais e locais, nasce uma literatura universal (Engels;

Marx, 1988, p. 70)

3.3. Max Weber

O terceiro sociólogo clássico é Max Weber (1864-1920), filho de

uma família alemã bastante próspera no ramo têxtil. Na sua formação

recebeu muita influência religiosa de sua mãe, que era da Igreja Lu-

terana. Sua inclinação para a erudição revelou-se desde muito cedo; por exemplo, na adolescência, antes de fazer pública profissão de fé,

decidiu que primeiro deveria aprender hebraico a fim de ler o Antigo

Testamento no original.

Sua formação acadêmica foi realizada nas áreas de Direito e Econo-

mia, tendo obtido o doutorado em Direito pela Universidade Göttingen.

Sua carreira como professor universitário não foi longa, pois assumiu a

cátedra na Universidade de Friburgo em 1895, mas acabou renunciando

ao posto em 1903, em meio a uma severa crise depressiva.

O conceito de ação social é o ponto de partida da sociologia weberia-

  1. As grandes transformações sociais deveriam ser buscadas na motiva-

ção dos seres humanos para suas ações, portanto, no campo dos valores

e das crenças. MaxWeber toma como ponto de partida para compreensão

e explicação da vida social o sentido que os indivíduos atribuem às suas

ações e às relações sociais estabelecidas entre eles a partir dos propósitos

que têm em mente ao agirem desta ou daquela forma.Weber estabelece

basicamente quatro tipos de sentido (tipos ideais) para as ações humanas

(ações sociais). Vejamos:

para que os meios alcancem os fins estabelecidos racionalmente.

determinada pela crença consciente num determinado valor, que

pode ser religioso, ético ou estético. Neste caso pouco importa o

sucesso da ação, importa fazer aquilo que é certo de acordo com

a consciência.

afetos. É, em geral, a ação impulsiva.

teira do que se pode chamar de ação com sentido. Diz respeito à

boa parte das ações que são feitas simplesmente por costume e

de modo quase automático.

Marx acreditava que as grandes mudanças sociais eram causadas a par-

tir do conflito de classes.Weber sustenta ponto de vista diferente; para ele o

“motor” da história deveria ser buscado no sentido que as pessoas atribuíam

às ações que praticavam. É por essa trilha que ele chegará à sua famosa

tese a respeito da origem do capitalismo ocidental apresentada em “A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo”.Weber observa que existe grande

diferença entre o espírito do capitalismo moderno e a atitude capitalista tra-

dicional. Nesta última, o que interessa é sempre a busca do lucro e, nesse

sentido, a caricatura de um capitalista típico é a de um homem ganancioso

correndo atrás de mais dinheiro a qualquer custo. Porém,Weber demonstra

que o capitalismo moderno não se caracteriza apenas pela busca do lucro,

mas pela busca de um lucro sempre renovado, ou seja, obtido por meio de

ações racionalizadas. Não havia espaço na economia capitalista moderna

para ações guiadas por tradição ou emoção. Imagine uma empresa que

se recuse a fazer alterações em seus métodos de produção. Rapidamente

será vencida pela concorrência, portanto, no capitalismo não há lugar para

a ação tradicional. Imagine ainda uma empresa guiada pela ação afetiva ou

emocional. Diante do desejo das pessoas de adquirirem seus produtos, mas

da ausência de dinheiro para fazê-lo, o proprietário decide que irá distribuir

o que produz como presente para todos os que desejam seus produtos. A

falência chegará rapidamente.

No capitalismo moderno, constata Weber, só há espaço para ações

racionais, que podem ser de dois tipos: com relação a fins e com relação a

valores. Voltando à tese apresentada em “A Ética Protestante e o Espírito

do Capitalismo” encontramos a seguinte conclusão: os modernos capita-

listas não eram homens gananciosos que faziam do ganho de dinheiro a

meta final de suas vidas, antes, eram homens piedosos e, em geral, mem-

bros de igrejas protestantes. Qual seria a conexão entre o protestantismo

e o capitalismo? A conexão era exatamente a ética desses protestantes

capitalistas, que levavam uma vida marcada por trabalho duro, racionali-

zação de todos os gastos, moderação no consumo de bens e de lazer. O resultado era a prosperidade e o reinvestimento na expansão dos negó-

cios. Mas qual era a razão desse tipo de ética? A motivação para este tipo

de ação estava na crença de que as pessoas deveriam viver para a glória

de Deus, e o que Deus pedia delas era uma vida de trabalho racional. Na

perspectiva weberiana, a origem do moderno capitalismo encontra-se na

ação racional orientada para um valor, ou seja, a glória de Deus.

Duas observações importantes devem ser feitas a esta altura. A primeira

é o conceito de consequências não-previstas. Por meio deste conceito, We-

ber ensina que os protestantes não tinham em mente o desenvolvimento do

capitalismo. Eles pretendiam agradar a Deus fazendo aquilo que julgavam

ser a vontade divina para cada um. O desenvolvimento de fábricas e em-

presas modernas, assim como o aumento de capital, foi consequência do

estilo de vida adotado por eles, mas nunca o objetivo primeiro. A segunda

observação importante é seguinte: uma vez que o capitalismo se consolida

no mundo ocidental, ele já não precisa mais da motivação original (ação

racional com relação a valores) para continuar sua expansão. Na verdade,

a ação racional com relação a valores é substituída pela ação racional com

relação a fins. Neste caso, ganhar dinheiro tornou-se um fim em si mesmo.

Weber viu o futuro da sociedade capitalista como um crescente pro-

cesso rumo à burocratização e à racionalização de todas as áreas da vida

humana. Trata-se da aplicação de controles cada vez mais severos com

vistas à obtenção de lucros cada vez maiores. O resultado é uma socieda-

de com menos liberdade e menos sentido. De modo quase melancólico,

Weber escreverá nas páginas finais de “A Ética Protestante e o Espírito do

Capitalismo” que a burocratização e a racionalização determinam “de ma-

neira violenta o estilo de vida de todo o indivíduo nascido sob esse sistema

e, ao que parece, determinará até que a última tonelada de combustível

tiver sido gasta” (Weber, 1987, p.131).

3.4. Durkheim, Marx ou Weber têm razão?

Sob a perspectiva da Sociologia acadêmica, os três estão certos na lei-tura que fazem da emergência da sociedade capitalista industrial. O método

que cada um desses autores utiliza destaca aspectos diferentes da realida-

de social. O pesquisador que deseja investigar determinadas permanências

na vida social e o modo como as estruturas sociais exteriores tornam-se

parte da própria consciência dos indivíduos encontrará na metodologia de

Durkheim um campo fértil para sua análise. Entretanto, quem estiver interes-

sado em investigar os conflitos sociais e os processos de mudanças encon-

trará na perspectiva de Marx e na perspectiva deWeber ideias interessantes.

Sob a perspectiva marxista, receberão destaque as diferenças entre classes

sociais e o papel desempenhado pela economia nos conflitos e nas mu-

danças sociais. Na perspectiva weberiana, o destaque ficará por conta dos

agentes da mudança e dos valores que guiam suas ações.

Vale salientar ainda que cada um destes autores foi responsável pela

geração de escolas de pensamento nas Ciências Sociais, com inúmeros

desdobramentos teóricos. De Durkheim descende, por exemplo, o funcio-

nalismo. De Marx, toda uma linhagem de trabalhos de História, Economia,

Filosofia, Sociologia e Antropologia denominados de marxistas. Max We-

ber, por sua vez, deu origem à chamada sociologia compreensiva e ao in-

teracionismo simbólico. Além disso, o pensamento de cada um desses au-

tores clássicos está diretamente ligado ao desenvolvimento de conceitos

que se tornaram ferramentas básicas da Sociologia dos séculos XX e XXI.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

A esta altura você já deve estar percebendo como a nossa vida é inse-

parável do ambiente social. A vida do cristão e sua prática na Igreja tam-

bém são inseparáveis do contexto social. As nossas Igrejas estão em cida-

des que foram criadas a partir do modelo surgido na Europa. Construímos

a família e a carreira profissional sob o impacto das mudanças trazidas

pela sociedade urbana e industrial. Os problemas sociais que enfrentamos

 

UA1 –

Unidade de Aprendizagem 1

  1. Entendendo o surgimento, desenvolvimento

e utilidade das ciências sociais

OBJETIVOS

1 Apresentar o surgimento, desenvolvimento e a utilidade das ciências sociais

2 Distinguir ciências sociais e ciências naturais

3 Instigar o uso da reflexão teológica ao lado das ciências sociais e naturais para o

enfrentamento dos problemas coletivos

 

PARA INÍCIO DE CONVERSA

No uso cotidiano fala-se em “ciência”, quase sempre no singular, que significa então

falar em ciências sociais? Nessa unidade de aprendizagem você verá a diferença entre

ciências naturais, normalmente é a elas que nos referimos quando utilizamos a palavra

“ciência” e as ciências sociais. Ciências sociais e ciências naturais são diferentes quanto

aos aos objetos, métodos e resultados de estudos. Entretanto, isso não significa que não

possam ser parceiras na resolução de problemas sociais. Veremos como as ciências so-

ciais se desenvolveram e quais são os nomes ligados ao seu desenvolvimento e as ideias

que acompanharam sua constituição como ramo do conhecimento. Por fim, veremos como

a teologia pode dialogar com as ciências sociais tanto sendo enriquecida com o conheci-

mento produzido nessa área quanto oferecendo sua contribuição para os cientistas sociais

sobre a vida em sociedade.

Mãos à obra. Bons estudos pra você!

As ciências sociais são um ramo das ciências que estuda os aspectos sociais do mun-

do humano, ou seja, a vida social de indivíduos e a interação entre pessoas e grupos. Elas

surgiram na Europa do século XIX, como uma forma de compreender as transformações

sociais, políticas e econômicas que ocorriam na época, influenciadas pela Revolução Indus-

trial, pela Revolução Francesa e pelo Iluminismo.

 

O QUE FOI A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL?

A Revolução Industrial foi um processo histórico que ocorreu entre os

séculos XVIII e XIX, principalmente na Europa e na América do Norte, e que

transformou profundamente a economia, a sociedade, a política e a cultura

dessas regiões. A Revolução Industrial se caracterizou pelo surgimento

e pelo desenvolvimento da indústria moderna, baseada na utilização de

máquinas, de fontes de energia e de novas técnicas de produção.

As três fases da Revolução Industrial são: a primeira, entre 1760 e 1860,

marcada pelo uso do carvão, do ferro, da máquina a vapor e do sistema

fabril; a segunda, entre 1860 e 1914, marcada pelo uso do petróleo, do aço,

da eletricidade e do sistema fordista; e a terceira, a partir de 1950, marcada

pelo uso da informática, da robótica, da biotecnologia e do sistema toyotista.

A Revolução Industrial teve como principais consequências a aceleração do

crescimento econômico, a ampliação do mercado mundial, a concentração

da população nas cidades, a formação do proletariado, a emergência

dos movimentos sociais, a consolidação do capitalismo, a ascensão das

potências industriais, a intensificação da exploração colonial, a difusão da

cultura de massa e a degradação do meio ambiente.

Antes de avançar no desenvolvimento específico das ciências sociais algumas distin-

ções entre ciências sociais e ciências naturais devem feitas para melhor entendimento de

cada uma delas. As distinções dizem respeito ao objeto, método e finalidade de estudo.

O objeto das ciências sociais é a sociedade, ou seja, a vida social dos seres humanos,

em suas diversas dimensões, como cultural, política, econômica, histórica, etc. O objeto

das ciências naturais é a natureza, ou seja, o mundo físico e biológico, em seus diversos

fenômenos: físicos, químicos, biológicos, geológicos, astronômicos, etc.

As diferenças entre ciências sociais e ciências naturais alcançam também as questões

de método. O método das ciências sociais é o conjunto de procedimentos e técnicas que

visam produzir conhecimento sobre a realidade social, a partir da observação, da descri-

ção, da interpretação e da explicação dos fatos sociais. O método das ciências naturais é o

conjunto de procedimentos e técnicas que visam produzir conhecimento sobre a realidade

natural, a partir da observação, da experimentação, da mensuração e da formulação de leis

e teorias.

A finalidade das ciências sociais é compreender e transformar a sociedade, a partir da

análise crítica, da reflexão ética e da proposta de soluções para os problemas sociais. A

finalidade das ciências naturais é compreender e interagir com a natureza, a partir da apli-cação prática, da inovação tecnológica e do desenvolvimento científico.

Embora seja útil separar ciências sociais e ciências naturais quanto ao objeto, méto-

do e finalidade, como feito acima, no enfretamento dos problemas que afetam a vida dos

seres humanos, uma abordagem integradora apresentará melhores resultados para a vida

em sociedade. Pense, por exemplo, na questão ambiental. Enquanto cientistas naturais se

dedicam à investigação do impacto do comportamento humano sobre o meio ambiente

e desenvolvem tecnologias para reduzir os danos ambientais, os cientistas sociais se de-

dicam ao estudo da cultura, dos hábitos de consumo e das mudanças comportamentais

necessárias e fazem isso em diálogo com conhecimento científico que vai se consolidando

sobre as relações entre seres humanos e o planeta. A teologia, por sua vez, pode entrar na

dança-integradora, oferecendo a partir da fé sua visão sobre as questões ambientais, Justo

González afirma:

Diante da crise ecológica do século 21, cabe-nos desenvolver uma

interpretação da natureza criada que, ao mesmo tempo em que leve

em conta sua condição de criação caída, leve em conta também sua

promessa de criação redimida.[…] A esperança cristã não é apenas

escatológica, mas, ao mesmo tempo, também ecológica” (González,

2014, p.51)

A metodologia das ciências sociais é o conjunto de procedimentos e técnicas que

orientam a produção de conhecimento sobre a sociedade. Ela envolve a definição de um

problema de pesquisa, a escolha de um referencial teórico, a elaboração de hipóteses, a

coleta e a análise de dados, a interpretação e a comunicação dos resultados. A metodo-

logia das ciências sociais pode ser dividida em duas abordagens principais: a quantitativa

e a qualitativa. A abordagem quantitativa utiliza métodos matemáticos e estatísticos para

medir e comparar fenômenos sociais, como pesquisas, experimentos, testes e indicadores,

A Abordagem qualitativa utiliza métodos interpretativos e descritivos para compreender e

explicar fenômenos sociais tais como: observação, descrição, entrevista, história de vida.

O produto final do trabalho do cientista social será a demonstração do modo como a vida

pessoal e a biografia individual estão intimamente conectadas a eventos históricos e estru-

turais sociais.

As principais disciplinas das ciências sociais são a antropologia, a sociologia e a ciên-

cia política. Embora história e economia não figurem tradicionalmente dentro do quadro das

ciências sociais, o conhecimento produzido nessas áreas estará sempre em diálogo com

as investigações feitas pelos cientistas sociais. A antropologia estuda as características

culturais, simbólicas e comportamentais dos seres humanos, em diferentes sociedades

e épocas. O estudo de sociedade de pequena escala, como as tribos indígenas, tornou-se

uma das principais marcas da antropologia. A sociologia estuda as relações sociais, as instituições, as estruturas e os processos que organizam a sociedade. A ciência política

estuda o poder, os sistemas eleitorais, os partidos políticos, as instituições políticas e as

dinâmicas de influência da sociedade sobre as instituições e atores políticos e vice-versa.

Hoje as ciências sociais possuem departamentos estabelecidos e reconhecidos nas

grandes universidades do mundo. Entretanto, na origem do seu desenvolvimento como

um tipo de olhar científico para a sociedade alguns pensadores foram fundamentais. Karl

Marx(1818-1883), Emile Durkheim (1858-1917) e Max Weber (1864-1920), são considera-

dos os fundadores da das ciências sociais, pois eles desenvolveram teorias e métodos que

influenciaram profundamente o estudo da sociedade e das relações sociais. Cada um deles

contribuiu com uma perspectiva diferente e original para a formação das ciências sociais.

Karl Marx foi um filósofo e economista alemão que criticou o capitalismo e propôs uma

alternativa socialista. Ele analisou a relação entre trabalho e capital, a exploração dos traba-

lhadores e a luta de classes como elementos centrais da dinâmica social. Ele desenvolveu

a teoria do materialismo histórico, que afirma que as mudanças na sociedade são impulsio-

nadas pelas mudanças nas forças produtivas e nas relações de produção.

Emile Durkheim foi um sociólogo e antropólogo francês que se dedicou a estudar os

fatos sociais, ou seja, as formas de agir, pensar e sentir que são exteriores, anteriores e

coercitivas em relação aos indivíduos. Ele analisou a divisão do trabalho, a solidariedade,

a religião, o suicídio e a anomia como fenômenos sociais que expressam a integração ou

a desintegração da sociedade. Ele desenvolveu o método sociológico, que consiste em

observar, comparar, classificar e explicar os fatos sociais a partir de dados empíricos. Sua

obra inspirou diversas correntes sociológicas, como o funcionalismo, o estruturalismo e a

sociologia da religião.

MaxWeber foi um sociólogo e historiador alemão que se interessou por diversos temas

sociais, como a burocracia, a política, a religião, a ética, a racionalização e a ação social. Ele

analisou a relação entre as ideias e os interesses, a influência da cultura e dos valores na

conduta humana e a formação dos tipos ideais como modelos de análise. Ele desenvolveu

o método compreensivo, que consiste em interpretar o sentido e a motivação das ações

sociais a partir da compreensão do ator. Sua obra inspirou diversas correntes sociológicas,

como a sociologia compreensiva, a sociologia da dominação e a sociologia da cultura.

 

CURIOSIDADE

A PRIMEIRA SOCIÓLOGA

Harriet Martineau (1802-1876) foi uma escritora, economista,

ativista feminista e socióloga britânica do século XIX.

Ela é considerada a primeira mulher socióloga e uma das

precursoras da sociologia moderna. Ela traduziu as obras de

Auguste Comte, o fundador da sociologia, do francês para

o inglês, e contribuiu com suas próprias teorias e pesquisas

sobre diversos temas sociais, como classe, gênero, religião,

educação, política, economia, cultura, etc.

Martineau começou sua carreira escrevendo artigos e livros sobre economia política,

usando uma linguagem acessível e ilustrativa para ensinar os princípios da economia

aos leitores comuns. Ela também se interessou pelos problemas sociais da sua época,

como a escravidão, a opressão das mulheres, a pobreza, a violência e a desigualdade.

Ela viajou para os Estados Unidos e para o Oriente Médio, onde observou e analisou

as características e os conflitos das diferentes sociedades. Ela escreveu livros sobre

suas experiências, como Sociedade na América e Vida Oriental, nos quais ela criticou

as contradições e as injustiças dos sistemas sociais vigentes.

Martineau defendeu a importância da observação empírica e da análise crítica

para o estudo da sociedade. Ela propôs um método de pesquisa social baseado na

observação, na comparação, na generalização e na verificação. Ela também defendeu

a necessidade de se aplicar o conhecimento sociológico para a transformação social,

buscando soluções para os problemas sociais e promovendo a emancipação dos

grupos oprimidos. Ela foi uma das primeiras a usar a sociologia como uma ferramenta

de intervenção social e política.

Martineau foi uma pioneira e uma influenciadora da sociologia, pois ela abriu caminho

para o reconhecimento e a participação das mulheres na ciência social, e para o

desenvolvimento de novas perspectivas e abordagens sociológicas. Ela inspirou e

colaborou com outros sociólogos importantes, como Herbert Spencer, John Stuart

Mill dentre outros. Ela também deixou um legado de obras e ideias que continuam

sendo relevantes e atuais para a compreensão e a transformação da sociedade.

 

A pergunta sobre a utilidade das ciências sociais para a vida das pessoas é perfeita-

mente legitima e deve ser feita à essa altura. Fugiria ao propósito dessa disciplina uma lista

exaustiva dos modos como o conhecimento produzido pelas ciências sociais é utilizado

pelas pessoas na sociedade moderna. Eis alguns exemplos:

Atenção para as mudanças na sociedade – as ciências sociais nasceram para com-

preender as grandes mudanças ocorridas a partir da Revolução Industrial, da Revolução

Francesa e do Iluminismo. As ciências sociais estão sempre atentas ao processos de mu-

danças na vida social e isso não envolve necessariamente um juízo de valor sobre pessoas ou processos envolvidos.

Percepção das diferenças culturais e econômicas na sociedade – uma das consequencias

das pesquisas feitas pelas ciências sociais é a percepção que existem diferenças culturais na

sociedade e tais diferenças podem ser respeitadas ou combatidas. As diferenças culturais ge-

ralmente são acompanhadas por diferenças econômicas. Decisões sobre redução das diferen-

ças ou aumento são tomadas com base no conhecimento fornecido pelas ciências sociais.

Decisões sobre onde recursos públicos devem ser investidos – um dos usos possíveis

das ciência sociais é a avaliação da forma como os recursos públicos são investidos. A

ciência política, por exemplo, vai mostrar as conexões entre a representação política e a

destinação dos recursos públicos – que grupos sociais são beneficiados com o investimen-

to dos recursos arrecadados a partir dos impostos.

Identidade e autoconhecimento – muitas vezes os políticos preferem ignorar o conhe-

cimento produzido pelas ciências sociais justamente porque isso afeta os interesses deles

na manutenção do próprio poder. Entretanto, o conhecimento produzido pelas ciências so-

ciais pode ser utilizado para o conhecimento dos processos formadores de identidade de

pessoas e grupos e assim no desenvolvimento do autoconhecimento. Movimentos sociais

surgem a partir do conhecimento produzido pelas ciências sociais e se tornam atores im-

portantes na luta por justiça e dignidade na sociedade.

 

UA2 –

Unidade de Aprendizagem 2

2. A modernidade vista pelas lentes das ciências sociais

OBJETIVOS

1 Apresentar os contornos da modernidade

2 Introduzir a discussão sobre o uso do termo pós-modernidade

 

 

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Você já fez o aquecimento inicial terminando a primeira unidade de aprendizagem.

Agora é hora de avançar mais um pouco, porém, não falando sobre as Ciências Sociais e

sim utilizando-as para examinar a realidade. Nesse caso se trata de um olhar abragente so-

bre um conjunto de transformações que caracterizam um época – a modernidade. É impor-

tante que você saiba que as metodologias das Ciências Sociais possibilitam tanto estudos

de realidades de pequena escala e situadas num curto espaço de tempo quanto realidades

de grande escala situadas num tempo-espaço mais longo. Esse é o caso da leitura que as

Ciências Sociais apresentam da modernidade.

Como os autores clássicos viram a modernidade

O termo modernidade não está presente no vocabulário dos fundadores da sociologia,

mas isto não significa que as questões e temas discutidos em torno do tema não estejam

presentes nos autores clássicos do pensamento sociológico.

Os autores clássicos da sociologia, mencionados na unidade de aprendizagem anterior,

examinaram o moderno capitalismo industrial e as formas de vida social que o acompanha-

vam. É necessário registrar que tanto o capitalismo, se considerado na expressão clássica

weberiana “como impulso para o ganho”1, quanto a indústria, se tida na acepção do uso de

instrumentos para transformação da matéria-prima com vistas ao aumento da produção,

não são nenhuma novidade dos séculos XVIII e XIX. Sob a designação de “moderno” Weber

e Marx destacam a singularidade das transformações ocorridas a partir das últimas déca-

das do século XVIII. Marx em nenhum momento afirma que a indústria moderna inventou

a exploração ou a luta de classes, deu-lhe apenas novos contornos e, de acordo com a sua

 

[NOTA: 1 Neste sentido amplo Weber escreve: “o ‘Capitalismo’ e empresas ‘capitalistas’, inclusive com uma conside-

rável dose da racionalização capitalística, existiram em todos os países civilizados da Terra, como podemos

julgar pelos documentos econômicos. (Weber, 1987, p.6)]

 

filosofia da história, engendrou pela primeira vez a oportunidade de revolução da maioria

em favor da maioria em contraposição aos movimentos anteriores, os quais, segundo Marx,

teriam sido sempre revoluções de uma minoria em benefício de uma minoria2. Weber, por

sua vez, deseja mostrar que um dos elementos fundamentais daquilo que chama de capita-

lismo moderno, e não só dele, mas de toda a cultura moderna, é a conduta racional. Deste

modo, seu problema de pesquisa não é o capitalismo enquanto impulso para o ganho, que

sempre existiu na história, mas o moderno capitalismo como busca de um lucro sempre

renovado por meio da empresa permanente e racional. Assim afirma Weber:

 

Desta forma, o que nos interessa numa história universal da cultura,

mesmo de um ponto de vista puramente econômico, não é tanto o

desenvolvimento da atividade capitalista como tal, diferindo nas di-

versas culturas apenas na forma: o tipo aventureiro, – ou o capitalismo

do comércio, na guerra, na política, ou na administração como fonte

de lucro. São, antes, as origens desse sóbrio capitalismo burguês com

sua organização racional do trabalho. Em outras palavras, do ponto

de vista da história da cultura, a origem da classe burguesa ocidental

e de suas peculiaridades é um problema que certamente se relacio-

na de perto com a origem da organização capitalística do trabalho,

não sendo, entretanto, simplesmente a mesma coisa. ‘Burgueses’ já

existiam de forma permanente antes do desenvolvimento da forma

específica do capitalismo ocidental. Mesmo estes, entretanto, apenas

existiam no Ocidente.” (Weber, 1987, p. 9)

VOCÊ SABIA?

Modernus, derivado de modo (‘recentemente’, ‘há pouco’),

é uma palavra de formação tardia na língua latina, seguiu o

modelo de hodiernus (derivada de hodie, ‘hoje’). Foi usada ini-

cialmente, em fins do século V d.C., como antônimo de anti-

quus. Mais tarde, modernitas (‘tempos modernos’) tornaram-se

também comuns, sobretudo após o século X”. (2006, p.106).

Jameson (2005, p.27-28) observa que a contraposição de “mo-

dernus” versus “antiquas” já circulava desde o século V e teria

sido introduzida pela literatura de Cassiodoro.

 

[NOTA: 2 “Todos os movimentos precedentes foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movi-

mento proletário é o movimento independente da imensa maioria no interesse da imensa maioria. O proleta-

riado, estrato (Schicht) inferior da atual sociedade, não pode erguer-se, pôr-se de pé, sem que salte pelos ares

toda a superestrutura (Überbau) dos estratos que constituem a sociedade oficial.” (Marx, 1988, p. 77]

 

Não mencionamos acima E. Durkheim. Porém, ele também está profundamente in-teressado em explicar o moderno capitalismo industrial. Seus temas são: a divisão social

do trabalho, a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica, a anomia etc. Tais temas

são provenientes das transformações industriais modernas. Ao estudar, por exemplo, o sui-

cídio nos principais países da Europa, no período de 1841 a 1872, Durkheim busca conectar

as mudanças sociais ocorridas nesse período às oscilações nas taxas de suicídio.

A compreensão da modernidade, enquanto desenvolvimento capitalismo industrial,

permanece atrelada ao desdobramento das características que Marx, Weber e Durkheim

tomaram como fundamentais desse período da história. Marx, tendo identificado a contra-

dição entre a produção coletiva da riqueza e sua apropriação privada como força motriz do

capitalismo moderno, apostava no papel revolucionário do proletariado. O Capital, ao se re-

produzir, gera o seu oposto, a classe trabalhadora. Ele retira o trabalhador de seu isolamento

e o concentra numa fábrica e numa cidade ao lado de outros milhares de trabalhadores nas

mesmas condições. Com isto, o Capital cria o sujeito coletivo da ação revolucionária mo-

derna – o proletariado. O proletariado, por sua vez, com a revolução nada teria para perder,

a não ser suas cadeias. Marx afirmava que a conscientização política seria uma das conse-

qüências não-previstas da associação dos trabalhadores em sindicatos e associações de

ajuda mútua. A instrumentalização política que a própria burguesia fazia dos trabalhadores

para defesa de seus interesses também teria esse efeito de politização. Marshall Berman

(1986) levantou a questão da razão para que se acreditasse que o movimento operário

assumiria de forma duradoura o papel de sujeito revolucionário. Seu argumento prende-se à

própria lógica de criação/destruição do capitalismo moderno apresentada por Marx. Assim

escreve Berman:

Mas caso seja verdadeira essa visão abrangente da modernidade, por

que razão as formas comunitárias produzidas pela indústria capita-

lista seriam mais sólidas que qualquer outro produto capitalista? Não

seria o caso de essas coletividades se revelarem, como tudo o mais,

apenas temporárias, provisórias, condenadas à obsolescência?[…] Se

isso é correto, sua solidariedade, embora impressiva em um dado mo-

mento, poderá mostrar-se tão transitória quanto as máquinas que eles

operam ou os produtos que daí resultam. Os trabalhadores podem

dar-se mútuo apoio, hoje, na assembléia ou na linha de piquete, para

se verem dispersados amanhã em meio a outras coletividades, sob

outras condições, outros processos e produtos, outras necessidades

e interesses. (Berman, 1986, p. 102)

Deixando a aposta de Marx e passando para Max Weber, temos o mesmo tipo de ra-

ciocínio quanto ao futuro do moderno capitalismo industrial. Weber permanece fiel a sua

análise do desenvolvimento das sociedades ocidentais como um imenso processo de ra-

cionalização da vida. O processo de racionalização do capitalismo moderno, na sua origem

puritana, motivado pela ação racional com relação a valores, no caso – o trabalho feito como vocação in majorem Dei gloriam (para a maior glória de Deus) tornou-se uma ação

racional com relação a fins – a busca da riqueza como um esporte. Nas expressões clás-

sicas de Weber para descrever essa transição: “o puritano queria ser um profissional – nós

devemos sê-lo” (Weber, 2004, p. 165), e a citação do pregador puritano R. Baxter, segundo

o qual preocupações com os bens materiais somente poderiam vestir os ombros do santo

‘qual leve manto de que se pudesse despir a qualquer momento. “Quis o destino, porém, que

o manto virasse uma rija crosta de aço” (Idem p. 165).Weber permanece fiel à sua distinção

que aponta “política” e “ciência” como vocações distintas. Assim, diferentemente de Marx,

não reclama, a partir de sua análise da racionalização da vida moderna, nenhuma militância

específica com o propósito revolucionário. No máximo nutre alguma simpatia pela irrupção

na história de alguma liderança carismática, de profetas inteiramente novos, mas como ele

diz – ninguém sabe…! (Ibid., p.166).

Até aqui procuramos mostrar que os fundadores das ciências sociais trataram da

modernidade, utilizando para isto termos tais como: “operário moderno”, “trabalho indus-

trial moderno”, “indústria moderna”, “burguesia moderna”, “sociedade burguesa moderna”,

“Estado moderno”, “moderna organização industrial”, “moderna organização racional das

empresas capitalistas”, “moderna vida econômica”, “cultura capitalista moderna”, “econo-

mia capitalista moderna”. Não há dúvidas de que o adjetivo moderno circunscreve-se à

indústria e ao capitalismo a partir da segunda metade do século XVIII. Em Marx há uma es-

perança de superação e em Weber um forte sentimento de resignação. Todavia, em ambos,

fica assinalada uma espécie de teleologia (finalidade, direção da história) do capitalismo

industrial moderno. Esse telos consiste num movimento constante de expansão pelo globo.

Assim escreve Marx:

Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia inva-

de todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda

parte, criar vínculos em toda parte. Pela exploração do mercado mundial

a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao consumo

em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à indús-

tria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas

e continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias,

cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civiliza-

das, indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas

sim matérias-primas vindas das regiões mais distantes, cujos produtos

se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do

globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos na-

cionais, nascem novas necessidades, que reclamam para sua satisfação

os produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em

lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si pró-

prias, desenvolvem-se um intercâmbio universal, uma universal interde-

pendência das nações. E isto se refere tanto à produção material como à

produção intelectual (Marx; Engels, 1988, p.69-70)

Weber, de modo enfático, destaca a trajetória expansionista trilhada pelo processo de

racionalização da vida nos seguintes termos:

No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mun-

do os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder

crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca

antes na história. Hoje seu espírito – quem sabe definitivamente? –

safou-se dessa crosta. O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde

quando se apóia em bases mecânicas, não precisa mais desse arri-

  1. (Weber, 2004, p.165)

A nosso ver, esse processo de expansão do capitalismo industrial moderno, assinalado

acima, encarregar-se-ia de consolidar uma consciência de modernidade. Marshall Berman

(1986, p.35) afirma acertadamente que Marx e seus contemporâneos sentiram a moder-

nidade como um todo, num momento em que apenas uma pequena parte do mundo era

verdadeiramente moderna.

Os pontos que virão a configurar o que chamamos de modernidade dizem respeito a

um longo processo que se estende dos séculos XV ao XIX. Assim, nos séculos XV e XVI

temos o aparecimento da Idade Moderna e nos séculos XVII, XVIII e XIX a definição dos

contornos de uma consciência de modernidade. Esta consciência de modernidade tomou

forma gradualmente com contribuições da literatura, da filosofia e, posteriormente, das

ciências sociais. Tomamos de empréstimo a idéia sugerida por Segundo Georges Balan-

dier (1997 a modernidade é um objeto difícil de ser definido, mas cujo contorno pode ser

percebido. Abstraindo os diversos momentos históricos, bem como as particularidades de

cada país e cultura, temos os seguintes traços num esforço para estabelecer os contornos

da modernidade:

Na filosofia a modernidade é iluminista

O Iluminismo assume a razão como referencial para a filosofia. O princípio tomista, que

ensinava que aquilo que a razão viesse a descobrir não poderia contrariar as verdades que

estavam reveladas nas Escrituras, foi subjugado pelo Iluminismo. Nada estava vedado ao

escrutínio da razão3. O resultado foi a consolidação da imagem de um mundo governado

por leis naturais que podem ser conhecidas pela razão humana. A sociedade tornou-se um

corpo que também funciona por leis naturais e que deve livrar-se das formas de dominação

 

[NOTA: 3 O exame dos milagres, empreendido por David Hume, é um dos exemplos mais claros do alcance da crítica

iluminista à tradição religiosa: “Portanto, nossa evidência em favor da verdade da religião cristã é menor do

que a evidência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa religião não

era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus discípulos; ninguém pode, pois,

depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma confiança que tem em relação ao objeto imediato de

seus sentidos” (Hume, 1999, p. 110)]

 

que recorrem a uma autoridade externa, quer seja revelação, quer seja tradição. A confiança

na razão caminhou lado a lado com uma expectativa de progresso da humanidade.

Na economia a modernidade é capitalista e industrial

Certamente, como imagem do “moderno”, as transformações introduzidas pela econo-

mia capitalista e industrial são as mais marcantes da modernidade. A economia capitalista

e industrial dará forma às características mais marcantes da modernidade que serão: o sur-

gimento das fábricas, das grandes cidades, a aceleração do ritmo de vida, a aparição das

multidões urbanas e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. A articulação

da religião, do Estado e do conhecimento (ciência), como fatores de bloqueio ou de impulso

no florescimento da economia industrial capitalista em determinadas regiões do globo, tem

ocupado grande parte da literatura sociológica. Outra questão que esteve sempre presente

na sociologia, desde o seu início, diz respeito ao futuro da sociedade industrial e capitalista.

O processo de industrialização capitalista, amplamente difundido pelo mundo, afirmou-

-se de modo quase autônomo como a característica principal da modernidade. Habermas

observa: “Nesta perspectiva, dos impulsos de uma modernidade cultural que aparentemen-

te se tornou obsoleta, destacou-se uma modernização social que progride de forma auto-

-suficiente; ela executa apenas as leis funcionais da economia e do Estado, da técnica e da

ciência, as quais parecem ter-se conjugado num sistema imune a influências” (1990, p. 15).

Isto significa que, mesmo onde estão ausentes ou presentes de forma incipiente as demais

características, os processos de modernização econômica podem ser introduzidos e, com

isso, alterar significativamente o ambiente anterior.

Na política a modernidade é o Estado nacional e laico

O aparecimento dos Estados-nação é o resultado de milhares de eventos contingentes,

como bem observa Giddens (1991). O Estado-nação foi responsável pela criação de uma

eficiência administrativa fundamental para o desenvolvimento do capitalismo industrial.

Sobre esse processo Marx escreveu:

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produ-

ção, da propriedade e da população. Aglomerou as populações, cen-

tralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em pou-

cas mãos. A conseqüência necessária dessas transformações foi a

centralização política. Províncias independentes, apenas ligadas por

débeis laços federativos, possuindo interesses, leis, governos e tari-

fas aduaneiras (zöllen) diferentes, foram reunidas em uma só nação,

com um só governo, uma só legislação, um só interesse nacional de

classe, uma só barreira alfandegária. (Marx; Engels, 1988, p.70)

O controle de populações pelo Estado dentro do território foi outro mecanismo, exem-plarmente mostrado na obra de Michel Foucault, importante no desenvolvimento da moder-

nidade. Todavia, embora concomitante, o desenvolvimento do Estado-nação e a expansão

do capitalismo industrial freqüentemente entraram em atrito. A razão do conflito reside na

vocação transnacional do Capital.

O Estado nascido na modernidade de um lado unifica diferentes etnias sob a bandeira

de uma só nação e de outro aceita a pluralidade religiosa iniciada com a Reforma Protes-

tante. Desde modo ele consegue unificar a centralizar a economia enquanto abre mão do

controle religioso.

Continuidade ou ruptura?

Delineados os contornos da modernidade, convém agora que entremos no debate so-

bre a continuidade ou ruptura da modernidade. Trata-se de um debate complexo e amplo

que vem sendo desenvolvido de forma intensa nos últimos 40 anos. O debate sobre conti-

nuidade ou ruptura com a modernidade tem sido travado em diferentes campos do saber

acadêmico e uma das principais fontes de confusão está no cruzamento das questões

levantadas em campos diferentes. De outro lado, é difícil manter a discussão restrita a um

único campo, uma vez que as questões econômicas estão entrelaçadas com as questões

políticas, culturais e assim por diante. É preciso registrar também que muitas vezes o pró-

prio uso dos termos modernidade e pós-modernidade num sentido latu revela uma aspira-

ção ou desejo de situar a discussão num plano da totalidade social, num nível no qual seja

possível sair das mônadas sem janelas das diferentes especializações. Porém, é preciso

reconhecer que poucos autores estão à altura de um projeto tão ambicioso.

Pós-modernidade pode ser utilizado para acentuar um deslocamento dentro da própria

modernidade, ou ainda, para enfatizar as conseqüências da própria modernidade. Neste

sentido compartilho a visão de Habermas (1990), Touraine (2004), Giddens (1991), Bau-

man (1999). Pós-modernidade não é um conceito para substituir a modernidade como se

tivéssemos entrado num novo período histórico. Por que? Vejamos o que temos quando

analisamos as mudanças em diferentes campos.

No campo da economia, de fato, o trabalho e a industrialização perderam a centralida-

de explicativa. Todavia, a economia continua capitalista e embora falemos em sociedade

pós-industrial, deve-se lembrar que a produção tornou-se em grande parte automatizada,

mas continua havendo produção industrial. Do mesmo modo que ao falarmos em pós-for-

dismo não afirmamos que o trabalho alienado e a exploração tenham desaparecido, fala-se

agora em “uberização” dos trabalhadores.

Na epistemologia parece de fato ter ocorrido uma reviravolta significativa. Porém, a

mudança não é uma passagem de uma posição racional para uma irracional ou não racio-nal. Não obstante todas as críticas feitas ao conhecimento racional e sistemático, o que

está em jogo é o questionamento de narrativas totalizantes e não a possibilidade de uma

narrativa organizada de modo crítico. Habermas (1990) observa que tentativas como as de

Heidegger e Foucault que pretendem, seja sob a forma da recordação, seja sob a forma da

genealogia, promover um discurso especial, que se desenrola fora do horizonte da razão,

sem ser contudo absolutamente irracional, devem ser tidas no mínimo como paradoxais.

Se desejamos chamar de pós-modernidade as mudanças no campo da epistemologia, po-

demos fazê-lo no sentido apontado abaixo por Z. Bauman:

… a pós-modernidade é a modernidade que atinge a maioridade, a mo-

dernidade olhando-se à distância e não de dentro, fazendo um inven-

tário completo de ganhos e perdas, psicanalizando-se, descobrindo

as intenções que jamais explicitara, descobrindo que elas são mutua-

mente incongruentes e se cancelam. A pós-modernidade é a moderni-

dade chegando a um acordo com a sua própria impossibilidade, uma

modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o

que outrora fazia inconscientemente (Bauman, 1999. p. 288)

Passemos ao terreno da política. Aí também as mudanças não foram poucas. Mas

será que faz sentido, neste campo, falar em pós-modernidade como algo que suplanta a

configuração que o mundo da política assumiu na modernidade? Certamente que não. O

eixo da política continua funcionando em torno do Estado-nação. É verdade que surgiram

temas transnacionais (comércio de drogas, ecologia, epidemias etc.), corporações transna-

cionais que possuem poder financeiro superior ao de algumas nações e blocos econômi-

cos que operam num plano transnacional, porém os estados nacionais continuam sendo

os atores políticos centrais. Os movimentos sociais, grande novidade no cenário político,

dialogam e exercem pressão sobre o Estado. Quanto à separação entre religião e estado,

já foram mencionadas as diversas modalidades de articulação. Todavia, apesar de investi-

das religiosas de grupos fundamentalistas cristãos e de muçulmanos extremistas sobre a

esfera pública, até o momento não há nenhuma evidência quanto à viabilidade de estados

teocráticos. É certo que num ou noutro lugar grupos religiosos podem até assumir o gover-

no, mas parece-nos impossível que isto possa tornar-se projeto para todas as nações na

mesma proporção que tem sido o ideal de estado laico.

A esfera cultural parece-nos ser aquela em que o termo pós-modernidade aplica-se

melhor. Aplica-se não no sentido de esgotamento da modernidade ou de crise da moderni-

dade, mas, sim, de crise na modernidade, um certo modo de experimentar a modernidade

(Chevitarese, 2001). São incontestáveis o lugar do consumo na cultura contemporânea,

bem como o lugar das simulações do mundo virtual. Todavia, mesmo nestes casos pre-

cisamos de algumas ponderações. A centralidade do consumo na cultura foi claramente

vislumbrada na teoria de Marx em sua análise do fetichismo da mercadoria. Marx, na defi-nição clássica de mercadoria4, destacava a dimensão imaterial das necessidades humanas

ao falar da fantasia, por exemplo. Deste modo, o fato da cultura contemporânea ter como

sua característica principal o consumo e ainda um consumo em grande parte de bens ima-

teriais (simbólicos e virtuais) não representa um deslocamento para além da modernidade,

mas a sua radicalização.

No caso da esfera cultural, embora esteja claro que transformações importantes ocorre-

ram nos últimos anos e continuam a ocorrer, talvez seja prudente falar não em rompimento

absoluto com a cultura moderna, mas, sim, em uma interação complexa entre pré-moderno,

moderno e pós-moderno. Uma forma de apresentar essa complexidade reside em mostrar

como o passado (ou antigo) é transferido para o presente como um objeto completamente

diferente, ou seja, um simulacro.

 

[NOTA: 4 “A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz

necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”

(Marx, 1978, p.53).]

 

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Faça o seguinte o exercício: busque combinações culturais entre modernidade e tradi-

ção. Por exemplo, um homem montado a cavalo fazendo um percurso que remonta as

tradições do século XIX, porém, utilizando um telefone celular para postar fotos numa

rede social. Busque mais exemplo dessas combinações entre elementos culturais que

representam a modernidade e outros que representam tradições. Modernidade híbri-

da ou modernidades múltiplas é uma forma de olhar para a modernidade como algo

que pessoas e grupos se apropriam seletivamente, obviamente de acordo com seus

interesses e objetivos.

 

UA3 –

Unidade de Aprendizagem 3

  1. O Protestantismo e a Modernidade na perspectiva das ciências sociais

OBJETIVOS

1 Seguir as afinidades entre protestantismo e modernidade

2 Mostrar a lógica entre calvinismo e capitalismo

3 Problematizar a sobrevivência do protestantismo na modernidade

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Essa unidade de aprendizagem vai trazer as Ciências Sociais um pouco mais para

perto da teologia. Nela examinamos as relações entre protestantismo e modernidade, es-

pecificamente o elo estabelecido por Max Weber entre calvinismo e capitalismo. Convido

você para ler o texto sem preconceitos e pré-julgamentos, isso é um pouco mais desafiador

quando um autor secular apresenta um tema que já conhecemos pela própria experiência

religiosa. Entretanto, quero lembrar que um olhar externo pode ser útil para ampliação da

compreensão que temos do mundo no qual crescemos e que muitas vezes nos parece na-

tural e sem novidades.

Desejo-lhe uma boa jornada e que ela traga muitas surpresas ao longo do caminho.

Vamos aos estudos.

As conexões entre protestantismo e modernidade segundo Max Weber

Nos contornos da modernidade apontados acima, propositadamente não foi menciona-

do o contorno religioso. Não o fizemos porque será tratado nessa unidade de aprendizagem.

Qual o lugar ocupado pelo protestantismo na investigação sociológica da modernida-

de? Tal pergunta, por si só, já delimita a perspectiva do estudo sociológico da religião. O

protestantismo constituir-se-á objeto de pesquisa sociológica enquanto fenômeno relevan-

te para compreensão da vida social moderna.

“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” foi publicada na revista Archiv für So-

zialwissenschaft na forma de dois ensaios, em 1904 e 1905 respectivamente. Uma versão

revista e ampliada foi publicada por Max Weber (1864-1920) em 1920. O exame da relação

entre o protestantismo e o novo mundo, criado pelo capitalismo, não foi “inventado” por

Max Weber. O senso comum, alimentado pelas polêmicas religiosas, já havia destacado tal relação5. Basta uma leitura atenta da primeira parte de “A ética…” para perceber isto. Nela,

Weber lembra-nos que a predominância de protestantes como proprietários do capital, em-

presários e mão-de-obra qualificada das empresas havia sido objeto de debate constante

na literatura católica. Cita autores que haviam destacado o nexo entre a “heresia” calvinista

e o fomento do espírito comercial (Weber, 2004, p. 37). Ele faz um sumário das principais

respostas oferecidas como explicação para tal vínculo e, meticulosamente, examina e rejei-

ta cada uma delas. Por fim, conclui:

Se é para encontrar um parentesco íntimo entre determinadas

manifestações do antigo espírito protestante e a cultura

capitalista moderna não é em sua (pretensa)

‘alegria com o mundo’ mais ou menos materialista

ou em todo caso antiascética que

devemos procurá-lo, mas, sim, queiramos ou não,

em seus traços puramente religiosos” (2004, p. 38).

Assim, Weber não discorda da observação proveniente do senso comum de que havia

um nexo entre o protestantismo e o capitalismo. Ele discorda da explicação grosseira se-

gundo a qual o protestante seria guiado por certo espírito materialista de enriquecimento

e gozo dos bens materiais. Sua resposta irá noutra direção. Os primeiros capitalistas, no

sentido moderno do termo, eram “santos” e “heróis”.

Na visão weberiana o protestantismo não é o “produtor” da modernidade capitalista.

Sem meias palavras assim escreve:

…não se deve de forma alguma defender uma tese tão disparatada-

mente doutrinária que afirmasse por exemplo: que o “espírito capita-

lista” (sempre no sentido provisório dado ao termo aqui) pôde surgir

somente como resultado de determinados influxos da Reforma [ou até

mesmo: que o capitalismo enquanto sistema econômico é um produto

da Reforma]. Só o fato de certas formas importantes de negócio capita-

lista serem notoriamente mais antigas que a Reforma impede definitiva-

mente uma visão como essa. (2004, p. 82, grifos do autor)

 

[NOTA: 5 Cabe a lembrança feita por Peter Berger sobre a natureza da investigação sociológica: “O sociólogo vive no

mundo comum dos homens, perto daquilo que a maioria das pessoas chamaria de real. As categorias que

ele utiliza em suas análises constituem apenas refinamentos das categorias em que os outros homens se

baseiam – poder, classe, status, raça, etnia. Em conseqüência, algumas investigações sociológicas parecem

– ilusoriamente – simples e óbvias” (1976, p.31).]

 

A tese oposta, segundo a qual o protestantismo seria um “produto” da economia capi-

talista, também é rechaçada por Weber. Ele afirma que precisamos emancipar-nos da visão

que propugna que se pode deduzir a Reforma das transformações econômicas como algo

necessário “em termos de desenvolvimento histórico”. Ele destaca que para o estabele-

cimento e desenvolvimento das igrejas reformadas “inumeráveis constelações históricas,

que não apenas não se encaixam em nenhuma ‘lei econômica’ nem de modo geral em ne-

nhum ponto de vista econômico da espécie que for, em particular os processos puramente

políticos, tiveram de agir conjuntamente, a fim de que as igrejas recém-criadas conseguis-

sem de algum modo sobreviver” (2004, p. 82).

Mas que tipo de relação Weber identificava entre Reforma e capitalismo, perguntamo-

-nos. Seu intento era a identificação dos influxos religiosos que teriam contribuído para a

cunhagem e expansão do moderno espírito capitalista. Ele buscava o reconhecimento de

“determinadas afinidades eletivas entre certas formas da fé religiosa e certas formas de

ética profissional” (Idem, p. 82).

Os caminhos de afinidade entre protestantismo e capitalismo são explicitados por We-

ber a partir da busca das raízes do “sóbrio capitalismo burguês e de sua organização ra-

cional do trabalho”6. Seguiremos, ainda que de forma bastante resumida e esquemática, os

argumentos de Weber no estabelecimento de afinidades entre o protestantismo ascético e

o capitalismo moderno.

Max Weber considera infrutífera qualquer tentativa de traçar o desenvolvimento do ra-

cionalismo num esquema de etapas, das quais o protestantismo seria apenas mais uma.

Isto porque a história do racionalismo “não de modo algum acusa um desenvolvimento

com avanço paralelo nas várias esferas da vida” (2004, p.68).Weber criticou o uso genérico

do conceito de racionalismo, pois é preciso considerar que se pode “racionalizar a vida de

pontos de vista últimos extremamente diversos e nas mais diversas direções” (Idem, p.69).

Isto conduz Weber para a investigação daquele que seria “o dogma central de todos os ra-

mos do protestantismo” – o conceito de vocação. Escolhe, portanto, examinar uma forma

concreta e particular de pensamento racional. Ao tratar sobre o conceito de vocação no

 

[NOTA: 6 Weber assim enuncia seu propósito: “Desta forma, o que nos interessa numa história universal da cultura,

mesmo do ponto de vista puramente econômico, em última análise, não é tanto o desenvolvimento da ativida-

de capitalística como tal, diferindo nas várias culturas apenas na forma: o tipo aventureiro, ou o capitalismo

de comércio, na guerra, na política, ou na administração como fonte de lucro. São, antes, as origens desse

sóbrio capitalismo burguês, com sua organização racional do trabalho. Em outras palavras, do ponto de vista

da história da cultura, a origem da classe burguesa ocidental e de suas peculiaridades é um problema que cer-

tamente se relaciona de perto com a origem da organização capitalística do trabalho, não sendo entretanto,

simplesmente a mesma coisa”. (Weber, 1987, p. 9]

 

protestantismo, Weber demonstrará como ocorre num determinado setor da vida, no caso

a religião, o processo de racionalização e qual a sua direção. Podemos perceber na expres-

são “setores da vida” o que nos trabalhos sistemáticos Weber viria a chamar de esferas

de vida. Lutero, segundo Weber, produziu uma desvalorização da vida monacal e por con-

seqüência um aumento no valor moral do trabalho secular e profissional. A vida monacal

foi vista por Lutero como produto de uma egoística falta de carinho que afasta o homem

de suas responsabilidades neste mundo. Todavia, devido à compreensão que Lutero tem

da doutrina da Providência – segundo a qual o lugar de cada indivíduo na sociedade seria

determinado por Deus e a melhor forma de agradar a Deus é permanecer na vocação para

a qual foi chamado – o conceito de vocação permaneceu em sua forma tradicional. Faltava

ao conceito de vocação de Lutero a valorização da mobilidade social.

O calvinismo fornecerá o elemento de mobilidade social ausente no conceito de voca-

ção do luteranismo. Para o puritano “não é trabalho em si, mas o trabalho profissional ra-

cional, é isso exatamente que Deus exige” (2004, p.147). Mas, porque se pede um trabalho

racional, devemos nos perguntar: o que operou essa mudança? A resposta para essa ques-

tão encontra-se no capítulo em que Weber trata dos fundamentos religiosos do ascetismo

laico. Neste capítulo, Weber concentra-se na compreensão dos seguintes movimentos re-

ligiosos: calvinismo, pietismo, metodismo e as seitas batistas. Valendo-se do método de

construção de tipos ideais7, Weber busca compreender os “estímulos psicológicos [criados

pela fé religiosa e pela prática de um viver religioso] que davam a direção da conduta de

vida e mantinham o indivíduo ligado nela” (2004, p.67). A crença religiosa que exerceu maior

influência sobre a conduta dos homens daquele tempo foi a doutrina calvinista da predesti-

nação. Segundo essa doutrina, Deus, sem qualquer previsão de fé ou de obras, predestinou

alguns homens para a salvação, e outros para a perdição eterna. Trata-se de um pensamen-

to de grande consistência lógica, pois segue rigorosamente o pressuposto de que “Deus

não existe para os homens, mas estes, por causa de Deus”. Desta forma, Deus é glorificado

tanto na perdição quanto na salvação dos homens. A questão que passaria a angustiar os

homens é a seguinte: “como sei que sou um dos eleitos para a salvação?” De acordo com

Weber essa preocupação empurrou para segundo plano todos os outros interesses (2004,

p.100). O homem não podia mais contar com a mediação da Igreja, do sacerdote ou dos

sacramentos para a sua salvação. Estava absolutamente sozinho diante da questão mais

importante para sua vida – sua salvação eterna. Nem sequer restou espaço para a emoção

religiosa, uma vez que para “Calvino os simples sentimentos e estados do espírito, por mais

sublimes que possam parecer, são enganosos, a fé precisa se comprovar por seus efeitos

 

[NOTA: 7 Weber lembra-nos que um “tipo ideal” é uma construção de grande consistência lógica, mas que raramente

se deixa encontrar na realidade histórica (2004, p. 90).]

 

objetivos a fim de poder servir de base segura para a certitudo salutis: precisa ser uma fides

efficax” (Idem, p.103-104).

Esta tensão insuportável para os fiéis encaminhou como solução a doutrina da prova.

Os eleitos para a salvação podem ser conhecidos por um tipo de conduta cristã que glori-

fica Deus. Weber aponta dois tipos de recomendações pastorais que eram feitas aos fiéis:

  1. a) eles tinham o dever de considerar-se eleitos e deveriam combater qualquer dúvida como

tentação do diabo; b) deveriam entregar-se ao trabalho profissional sem descanso. Deveria

ser privilegiado, na medida do possível, um trabalho sistemático e racional, segundo as re-

comendações de Richard Baxter8.

Após a remoção das barreiras de desvalorização do trabalho, presentes na ética tradi-

cional, Weber passa a examinar o processo de reinterpretação da riqueza, promovido pelo

puritanismo. O puritanismo, assim como o catolicismo, também possuía reservas em rela-

ção à riqueza. Todavia, sua reserva residia tão somente na preocupação de que a aquisição

de riquezas poderia levar o fiel a uma vida de despreocupação e de afastamento da discipli-

na propiciada pelo trabalho. R. Baxter enfatizava que a riqueza não eximia quem quer que

fosse do mandamento universal de ganhar o pão por meio do trabalho. Entretanto, desde

que a riqueza não fosse tomada como pretexto para o ócio ou para a luxúria, era na verdade

uma meta legítima para a vida do cristão protestante. Weber resume a interpretação purita-

na para a riqueza como segue:

A riqueza é reprovável precisamente e somente como tentação de

abandonar-se ao ócio, à preguiça e ao pecaminoso gozo da vida, e a

ambição de riqueza somente o é quando o que se pretende é poder vi-

ver mais tarde sem preocupação e prazerosamente. Quando porém ela

advém enquanto desempenho do dever vocacional, ela é não somente

lícita, mas até mesmo um mandamento. A parábola daquele servo que

foi demitido por não ter feito frutificar a moeda que lhe fora confiada pa-

recia também exprimir isso diretamente. Querer ser pobre, costumava-

-se argumentar, era o mesmo que querer ser um doente, seria condená-

vel na categoria de santificação pelas obras, nocivo portanto à glória de

Deus. E, ainda por cima, quem pede esmola estando apto ao trabalho

não só comete o pecado da preguiça, como também afronta o amor ao

próximo, diz a palavra do apóstolo. (Weber, 2004, p. 148)

A combinação da valorização do trabalho, da condenação do ócio, da restrição ao consumo de

qualquer coisa supérflua e da ascensão profissional no protestantismo ascético forneceu a alavan-

ca mais poderosa que se pode imaginar da expansão do “espírito” do capitalismo (2004, p. 157).

 

[NOTA: 8 Richard Baxter foi um dos grandes líderes do puritanismo inglês no século XVII e é amplamente citado por

Weber na segunda parte de “A Ética…”. Weber considera a obra “Christian Directory” o principal compêndio de

teologia moral puritana.]

 

Segundo Weber o protestantismo ascético jamais teve a intenção de auxiliar o desen-

volvimento do capitalismo. O enriquecimento e o desenvolvimento de um estilo de vida ca-

pitalista eram conseqüências, até certo ponto não previstas, de uma racionalização a partir

de um valor – o aumento da glória de Deus (in majorem Dei gloriam). Tendo triunfado o capi-

talismo, a racionalização penetrou todos os ambientes da vida e o estilo de vida capitalista

já não necessitava de uma legitimação nobre (o aumento da glória de Deus), mas tornou-se

um fim em si mesmo. Nas palavras de Weber “o puritano queria ser um profissional – nós

devemos sê-lo” (2004, p. 165, grifos do autor).

O que apresentamos acima é uma breve reconstrução da conexão sociológica entre

modernidade capitalista e protestantismo. Porém, algumas observações ainda sobre a

abordagem weberiana do protestantismo devem ser registradas. Primeiro – não foi todo

tipo de protestantismo que favoreceu a racionalização em direção ao “espírito” do capita-

lismo moderno. Weber observava, por exemplo, que ao luteranismo faltava o impulso do

racionalismo, presente nos outros ramos do protestantismo. Segundo – embora fale com

freqüência do calvinismo como ápice do processo de racionalização da vida, Weber via,

sobretudo no puritanismo, a concretização prática dos pressupostos teóricos/lógicos da

doutrina da presdestinação. Terceiro – Weber, quanto a Lutero e Calvino e suas supostas

intenções de “criação” do capitalismo, não poderia ser mais claro sobre o que pensava do

que no trecho que reproduzimos abaixo:

Se, portanto, para análise das relações entre a ética do antigo pro-

testantismo e o desenvolvimento do espírito capitalista partimos das

criações de Calvino, do calvinismo e das demais seitas “puritanas”,

isso entretanto não deve ser compreendido como se esperássemos

que algum dos fundadores ou representantes dessas comunidades

religiosas tivesse como objetivo de seu trabalho na vida, seja em que

sentido for, o despertar daquilo que aqui chamamos de “espírito ca-

pitalista”. Impossível acreditar que a ambição por bens terrenos, pen-

sada como um fim em si, possa ter tido para algum deles um valor

ético. E fique registrado de uma vez por todas e antes de mais nada:

programas de reforma ética não foram jamais o ponto de vista central

para nenhum dos reformadores – […] A salvação da alma, e somente

ela, foi o eixo de sua vida e ação. […] Por isso temos que admitir que

os efeitos culturais da Reforma foram em boa parte – talvez até prin-

cipalmente, para nossos específicos pontos de vista – conseqüências

imprevistas e mesmo indesejadas do trabalho dos reformadores, o

mais das vezes bem longe, ou mesmo ao contrário, de tudo o que eles

próprios tinham em mente. (Idem, p. 81, grifos do autor)

Quarto – protestantismo ascético é um tipo ideal. A principal característica do asce-

tismo é o desprezo pelo mundo. Tal desprezo, segundo Weber, pode caminhar em duas

direções: fuga do mundo (ascetismo extramundano) e transformação do mundo segundo a vontade de Deus (ascetismo intramundano). Weber considera que os seguintes movi-

mentos religiosos reformados foram portadores do ascetismo intramundano: calvinismo,

metodismo, seitas anabatistas e pietismo. Ele reconhece, porém, que esses movimentos

influenciavam-se mutuamente e que sua tipologia realçava apenas aquilo que lhe interessa-

va, não sendo capaz de dar conta de toda a diversidade de tais movimentos.

Existe futuro para o protestantismo na modernidade que ajudou a moldar?

A questão presente nos autores do século XIX e início do século XX referia-se à con-

tribuição do protestantismo para o nascimento e consolidação do que hoje se chama mo-

dernidade. A partir dos anos 30 o exame da relação entre protestantismo e modernidade

mudará significativamente de direção. A questão não versará tanto sobre a contribuição do

protestantismo para o nascimento e consolidação da modernidade, mas sobre o seu desti-

no na modernidade que ajudou a criar.

Para esta indagação – o lugar do protestantismo na modernidade – as respostas tam-

bém são matizadas, assim como foram as respostas de Weber sobre a contribuição de

cada segmento protestante para a cunhagem do moderno “espírito” capitalista. Liberais,

conservadores e pentecostais (re) agem de modo diferenciado diante da modernidade.

Cada segmento do protestantismo escolhe faces da modernidade para dialogar e para re-

cusar. Assim, o êxito e o fracasso da reprodução do protestantismo precisam ser cuidado-

samente referidos ao tipo de relação que cada grupo estabeleceu com a modernidade.

O estudo do tema no contexto da teologia merece que o assunto seja visitado à luz

de análise de um dos maiores teólogos do século XX. Paul Tillich (1886-1965), teólogo

luterano alemão, emigrou para os EUA em 1933, onde ensinou em diversas universidades.

Sua obra teológica é vasta e marcada pelo diálogo com a filosofia existencialista e com a

psicologia jungiana. No artigo publicado no “American Journal of Sociology”, em 1937, sob

o título: “Protestantism in the Present World-Situation”9. Neste artigo, Tillich examina as

possibilidades de “sobrevivência” do protestantismo no mundo moderno, que se desenhava

no período entre a Primeira e a Segunda Grande Guerra Mundial.

O mundo moderno, na visão de Tillich, tinha as seguintes características. Em primeiro

lugar – era marcado fortemente pelo capitalismo industrial. Na análise do capitalismo, Tilli-

ch revela-se influenciado pelo socialismo. Julga que o desemprego é estrutural e que ha-

veria uma tendência crescente para o empobrecimento das massas. Ele lamenta que após

 

[NOTA: 9 Este artigo, bem como muitos outros, foi traduzido para o português e publicado, em 1992, numa coletânea

intitulada “A Era Protestante”. O Artigo citado acima figura na coletânea no capítulo 15 com o título “O fim da

era Protestante?”]

 

os seres humanos terem superado a sujeição aos poderes da natureza, tenham de subme-

ter-se à insegurança do mercado. Em segundo lugar – o mundo moderno é marcado pela

formação de massas nas grandes cidades. As massas caracterizam-se pela desintegração.

Segundo ele, as massas são formadas por “gente que não gosta de decidir a respeito de sua

própria vida” (Tillich, 1992, p. 242). São vitimadas pelas tendências culturais homogeneiza-

doras, especialmente as massas operárias. Diante da desintegração as massas respondem

positivamente à emergência de lideranças autoritárias. Tillich atribuía à necessidade de

reintegração o apoio das massas aos estados autoritários que se estabeleciam na Europa.

Enquanto Weber identificou profunda afinidade entre o nascente capitalismo moderno

e a ética protestante, Paul Tillich, por sua vez, identificará profundo desconforto entre o pro-

testantismo e o capitalismo da década de 30. Na visão de Tillich, o protestantismo estaria

em completa contradição com as tendências homogeneizadoras e autoritárias do capitalis-

mo moderno. Trata-se de incompatibilidade entre o tipo de modernidade que se desenhou

e aquilo que ele denomina de “princípio protestante”; vejamos:

O protestantismo contradiz completamente essas tendências. Essa

oposição verifica-se em primeiro lugar na base religiosa e, depois, nas

implicações práticas e intelectuais da atitude protestante. O princí-

pio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça

apenas, significando que nenhum indivíduo ou grupo humano pode

reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas

morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina.

O protestantismo está pronto a anunciar o protesto profético a todos

os que conscientemente assumirem tal atitude. […] Significa a impos-

sibilidade de qualquer sistema sagrado, eclesiástico ou político; que

não pode haver qualquer hierarquia sagrada revestida de autoridade

absoluta; e que não pode haver qualquer verdade nas mentes huma-

nas idêntica à verdade divina. […] Cada protestante, cada leigo, cada

ministro (os ministros no protestantismo nada mais são do que leigos

qualificados) tem que decidir por si próprio se determinada doutrina

é verdadeira ou falsa, se os profetas existentes em seu meio são ver-

dadeiros ou falsos, e se o poder é divino ou demoníaco. Nem mesmo

a Bíblia é capaz de dispensá-lo desta responsabilidade, pois ela tam-

bém está sujeita à interpretação: não há doutrina, profeta, sacerdote

ou poder que não procurem justificar-se por meio da Bíblia. Para os

protestantes, a decisão será sempre individual. (1992, p.242-243)

A aplicação do “princípio protestante” resulta numa religião despojada de sacralidade

e mistério. Portanto, numa religião incapaz de atender às aspirações das massas do mun-

do capitalista. Tillich lembra que bispos, sacerdotes e monarcas são possuidores de certa

autoridade sacramental, enquanto ministros protestantes são essencialmente professores,

ou seja, apelam para o intelecto. Ora, segundo ele, os indivíduos homogeneizados pela cul-

tura de massa fogem exatamente do trabalho intelectual e da responsabilidade pelas deci-sões individualizadas.

Quais as possibilidades de “sobrevivência” do protestantismo? Tillich observa que é

impossível construir a Igreja na base do puro protesto e que esse tem sido o erro do protes-

tantismo ao longo dos tempos. Uma possibilidade mencionada por Tillich é a sobrevivência

como espécie exótica de religião em processo de extinção. Ele se pergunta: “assumirá a

sobrevivência do protestantismo a forma de retirada para viver nos confins de reservas,

análoga à maneira como os povos indígenas dos Estados Unidos estão conseguindo so-

breviver?” (Idem, p.248). Conclui que tal tipo de sobrevivência seria viável, mas significaria

o término de qualquer influência na sociedade. Uma segunda possibilidade residiria na re-

cuperação de aspectos de governo e de rito do catolicismo. Por exemplo, a re-introdução

de símbolos, de governo episcopal e de nova significação dos sacramentos. Porém, Tillich

reconhece que tal caminho encontra forte oposição na cultura religiosa protestante e que

quando mudanças desse tipo são introduzidas, não conseguem convencer ninguém. A ter-

ceira via tentada por Tillich reside na proposta de que o protestantismo sobreviva como

ele mesmo, a saber, como protesto. Mas como ele mesmo observou, o protesto não forma

Igreja. Eis a contradição do “princípio protestante” – ao ser fiel a si mesmo, condena-se a

não ter futuro institucional.

A importância da análise do protestantismo empreendida por Paul Tillich reside na mu-

dança da ênfase. Em Weber e Troeltsch há a pergunta pela gênese das afinidades entre

protestantismo e modernidade. Tillich, ainda que com certa conotação de sociologia

religiosa, levanta a pergunta acerca da afinidade entre protestantismo e modernidade do

século XX. Trata-se de um ponto de inflexão no tratamento da questão. A sociologia do

protestantismo, daí em diante será, sobretudo, uma sociologia do declínio. Paul Tillich

assinala uma inquietação que acompanhará a sociologia da religião que se dedica ao

estudo do protestantismo, a saber: por que o protestantismo, que no passado manteve laços

tão positivos com a modernidade, não se beneficiou, sobretudo, na forma de dividendos

numéricos e de sua adaptação à sociedade que ajudou a criar?

 

 

 

UA4 –

Unidade de Aprendizagem 4

4 Modernidade, sociedade do cansaço e adoecimentos coletivos

OBJETIVOS

1 Mostrar como as Ciências Sociais buscam entender as

razões do adoecimento no capitalismo

2 Examinar os transtornos mentais à luz dos processos sociais

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Você já deve ter percebido como o percurso escolhido vai nos aproximando cada vez

mais das questões do nosso tempo. As Ciências Sociais utilizam a História para entendi-

mento das transformações, mas seu objetivo é sempre lançar luz sobre o tempo no qual vi-

vemos. Nas duas últimas unidades de aprendizagem passamos pelos contornos da moder-

nidade e pelas conexões com o protestantismo. Nessa unidade o propósito utilizar o olhar

das Ciências Sociais para entender os assuntos relacionados à saúde mental. Trata-se de

uma abordagem complementar à psicologia e psiquiatria. Sabe-se que transtornos mentais

são multifatoriais e um dos fatores está na vida social.

Modernidade não é só progresso

Os efeitos negativos da modernidade aparecem com toda força dos pais fundadores

da sociologia. Karl Marx destacou a alienação e a exploração produzidas pelas sociedades

modernas. Max Weber enfatizou o modo como racionalidade pode ter um ponto de partida

irracional e daí em diante toda a lógica produtiva pode ser seguida com todos os requin-

tes gerenciais. O exemplo histórico mais trágico da “irracionalidade racionalizada” são os

campos de concetração para o extermínio de judeus, a morte numa escala industrial. Emile

Durkheim, mais otimista por conta de sua influência positivista, não deixou de perceber os

desajustes presentes na modernidade. Seu estudo clássico sobre o suicídio é um exemplo

da percepção do adoecimento com causas sociais. Durkheim define o suicídio como “todo

o caso de morte que resulta, direta ou indiretamente, de um ato, positivo ou negativo, exe-

cutado pela própria vítima, e que ela sabia que deveria produzir esse resultado” ( p.112 ). Ele

afirma que o suicídio é um fato social, ou seja, um fenômeno que tem origem na sociedade

e não somente com base na psicologia individual. Ele demonstra que as taxas de suicídio

variam de acordo com o grau de integração e regulação dos indivíduos na sociedade, ou

seja, o nível de coesão e normatização dos grupos sociais aos quais eles pertencem.

Durkheim classifica o suicídio em três tipos principais, de acordo com a causa social

que o determina:

ferente à sociedade. É mais comum em sociedades individualistas, onde os laços

sociais são fracos e as pessoas se preocupam mais consigo mesmas do que com

os outros. Exemplos: suicídio de solteiros, viúvos, idosos, etc.

uma causa ou de um dever. É mais comum em sociedades coletivistas, onde os

laços sociais são fortes e as pessoas se submetem à vontade do grupo. Exemplos:

suicídio de soldados, mártires, fanáticos, etc.

de uma situação de crise, de mudança ou de falta de normas na sociedade. É mais

comum em sociedades instáveis, onde há rupturas, conflitos ou transformações

sociais que afetam a ordem e a segurança dos indivíduos. Exemplos: suicídio de

desempregados, endividados, divorciados, etc.

As orientações contemporâneas de prevenção ao suicídio adotam uma perspectiva

mais complexa e multifatorial, mas confirmam o acerto de E. Durkheim em apontar os fato-

res sociais em desfechos trágicos de suicídio. Se reconhece nos tempos atuais que a des-

conexão social, o desemprego, a dependência química, os quais somados aos transtornos

mentais estão sempre presentes da ideação suicida e na concretização do ato suicida.

O destaque dado pela sociologia aos adoecimentos provocados pela vida social moder-

na são o contraponto à ideia típica do Iluminismo de que a modernidade com seu progresso

permanente produziria a emancipação dos seres humanos. Tal promessa de emancipação

tem em John Locke, Emanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel o ponto alto da formução

narrativda da modernidade. O surgimento da nova ordem política na França e a moderna

indústria capitalista na Inglaterra pareciam, naquilo que ajudavam a desfazer os laços com

o Antigo Regime, aliados do projeto iluminista de autonomia dos seres humanos. Todavia,

o século XIX tratou depressa de desfazer o equívoco. Somente na aparência a moderna in-

dústria e a sociedade que brotava no seu entorno aliavam-se com os ideais emancipatórios,

pois o que se viu na prática não foi o aparecimento de pessoas guiadas pela razão, mas o

surgimento de uma sociedade de massas dirigida externamente; não foi a consolidação da

razão emancipadora, mas o desenvolvimento da racionalidade instrumental que tratou de

apertar ainda mais os grilhões sobre os seres humanos. Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno,

Max Horkheimer, Walter Benjamin e Michel Foucault mostraram, cada um à sua maneira e

em diferentes épocas, os processos de desumanização e dominação resultantes da imple-

mentação do moderno capitalismo racional. Se Kant e Hegel admitiam que não viviam numa época esclarecida, mas numa época de esclarecimento, isto é, de progresso contínuo, Adorno

e Horkheimer afirmarão: “Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma

calamidade triunfal” (1985, p. 19), e Michel Foucault escreverá: “As ‘luzes’ que descobriram as

liberdade inventaram também as disciplinas” (1991, p.195).

A sociedade do cansaço

Na esteira do pensamento crítico à modernidade uma das contribuições mais atualiza-

da é do pensador Byung-Chul Han. Trata-se de um filósofo sul-coreano que vive e ensina na

Alemanha desde os anos 1980. A tese de Byung-chul Han é que passamos de uma socie-

dade disciplinar marcada pela negatividade da proibição e da coerção para uma sociedade

do desempenho que é marcada pela positividade das autocobranças por sucesso na saúde,

nos relacionamentos e na carreira. Antes de prosseguir com o pensamento de Byung-Chul

Han será importante entender o conceito de sociedade disciplinar desenvolvido pelo histo-

riador francês Michel Foucault.

O conceito de sociedade disciplinar foi desenvolvido no livro Vigiar e Punir (1991), pu-

blicado originalmente em 1975. Nele sociedade disciplinar se refere a uma forma de organi-

zação social que surgiu na Europa a partir do século XVIII, com a ascensão do capitalismo

e a queda do poder monárquico. Nessa sociedade, as instituições sociais, como a escola, o

exército, a fábrica, o hospital e a prisão, assumem o papel de vigiar, normatizar e examinar

constantemente os indivíduos, de modo a controlar seus comportamentos, seus corpos e

suas mentes.

A sociedade disciplinar se baseia em três técnicas principais: a vigilância, que consiste

em observar e registrar os indivíduos, usando instrumentos como o relógio, o calendário, o

registro, o arquivo, etc.; a normalização, que consiste em estabelecer e impor padrões de

conduta, usando instrumentos como a regra, a nota, o diploma, o certificado, etc.; e o exa-

me, que consiste em avaliar e classificar os indivíduos, usando instrumentos como a prova,

o teste, o interrogatório, o diagnóstico, etc.

O objetivo da sociedade disciplinar é produzir indivíduos dóceis e úteis, que sejam ca-

pazes de se adaptar às exigências do sistema produtivo e que sejam submissos à autori-

dade. Para isso, a sociedade disciplinar usa o poder de forma sutil, invisível e capilar, que

penetra nos mínimos detalhes da vida dos indivíduos, sem que eles percebam ou resistam.

Um exemplo de sociedade disciplinar é o panóptico, um modelo de prisão idealizado pelo

filósofo inglês Jeremy Bentham, que consiste em uma torre central cercada por celas indivi-

duais, de onde o carcereiro pode observar todos os prisioneiros, sem que eles saibam se es-

tão sendo vistos ou não. O panóptico cria um efeito de poder que faz com que os prisioneiros

se vigiem a si mesmos, se comportem de acordo com as normas e se submetam à disciplina.

Para Foucault, o panóptico é uma metáfora da sociedade disciplinar, que se estende

por todas as esferas da vida social, criando um estado de vigilância permanente, que molda

as subjetividades e as relações sociais. Foucault propõe, então, uma crítica à sociedade

disciplinar, buscando desvendar seus mecanismos de poder e suas formas de resistência.

Byung-Chul Han parte do pensamento de Michel Foucault para destacar que em lugar

da proibição, do mandamento ou da lei, típicos da sociedade disciplinar entra o projeto, a

iniciativa e a motivação, típicos do que ele denomina de sociedade do cansaço. Segundo

Byung-Chul Han a sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não e a sua negatividade

gera loucos e delinquentes enquanto a sociedade do cansaço, ao contrário, produz depres-

sivos e fracassados.

Outro modo de entender a passagem da sociedade marcada pela negatividade da

disciplina para a sociedade em que prevalece a positividade da autodisciplina é olhando

para as instituições que caracterizam cada época. Na sociedade da negatividade predo-

minam os hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas. Na sociedade da positividade

predominam enquanto instituições as academias, shopping centers, clínicas de estética,

SPAs, condomínios clubes. Na sociedade da negatividade os habitantes são cobrados pela

obediência e na sociedade da positividade são cobrados para empreender, sobretudo, co-

brados para que sejam “empresários de si mesmos”. Obviamente isso não significa que as

instituições típicas da sociedade disciplinar tenham desaparecido, sabemos que as prisões

continuam lotadas assim como os hospitais, entretanto, o que Byung-Chul Han destaque é

a predominância em termos símbolos que representam os ideias culturais de uma época.

Um terço dos brasileiros relata ansiedade, problemas com sono e ali-

mentação, diz Datafolha

Três em cada dez brasileiros se sentem ansiosos, têm problemas com

sono e com a alimentação sempre ou frequentemente. Um quarto ma-

nifesta pouco interesse ou prazer em fazer as coisas e um quinto rela-

ta dificuldade de atenção ou concentração.

Ainda assim, só 7% da população avalia a sua saúde mental pessoal

como ruim ou péssima, sendo a faixa etária entre 16 e 24 anos a mais

insatisfeita (13%). De uma forma geral, 70% dos brasileiros conside-

ram a saúde mental como ótima ou boa, e 23%, como regular.

Os dados foram aferidos em pesquisa do Datafolha, realizada de 31 de

julho a 7 de agosto. Foram ouvidas 2.534 pessoas com 16 anos ou mais em 169 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para

mais ou para menos. A população brasileira a partir de 16 anos é estima-

da em 158 milhões de pessoas, de acordo com o Censo 2022.

Existe uma clara dissonância entre os sintomas relatados, que deno-

tam problemas com a saúde mental, e como as pessoas avaliam o

seu estado emocional geral.

Enquanto apenas 5% dos homens e 9% das mulheres consideram a

saúde mental pessoal como ruim ou péssima, 23% e 38%, respectiva-

mente, se sentem ansiosos sempre ou frequentemente.

Entre as mulheres, 27% já tiveram diagnóstico de ansiedade e 20% de

depressão, o dobro da taxa registrada entre os homens (14% e 10%,

respectivamente).

Acesso à matéria completa:

https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2023/08/um-terco-dos-brasileiros-relata-

-ansiedade-problemas-com-sono-e-alimentacao-diz-datafolha.shtml

 

Um campo em que aparece de modo claro a passagem de uma sociedade da negati-

vidade para a sociedade da positividade é o modo como a morte é representada em cada

sociedade. Nas sociedades da positividade se encurta o tempo dos funerais, passa-se dos

túmulos para a cremação e para o cemitérios-jardim. A finitude representada pela fixidez da

sepultura é substituída pela volatilidade das cinzas jogadas ao mar ou espalhadas ao pé de

uma árvore. Os limites da morte, representados no túmulo retangular que afunda no chão,

são substituídos no imaginário pelo vento, pelo azul dos mares e do céu e pelo crescimento

das árvores. O morrer também passa a ter a obrigação de caber numa bela foto no feed das

redes sociais.

A atualidade da abordagem feita por Byung-Chul Han aparecerá no modo como contex-

tualiza os modernos transtornos mentais às características presentes na sociedade do can-

saço. A sociedade disciplinar e seu caráter repressor foi amplamente descrita por Sigmund

Freud. De acordo com Byung-Chul Han “O inconsciente freudiano não é uma configuração

atemporal. É um produto da sociedade disciplinar repressiva, da qual nós estamos nos

afastando cada vez mais” (2015, p. 80). Os transtornos predominantes na identificação de

Freud eram a histeria e a melancolia, hoje são a depressão, o burnout, o déficit de atenção

e a ansiedade. Tais transtornos não surgem da negatividade da sociedade disciplinar, mas

do execesso de positividade da sociedade do cansaço. O desempenho ao qual todos estão submetidos, segundo Byung-Chul Han, conduz à uma troca constante de identidade e essa

mudança permanente necessita de mais e mais produção, ou seja, ser uma pessoa “flexí-

vel” e “reiventar-se” permanentemente produz o esgotamento dos indivíduos.

Outro modo de demonstrar a passagem da sociedade disciplinar para a sociedade do

cansaço aparece nas formas de se lidar com os sentimentos negativos naturais da vida:

luto, conflitos, frustrações, medos etc. Byung-Chul Han destaca que a elaboração desses

conflitos demanda tempo e a aceleração contemporânea já não mais permite tempo para

esse tipo de solução para tais problemas humanos. O uso crescente de medicamentos para

tratamento dos transtornos mentais é um dos sinais dessa mudança cultural. Segundo o

autor: “É muito mais simples lançar mão de antidepressivos que voltam a restabelecer o

sujeito funcional e capaz de desempenho (idem, p. 98).

Seguindo sua lógica de constraste entre a sociedade disciplinar e a sociedade do de-

sempenho, sinônimo também de sociedade do cansaço destaca-se que os indivíduos já

não concorrem mais com outros indivíduos, mas concorrem consigo mesmos ao se tor-

marem por referência absoluta no trabalho e na vida. Nessa concorrência consigo mesmo

ele se vê forçado a se superar constantemente e ao não conseguir fazê-lo sempre, acaba

sucumbindo ao sentimento de fracasso. As consequências para a saúde mental são exem-

plarmente descritas por Byung-Chul Han:

A sociedade do desempenho é uma sociedade da autoexploração. O

sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se comple-

tamente (burnout). Ele desenvolve nesse processo um agressividade,

que não raro se agudizar desemboca num suicídio. O projeto que se

mostra um projetil, que o sujeito de desempenho direciona contra si

mesmo (2015, p. 100)”

 

O trabalho home office e o trabalho por aplicativos tornaram-se símbolos da fase

atual do capitalismo. Na perspectiva da sociedade do cansaço trata-se de uma lógica para-

doxal que combina num só sujeito liberdade e coação. Já não é preciso mais uma vigilância

e um controle externos, mas o próprio indivíduo vigia a si mesmo se cobra por mais pro-

dutividade. De acordo com Han “o sujeito do desempenho acaba entregando-se à coação

livre a fim de maximizar seu desempenho” (2015, p. 104). Trata-se de uma necessidade do

sistema capitalista atual essa mudança do registro da exploração externa para a autoexplo-

ração, o trabalhador passa a ser ao mesmo tempo o algoz e a vítima, o senho e o escravo.

Ganha cada vez mais relevo, nos dias atuais, a noção de positividade tóxica. Mais

uma vez o pensamento provocativo de Byung-Chul Han ajuda a compreender porque a po-

sitividade pode se tornar algo tóxico para os seres humanos. Os ajustes são feitos pelas

pessoas na forma de investimentos para o melhoramento de si mesmos com vistas à mais

produtividade e realização pessoal. A proposta da sociedade do cansaço é uma otimização de si mesmo para funcionar melhor, Byung-Chul Han sentencia: “Nós nos otimizamos rumo

à morte, para melhor poder funcionar” (2015, p. 115).

A contribuição de Byung-Chul Han é importante para compreensão crítica desse es-

tágio da modernidade. Sua reflexão é ao mesmo tanto uma continuidade da tradição crítica

estabelecida desde os primórdios da sociologia quanto uma atualização ao momento alta-

mente tecnológico em que vivemos.

 

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Fizemos um percurso longo para mostrar como as ciências sociais buscam com-

preender desde os primórdios os fatores de adoecimento na sociedades modernas.

Porém, é importante que façamos a contextualização dessa leitura para o nosso tem-

po e espaço. Abaixo você tem um vídeo que apresenta o tema do sucídio numa pers-

pectiva de saúde coletiva. Trata-se de reflexão sobre o município de Venâncio Aires, no

Rio Grande do Sul, com as taxas mais elevadas de suicídio do Brasil. Assista o vídeo e

preste atenção aos múltiplos fatores (culturais, econômicos e sociais) apresentados

pelos entrevistados num esforço para entender esse fenômeno complexo.

Cidade no RS investiga as causas de seus altos níveis de depressão e suicídio | BRASIL NO DIVÃ

 

MINHAS ANOTAÇÕES

SOCIEDADE DA NEGATIVIDADA

SOCIEDADE DA POSITIVIDADE

Nas sociedades da positividade se encurta o tempo dos funerais, passa-se dos

túmulos para a cremação e para o cemitérios-jardim. A finitude representada pela fixidez da

sepultura é substituída pela volatilidade das cinzas jogadas ao mar ou espalhadas ao pé de

uma árvore. Os limites da morte, representados no túmulo retangular que afunda no chão,

são substituídos no imaginário pelo vento, pelo azul dos mares e do céu e pelo crescimento

das árvores. O morrer também passa a ter a obrigação de caber numa bela foto no feed das

redes sociais.

SOCIEDADE DO CANSAÇO

A atualidade da abordagem feita por Byung-Chul Han aparecerá no modo como contex-

tualiza os modernos transtornos mentais às características presentes na sociedade do can-

saço. A sociedade disciplinar e seu caráter repressor foi amplamente descrita por Sigmund

Freud. De acordo com Byung-Chul Han “O inconsciente freudiano não é uma configuração

atemporal. É um produto da sociedade disciplinar repressiva, da qual nós estamos nos

afastando cada vez mais” (2015, p. 80).

O desempenho ao qual todos estão submetidos, segundo Byung-Chul Han, conduz à uma troca constante de identidade e essa

mudança permanente necessita de mais e mais produção, ou seja, ser uma pessoa “flexí-

vel” e “reiventar-se” permanentemente produz o esgotamento dos indivíduos.

 

UA5 –

Unidade de Aprendizagem 5

5 Relações e vínculos humanos na modernidade: trabalho e família

OBJETIVOS

1 Analisar os impactos da modernidade sobre o trabalho

2 Introduzir conceitos básicos das Ciências Sociais sobre família

3 Suscitar reflexãos sobre as transformações na estrutura

dos vínculos familiares no contexto da modernidade

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Faz alguns anos, tempo que se usava TV por assinatura e nãohavia ainda o streaming,

estava zapeando pelos canais e parei num canal no qual passava um filme italiano. A cena

era a seguinte: uma jovem passava apressada e um tanto angustiada passava pela Fontana

di Trevi. Não parou para jogar a moedinha e fazer um desejo, como é tradição. Ela entrou

numa casa nas proximidades da famosa Fonte. A sala era mal iluminada, e ela assentou-se,

arrumou a bolsa no colo e depois de alguns instantes entrou um homem e se assentou. Era

um mago, um adivinhador que diante diante dele uma bola de cristal. Olhou firmemente (e

com um ar de charlatão) e disse três palavras apenas: lavore, salute o amore?

Desliguei a televisão e fiquei ali sentado, por alguns minutos pensando: tantos anos

estudando o comportamento humano, a sociedade, a história e o mago do filme havia resu-

mido todas as lutas humanas em três palavras: lavore, salute o amor? Em português: tra-

balho, saúde ou amor? E não é que ele tinha razão. Os problemas e lutas dos seres humans

estão sempre numa dessas áreas: trabalho, saúde e amor.

A proposta dessa unidade de aprendizagem é lançar um olhar a partir das Ciências

Sociais para essas dimensões da vida humana. Na unidade anterior já foi examinado o

tema do trabalho e da tecnologia sob o viés da sociedade do cansaço. Nessa unidade lan-

çaremos outros olhares sobre o tema do trabalho e somaremos a ele o exame dos vínculos

humanos, especialmente no tema da família e também o tema do lazer, do tempo livre.

Como já tratamos do tema do adoecimento na unidade anterior, deixaremos de lado o tema

da saúde.

É importante frisar que metodologicamente a leitura apresentada busca a objetivi-

dade, isso para que seja feita da melhor forma possível. Entretanto, no contexto do curso teológico o objetivo é que a leitura da realidade feita pelas Ciências Sociais seja utilizada

para intervenções à luz dos valores cristãos.

Mãos à obra.

Definição de trabalho

Em todas as culturas o trabalho está na base da vida social. O trabalho é a execução

de atividades que exigem o emprego de esforço mental e físico e cuja finalidade é a pro-

dução de bens e serviços que satisfaçam as necessidades humanas. A categoria trabalho

abrange tanto as atividades remuneradas quanto as não remuneradas. Uma das principais

características das sociedades modernas é a transformação do trabalho em emprego re-

munerado. Embora o trabalho não-remunerado não tenha desaparecido – continua a existir

por exemplo, na forma do trabalho doméstico ou mesmo do trabalho voluntário – a grande

maioria dos indivíduos no mundo moderno obtém os recursos econômicos para sua manu-

tenção por meio de um emprego remunerado.

O trabalho, nas sociedades modernas, exerce um papel fundamental na construção

da identidade social dos indivíduos. Deste modo, o tipo de trabalho e a renda que se obtém

por meio dele exercem forte influência sobre o lugar de cada indivíduo na sociedade, sobre

as relações sociais que estabelece com outras pessoas e sobre a sua própria auto-estima.

Compreensão do termo do ponto de vista sócio-político-econômico

O trabalho está sempre inserido num sistema econômico. No sistema capitalista

moderno o trabalho é essencialmente industrial e urbano. Apenas uma reduzida parcela

da população permanece vinculada à agricultura ou residindo na área rural. O processo

de transferência da mão de obra trabalhadora do campo para a cidade, ocorrido a partir da

Revolução Industrial do século XVIII, foi sempre marcado por violência. Com a mecaniza-

ção das fazendas as pessoas precisam partir em busca do trabalho na cidade, mas sem

qualificação, nada lhes garante que encontrarão trabalho ou que, caso o encontrem, a re-

muneração seja suficiente para sua manutenção. A dimensão social do trabalho reforçou a

convicção de que a relação trabalhista não pode ser relegada apenas à esfera econômica.

A esfera política deve exercer seu papel para que o trabalho seja visto como um direito e

para que as condições nas quais é exercido sejam condizentes com a dignidade humana. O

trabalho como direito foi consagrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem das

Nações Unidas nos seguintes termos: Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha

de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego

(Art. 23). Desde então, a grande maioria dos países tem desenvolvido a noção de trabalho

como direito e atribuído ao Estado um papel de regulação das relações trabalhistas e de

proteção ao trabalhador.

 

PRA PENSAR

PROPÓSITO DO TRABALHO

Qual é o propósito do trabalho? Aqueles que estão tentando de-

senvolver uma compreensão cristã a esse respeito consideram,

em primeiro lugar, a Criação. A Queda fez com que alguns tipos

de trabalho se tornassem tediosos (o solo foi amladiçoado e

seu cultivo se tornou possível somente por meio do trabalho

pesado e do suor), mas o trabalho em si é uma conquência da nossa criação à ima-

gem de Deus. O próprio Deus é representado em Gênesis 1 como trabalhador. Seu

plano criativo se desenrolou dia a adia, ou estágio a estágio. Alé do mais, quando viu

o resultado do seu trabalho, declarou-o como sendo “bom”. Ele sentiu-se plenamente

satisfeito com o trabalho que havia feito. Seu último ato, antes de descansar no séti-

mo dia, foi criar os seres humanos e, ao fazê-lo, fez deles trabalhadores também. Deu

a eles uma parte do seu próprio domínio sobre a terra e disse-lhes para exercerem

seus dons criativos em subjugá-la. Assim, desde o princípio homens e mulheres têm

sido mordomos privilegiados de Deus, comissionados a guardar e desenvolver o meio

ambiente em seu nome.

(STOTT, J. Os cristãos e os desafios contemporâneos. Viçosa: Ultimato, 2014, p. 227)

 

História das relações de trabalho

Antes da industrialização a maior parte do trabalho era realizado em casa e o traba-

lhador dominava todas as etapas do processo de confecção de um produto. O trabalho na

período industrial moderno produziu duas grandes mudanças: saída do trabalho da casa

para a fábrica e a divisão do trabalho em partes a serem executadas por indivíduos diferen-

tes, conhecida também como divisão do trabalho. A divisão do trabalho aumentou a pro-

dutividade de modo espantoso, mas foi responsável pela alienação dos trabalhadores. Karl

Marx salientou que o trabalhador perdeu o controle sobre o processo produtivo e tornou-se

apenas mais uma peça na engrenagem da maquinaria industrial. O taylorismo e o fordismo,

como sistemas que procuram extrair o máximo da divisão industrial do trabalho, são as

principais expressões da submissão dos seres humanos às máquinas. O ritmo de produção

foi acelerado e como conseqüência o ser humano foi submetido ao ritmo acelerado das

máquinas. Marx completava a explicação do processo de alienação destacando que, de um

lado o, trabalho alienado aumentava a produção industrial e a riqueza dos proprietários das

fábricas e, de outro lado, aumentava a insatisfação dos trabalhadores por serem reduzidos

a um apêndice das máquinas.

A crítica das relações de trabalho, inaugurada no século XIX, propiciou a organização

de movimentos de reinvindicação de melhorias para os trabalhadores. Destes movimentos

surgiram os sindicatos e as políticas públicas ligadas ao trabalho. Diversas conquistas fo-

ram feitas (redução da jornada de trabalho, direito à greve, condenação do trabalho infantil,

licença maternidade etc.), mas a essência das relações de trabalho nas economias capita-

listas não foi alterada.

Tendências no mundo do trabalho

A partir da década de 60 do século passado uma série de mudanças começaram a ocor-

rer no mundo do trabalho. Para caracterizar o conjunto de mudanças que estavam ocorrendo

surgiram dois termos: sociedade pós-industrial (1967) e sociedade da informação (1982).

Daniel Bell criou o termo sociedade pós-industrial para indicar, no caso dos EUA e de

outros países desenvolvidos, a transição de uma economia onde a maioria dos empregos

estava indústria para uma economia na qual a maior parte dos empregos encontrava-se no

setor de serviços, principalmente nos serviços relacionados com saúde, educação, lazer,

pesquisa e administração. As indústrias continuam a existir, mas por conta da revolução

tecnológica geram cada vez menos empregos diretos. O termo sociedade da informação

foi popularizado por John Naisbitt em seu livro Megatrends (1982). Naisbitt continuava tra-

balhando dentro das referências de Bell acentuando, entretanto, que a informação passou

a ser o recurso estratégico numa economia pós-industrial.

O novo lugar da informação na produção ensejou novas experiências no mundo do

trabalho. Essas novas experiências tinham o objetivo comum de superar as limitações do

modelo inflexível de trabalho criado pelas linhas de montagem industrial. Produção flexível,

produção em grupo, trabalho em equipe são algumas das experiências feitas na busca de

adaptação do trabalho aos novos tempos. Não obstante às inovações tecnológicas e os

esforços de algumas experiências para flexibilização do trabalho, constata-se que os tra-

balhadores, com as novas tecnologias de informação, estão prolongando cada vez mais a

jornada de trabalho. Em muitos casos a jornada de trabalho pode chegar a 60 ou mais horas

de trabalho semanal.

As mulheres e o trabalho

Um capítulo especial do trabalho no mundo moderno diz respeito ao papel das mulhe-

res. Com a tendência à diminuição no número de filhos por casais e com o aumento da es-

colaridade as mulheres estão buscando com maior freqüência o trabalho fora dos limites

da casa. Todavia, persistem ainda desigualdades relacionadas ao gênero. Duas delas são

mais freqüentes: segregação ocupacional e disparidade salarial. A segregação ocupacional

diz respeito ao fato de cargos de direção ficarem na sua maioria com os homens, ou ainda, de algumas ocupações (cargo de secretaria, enfermagem, serviço social, cuidado de crianças

etc.) serem reservadas quase que exclusivamente às mulheres. A disparidade salarial apare-

ce naquelas ocupações em que mulheres, em condições de igualdade com os homens em

matéria de qualificações, obrigações e desempenho, recebem remuneração inferior.

Desemprego

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define desemprego nos seguintes ter-

mos: um desempregado é um indivíduo que não possuindo um emprego, têm disponibilida-

de para iniciar no trabalho dentro de duas semanas e que buscou, sem êxito, um emprego

no mês anterior. Duas distinções podem ser feitas ainda: o desemprego temporário que

compreende aqueles indivíduos que estão formados e buscam ingressar no mercado de

trabalho ou aqueles que estão numa fase de recolocação; desemprego estrutural diz respei-

to às mudanças na economia que fazem com que determinadas profissões desapareçam,

seja por conta das inovações tecnológicas ou porque os produtos gerados naquele sistema

ocupacional passaram a ser importados de uma outra localidade do globo. Os índices de

desemprego estão sempre em oscilação. No Brasil os índices registrados pelo Instituto Bra-

sileiro de Geografia e Estatística (IBGE) têm oscilado nas últimas duas décadas entre 6% e

12% da população economicamente ativa.

 

PRA PENSAR

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) E TRABALHO

A IA poderia ajudar a criar novos empregos humanos de outra

maneira. Em vez de os humanos competirem com a IA, poderiam

concentrar-se nos serviços à IA e na sua alavancagem. Por exem-

plo, a substituição de pilotos humanos por drones eliminou alguns

empregos, mas criou muitas oportunidades novas em manuten-

ção, controle remoto, análise de dados e segurança cibernética. As Forças Armadas dos

Estados Unidos precisam de trinta pessoas para operar cada drone Predator ou Reaper

sobrevoando a Síria, enquanto a análise das informações coletadas por ele ocupa pelo

menos mais oitenta pessoas. Em 2015 a Força Aérea dos Estados Unidos não contava

com uma quantidade suficiente de humanos treinados para preencher todas essas posi-

ções, e enfrentava, ironicamente, uma crise para tripular suas aeronaves não tripuladas.

Se for assim, é possível que o mercado de trabalho em 2050 se caracterize pela coope-

ração, e não pela competição, entre humanos e IA. Em campos que vão do policiamento

à atividade bancária, equipes formadas por humanos e IA poderiam superar o desempe-

nho tanto de humanos quanto de computadores. (HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o

século 21 (Portuguese Edition) (p. 49). Companhia das Letras. Edição do Kindle.)

 

Além das estatísticas de desemprego é importante considerar o impacto bastante ne-

gativo que a experiência do desemprego têm sobre a vida das pessoas. O desemprego pode

desencadear problemas de ordem financeira, problemas de saúde (física e mental) e nos

relacionamentos sociais e afetivos de uma pessoa. A estruturação da identidade pessoal

em torno da profissão potencializa o impacto negativo que a experiência do desemprego

tem sobre a vida das pessoas.

A teologia cristã e a ética do trabalho

Destacamos no início que o trabalho representa um elemento importante na formação

da identidade de uma pessoa. Jesus se recusou a identificar o valor de qualquer pessoa

com a sua profissão. Pouco importava se essa pessoa era um pescador ou um coletor de

impostos. Felizmente para Zaqueu, que não foi visto por Jesus como o coletor de impostos,

mas como alguém que poderia tornar-se “um filho de Abraão” (veja Lucas 19.1-10). Deste

modo, para nós cristãos, a resposta ao convite de Jesus – “Siga-me” – é vital para definição

de nossa identidade.

A noção de vocação (chamado) é um termo chave para compreensão da relação que o

cristão mantém com o trabalho. Em primeiro lugar somos “vocacionados/chamados” por

Deus para sermos cristãos. Paulo afirma: “…peço a vocês que vivam de uma maneira que

esteja de acordo com o que Deus quis quando chamou vocês (Ef 2.1). Em segundo lugar

somos chamados a desempenhar nossa atividade profissional no mundo como um serviço

oferecido a Deus. Sobre isto Paulo afirma: “O que vocês fizerem façam de todo o coração,

como se estivessem servindo ao Senhor e não as pessoas” (Cl.23).

As noções de justiça e solidariedade também são importantes para uma compreensão

cristã das relações de trabalho. A Bíblia encerra recomendações para que os patrões tratem

com justiça os trabalhadores, por exemplo: “Não oprimirás o trabalhador pobre e necessi-

tado, seja ele de teus irmãos, ou seja dos estrangeiros que estão na tua terra e dentro das

tuas portas. No mesmo dia lhe pagarás o seu salário, e isso antes que o sol se ponha; por-

quanto é pobre e está contando com isso; para que não clame contra ti ao Senhor, e haja

em ti pecado. (Dt 24.14-15); Lembra-nos que “o trabalhador é digno de seu salário” (1ª Tm

5.8), e que os patrões não devem reter “fraudulosamente” o salário de seus empregados (Ml

3.5; Tg 5.4). Sob a perspectiva da solidariedade destacam-se as orientações de socorro aos

pobres (Ex 23.11; Dt 15.11; Mt 25.35;Gl 2.10). A percepção em nossos dias das dimensões

estruturais do desemprego e da pobreza devem impulsionar as comunidades cristãs à ini-

ciativas de solidariedade que ultrapassem os limites do assistencialismo. Tais iniciativas

podem estender-se desde programas de qualificação e requalificação profissional até o

desenvolvimento de empresas fundamentadas na noção de economia solidária.

 

As mudanças na relações familiares

Uma das áreas em que as transformações trazidas pela modernidade foi sentida com

mais intensidade são os vínculos familiares. Desde seus primórdios as Ciências Sociais

têm trabalhado com definições básicas sobre esse universo das relações familiares. Fa-

mília sob o ponto das Ciências Sociais é um grupo de pessoas diretamente unidas por

conexões parentais sendo que os membros adultos se responsabilizam pelos cuidados

com as crianças. Parentesco é um conceito importante para o entendimento da família e

se entende parentesco a partir das conexões entre indivíduos estabelecidas por casamen-

to e por linhas de descendência que ligam parentes consanguíneos (mães, pais, irmãos,

etc). Casamento é outro conceito-chave e sob a perspectiva das Ciências Sociais é definido

como uma união sexual entre duas pessoas adultas e precisa ser validado socialmente, isto

é, reconhecido e aprovado.

Uma das principais mudanças trazidas pela urbanização foi a passagem da família am-

pliada para a família nuclear. A primeira compreendia uma convivência cotidiana com avós,

tios, primos e seus respectivos conjuges. A família nuclear compreende pai e mãe vivendo

junto com seus filhos. Evidentemente os laços amplos de parentesco existem, mas não

existe a dinâmica de convivência cotidiana.

Algumas tendências se apresentam como globais no que se refere às famílias no sécu-

lo XXI. Em algumas regiões do planeta são mais lentas, mas a direção parece ser a mesma.

Vejamos

Casamento – menos pessoas estão se casando e aquelas que se casam o fazem cada

vez mais tarde, ou seja, mais velhas.

Filhos – a taxa de natalidade vem caindo na maioria dos países ocidentais e asiáticos.

Aqueles que optam por ter filhos acabam fazendo mais tarde e tendo menos filhos que seus

pais.

Divórcio – as taxas de divórcio continuam crescendo no mundo inteiro. Estima-se que

cerca de 40% dos casamentos terminam em divórcio.

Famílias monoparentais – trata daquelas famílias em que as crianças vivem com ape-

nas um dos pais.

Não é preciso grande esforço para perceber que os fatores acima estão interligados e

se reforçam mutuamente. Uma contribuição importante para o entendimento dos relacio-

namentos conjugais foi oferecido pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata do conceito

de relacionamento puro para descrever a atitude das pessoas em relação ao casamento.

Segundo ele, um relacionamento puro:

 

[…] refere-se a uma situação em que se entra em uma relação social

apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada pes-

soa da manutenção de uma associação com outra, e que só continua

enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfa-

ções suficientes, para cada um individualmente, para nela permane-

cerem (Giddens, 1993, p. 68-69).

 

De um lado, constata Giddens, as pessoas estão livres para assumir compromissos por

amor, sem as pressões econômicas ou familiares tão presentes no mundo antigo. Porém,

o casamento fundamentado na subjetividade sentimental e em expectativas de autossatis-

fação por parte dos cônjuges empurra os relacionamentos para a instabilidade e o elevado

nível de divórcios das sociedades modernas.

 

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Olhar para os dados pode ser uma ferramenta importante para a igreja pensar ações

específicas para diferentes públicos. Veja abaixo algumas informações sobre divórcio

no Brasil e pense sobre caminhos ministeriais para auxiliar as famílias:

– De acordo com o IBGE No Brasil, em 2010, o tempo médio entre a data do casamento

e a data da sentença ou escritura do divórcio era de cerca de 16 anos. Em 2021, houve

uma diminuição do tempo do casamento para 13,6 anos. Nas grandes regiões, esse

tempo médio variou entre 15 a 17 anos em 2010 e entre 12 a 15 anos em 2021.

– A mulher é a responsável pela guarda dos filhos na maioria dos divórcios: 54,2% em

2021, ante 57,3% em 2020.

– O adiamento da maternidade entre as mulheres brasileiras e a progressiva mudança

da estrutura de nascimentos no país aparecem de forma clara nas estatísticas do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A parcela de mães acima dos 30

anos entre as crianças nascidas em um ano avançou de 24% em 2000 para 37,3% em

2021, segundo as Estatísticas do Registro Civil 2021

(Fonte:https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noti-

cia/2023/02/16/divrcios-voltam-a-bater-recorde-no-pas-diz-ibge.ghtml)

 

 

MINHAS ANOTAÇÕES

 

 

MODULO 2

CIÊNCIAS SOCIAIS – MODOS DE USAR NA TEOLOGIA

UA1 –

Unidade de Aprendizagem 1

1. As ciências sociais utilizadas para entender o lugar da religião na sociedade

OBJETIVOS

1 Compreender a discussão sobre a secularização na modernidade

2 Examinar os efeitos do pluralismo para a religião

CIÊNCIAS SOCIAIS – MODOS DE USAR NA TEOLOGIA

Abertura do módulo

Neste segundo módulo vamos olhar para diferentes usos

das Ciências Sociais quando se trata da religião. A ideia é mos-

trar quais são as combinações possíveis entre Ciências Sociais

e teologia, quando elas aparecem juntas e o que se pretende

em cada caso. A organização do módulo parte do pressuposto

que as Ciências Sociais oferecem ferramentas importantes para

compreensão do lugar da religião na sociedade moderna, do lu-

gar da fé na vida das pessoas, para engajamento de pessoas

religiosas e suas instituições em causas sociais, para o enten-

dimento das dinâmicas de crescimento ou declínio da igreja ao

longo da história e para compreensão de aspectos da vida social

que estão presentes nos textos bíblicos.

Além de ser praticamente impossível esgotar a literatura em

cada uma das combinações entre Ciências Sociais e teologia,

isto foge ao propósito dessa disciplina. Entretanto, busca-se que

o/a aluno/a esteja habilitado a perceber os múltiplos usos das

Ciências Sociais na teologia e seja capaz de fazer escolhas so-

bre as combinações mais adequadas para os desafios que se

apresentam nos seus estudos e ministério.

 

PARA INÍCIO DE CONVERSA

A teoria da secularização é uma das principais abordagens da sociologia da religião

para compreender as transformações do fenômeno religioso nas sociedades modernas.

Segundo essa teoria, a modernidade implica um processo de racionalização, diferenciação

e individualização das esferas sociais, que leva a uma perda de influência e de relevância

da religião na vida pública e privada. A religião, assim, passa a ser uma questão de escolha

pessoal, sem interferir nas decisões políticas, econômicas, científicas e culturais. A teoria

da secularização pressupõe, portanto, que a modernidade conduz a um declínio da religião,

tanto em termos de participação, como de crença e de identidade. Vamos ver se é assim

mesmo!

Vamos ao trabalho!

A religião na modernidade segundo a teoria da secularização

Autores clássicos da sociologia, que vimos no módulo anterior, Karl Marx, Émile

Durkheim, Max Weber de diferentes formas associaram a religião a uma forma de cons-

ciência pré-moderna, que seria superada pelo avanço da ciência, da razão e do progresso.

Lembremo-nos que esses autores, embora tivessem suas críticas à modernidade iluminis-

ta, partilhavam seus pressupostos cognitivos. A teoria da secularização foi desenvolvida e

sistematizada a partir de dados empíricos e históricos que procuraram demonstrar como

a religião perdeu sua função social e sua plausibilidade nas sociedades ocidentais. O foco,

entretanto, sempre esteve na compreensão da religião nos países Europeus e nos Estados

Unidos. Por isso, a teoria da secularização também enfrentou muitas críticas e contes-

tações, tanto de autores que questionaram seus pressupostos teóricos e metodológicos,

como de autores que apontaram para as evidências empíricas e históricas que contrariam suas teses. Algumas das principais críticas são:

cia europeia, ignorando as especificidades e as diversidades das outras regiões do

mundo, onde a religião continua sendo um fator importante e dinâmico.

tivo e uniforme, sem levar em conta as múltiplas formas, expressões e significados

que a religião assume nas sociedades modernas.

near entre modernidade e religião, sem considerar as complexidades, as ambigui-

dades e as contradições que marcam esse processo.

tiva da religião, como algo irracional, atrasado e alienante, que deve ser superado

pela modernidade.

É a partir dessas críticas que somos desafiados a olhar para teoria da secularização

e para a própria modernidade de um modo mais complexo. Não se trata de abandonar

completamente os grandes referenciais teóricos das Ciências Sociais representados pela

teoria da secularização e pela modernidade, mas entender como os reparos críticos apre-

sentados acima levam a correções na percepção da secularização e suas relações com a

modernidade. A seguir mergulharemos na teoria da secularização e nas discussões de sua

utilidade ou não para compreensão da religião na modernidade.

A discussão começa pela sobrevivência das religiões ao longo do século XX e o seu

crescimento em algumas partes do mundo em oposição a um esperado declínio e até desa-

parecimento dos espaços sociais. Teríamos passado do “eclipse do sagrado” para o “eclip-

se da secularização”? É isso que levou um ateu confesso como Allan de Botton a propor

um novo tipo de ateísmo para ateus que não creem em Deus (óbvio), mas que gostam de

religião e estão até dispostos a se apropriarem das partes boas da religião. Eis a proposta:

O que quero fazer é inaugurar um novo tipo de ateísmo. Algo que po-

deríamos chamar de ‘ateísmo 2.0’. O que é o ateísmo 2.0? Creio que o

ponto de partida desse tipo de ateísmo é uma declaração muito sim-

ples, sem necessidade de sustentação: é claro que Deus não existe.

Não vamos discutir mais sobre isso, fim da história. Não vou tentar

convencê-los, vocês concordam comigo ou não concordam. É só o

começo. Escrevi o meu livro e quero lhes falar sobre um grupo de

pessoas que sentem algo parecido com isso. Elas dizem: eu odeio as

doutrinas da religião, mas adoro o Natal. Eu adoro a Chanucá. Adoro

a Festa do Sacrifício. Adoro a sensação de comunidade. Eu gosto de

cantar. Eu gosto da ênfase na moralidade. Eu gosto dos edifícios an- tigos. Choro durante a ‘Missa em Si Menor’, de Bach. Sou esse tipo de

pessoa. Por muito tempo, esse tipo de pessoa enfrentou uma escolha

bastante difícil. Ou você fazia força para acreditar em todos os tipos

de doutrinas religiosas e aproveitava as partes boas — Natal, Bach,

os belos edifícios —, ou deixava a sua vida espiritual nas mãos da

CNN e do Walmart. Não acho que deva ser essa a escolha. A escolha

não precisa ser tão dramática. Creio que existe a possibilidade de que

ateus como eu, talvez como alguns de vocês, façam uso da religião.

Quero lhes falar sobre como podemos roubar as partes boas da reli-

gião, deixando de lado as partes das quais não gostamos. Este é um

projeto com muito respeito pela religião e também, digamos assim,

um projeto muito herético. Perdoem-me por ser ao mesmo tempo tão

respeitoso e tão desrespeitoso. desrespeitoso. Quero analisar várias

áreas nas quais a religião pode ensinar ao moderno mundo secular

algumas lições muito interessantes. (BOTTON, A. 2017)

Se até ateus passaram a “gostar de religião” faz algum sentido ainda estudar a teoria

da secularização? Entre os extremos, de recusa ou de salvação da teoria da secularização,

a vitalidade da religião nas sociedades modernas deve ser compreendida como evidência

que impõe alguns ajustes à visão de um mundo secularizado, mas que não invalida com-

pletamente a perspectiva da secularização. É esse olhar que julgamos a mais sensato e útil

para a abordagem de um fenômeno complexo como a religião. Olhemos mais de perto o

debate sobre a teoria da secularização.

Stefano Martelli (1995) está entre aqueles que julgam a teoria da secularização inade-

quada para explicar os fenômenos religiosos. Ele analisou o papado, os grupos mágico-e-

sotéricos e os novos movimentos religiosos na Itália e no âmbito internacional, e chegou à

seguinte conclusão, no que se refere à atualidade da teoria da secularização:

Essa multiplicidade de formas e de fenômenos religiosos constituem

uma radical falsificação da tese da secularização como racionaliza-

ção unilinear e progressiva[…] a ponto de impor o abandono de tal

hipótese e de aconselhar, como propôs recentemente Roberto Ci-

priani, o término do debate, que parece, agora, unicamente fonte de

equívocos.[…] O “eclipse da secularização” é portanto, imposto pelos

fenômenos emergentes, tanto em nível nacional como internacional,

como pré-condição para um desenvolvimento adequado da teoria so-

ciológica sobre a Religião. (1995: 412-13)

Gilles Kepel (1992) analisa a emergência, a partir da década de 70, de movimentos de

“recristianização”, “reislamização” e “rejudaização”. Segundo ele são grupos com militância

transnacional e com estratégias de “reconquista” dos espaços públicos. Na argumentação

de Kepel se a modernidade implicou numa contração da esfera da religião e consequente

emancipação de setores da sociedade do domínio das instituições religiosas, como en-

sina a teoria da secularização, a exposição feita por Kepel surge, no mínimo, como ques- tionamento quanto à irreversibilidade deste processo. Cita como exemplo de tentativa de

reversão do processo de secularização a criação de redes de ensino superior por parte de

grupos evangélicos norte-americanos, com o objetivo de formar elites “recristianizadas”.

Num segundo grupo estão os autores que reafirmam a relevância da teoria da secula-

rização para compreensão do crescimento das religiões no mundo contemporâneo. Flávio

Pierucci afirma que a propagação de religiões pelo mundo, longe de desmentir a teoria da

secularização, confirma-a:

No mundo globalizado de agora, eu diria que quanto maior o núme-

ro de religiões compartilhando o mesmo espaço-tempo comprimido,

tanto mais se intensifica a secularização estrutural da cultura, seja

nas sociedades individualmente tomadas, seja no próprio não-lugar

da cultura global; e tanto mais, desta ótica, o processo histórico cul-

tural de secularização se projeta como busca e, a um só tempo, ga-

rantia de liberdade ascendente ou declinante de cada competidor reli-

gioso em particular, de cada instituição que administra a salvação, de

cada “Igreja” e, para completar, autonomizando-se também a relação

ao timing próprio dos awakenings e revivals religiosos, que podem

acontecer e durar o quanto puderem. Só que o leite já está derrama-

  1. Noutras palavras: liberdade religiosa implica um grau mínimo de

pluralização religiosa; e pluralização religiosa não é apenas um resul-

tado, mas fator de secularização crescente (1997: 259).

As religiões em circulação aumentam a pluralização religiosa e ao fazerem-no contri-

buem para o reforço de uma esfera religiosa. Segundo Pierucci, pluralização é seculariza-

ção. Desta forma é fortalecida a secularização da sociedade. Reginaldo Prandi também

vincula o crescimento das religiões à teoria da secularização:

Esse processo desencantamento da religião e da sociedade e de per-

da da importância da religião pode parecer contraditório com o fato

de que esta é uma época de grande vigor religioso, quando crenças

novas e velhas, organizadas numa miríade de igrejas e agências do

sagrado, se propagam e se multiplicam com grande velocidade mun-

do afora. Nunca se inventaram tantas religiões como hoje, o que tem

levado muitos observadores a acreditarem numa espécie de reencan-

tamento do mundo. O fato é que a religião pode crescer no mundo

desencantado, que continua desencantado. Por mais presente que a

religião possa nos parecer no dia-a-dia, as decisões mais importan-

tes e mais fundamentais e que afetam a vida de praticamente todo

o mundo são sempre tomadas sem que nenhuma referência a Deus

tenha que ser feita (1997: 63-64).

Por paradoxal que possa parecer, é justamente porque o mundo secularizou-se que as

religiões podem expandir-se em todas as direções. A expansão religiosa não combina com

monopólios religiosos. As religiões só podem expandir-se num mundo plural. Aliás, num mundo plural não lhes resta alternativa senão a expansão. Isto nos lembra o que Weber

(1987) disse sobre os efeitos da introdução da “racionalização” na indústria têxtil: “aqueles

que não fizerem o mesmo, têm de sair do negócio” (1987, 44).

Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar: chegando a um acordo com a teoria da secularização

Peter Berger é um dos autores fundamentais para o estudo da secularização. Sua dívi-

da com os autores clássicos da sociologia – Karl Marx, Emile Durkheim e Max Weber – é

inegável. Agrupamos Peter Berger entre os teóricos que propõem alguns reparos à teoria da

secularização. Berger destaca, seguindo a orientação weberiana, a conexão histórica entre

secularização e cristianismo. A secularização é o “processo pelo qual setores da sociedade

e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos” (Berger

1985: 119). Todavia, a secularização possui também um aspecto subjetivo, “isto significa,

simplificando, que o Ocidente moderno tem produzido um número crescente de indivíduos

que encaram o mundo e suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas”

(Idem, 119-20). Embora a secularização seja um fenômeno de alcance global sua distri-

buição nas sociedades não é uniforme, segundo Berger. Após a publicação de O Dossel

Sagrado (1966), P. Berger escreveu o livro Rumor de Anjos (1968), no qual já assinalava a

necessidade de revisão do paradigma da secularização:

Há evidência generalizada de que a secularização não é tão abarcadora

assim, como muitos pensaram, de que o sobrenatural, banido da res-

peitabilidade cognitiva por autoridades intelectuais, pode sobreviver em

recantos e fendas ocultas da cultura. […] Há, pois, algumas razões para

se pensar que no mínimo, bolsões de religião sobrenaturalista provavel-

mente sobreviverão dentro da grande sociedade (1997: 52, 55).

Berger não considera a sobrevivência do sobrenatural e até seu ressurgimento em al-

guns setores da sociedade como prova de erro completo por parte da teoria da seculari-

zação. Mas considera isto uma evidência empírica que impõe uma revisão da teoria da

secularização. Na sua perspectiva, tal revisão deverá levar em conta que a secularização

não é um processo unilinear ou inexorável. Trata-se de processo de permanente “interação

com forças opostas equivalentes que podem ser classificadas sob o título de contra-mo-

dernizadoras” (Idem: 178).

Poucos pensadores são capazes de uma autocrítica principalmente depois de se torna-

ram conhecidos por conta de determinada teoria. Peter Berger é merecedor de admiração

por sua humildade de aceitar que o panorama religioso mundial colocava em xeque a teo-

ria da secularização que ele havia formulado com clareza ímpar dentre os sociólogos do

século XX. Felizmente ele conseguiu aprofundar ainda mais os sinais de ajustes que vinha

emitindo nos textos anteriores e entregou, dois anos antes de seu falecimento, o livro “Os

múltiplos altares da modernidade rumo a um paradigma da religião em uma época pluralis- ta” (livro da bibliografia básica dessa disciplina).

No livro o estilo claro e descontraído que marcou toda produção de Peter Berger con-

tinua presente e é utilizado para mostrar que a modernidade não conduz obrigatoriamente

à secularização, mas ao pluralismo. Este, por sua vez, se divide em dois grupos: pluralismo

entre as religiões e pluralismo destas com os discursos seculares. O pluralismo entre as

religiões significa uma convivência amistosa entre elas. Embora cada religião possa sus-

tentar que possui a verdade divina revelada, nenhuma delas é defensora da proibição que

outros cultos e seus representantes proclamem que também estão em posse da verdade

divina. Porém, Berger acrescenta na modernidade as religiões aprenderam a conviver com a

pluralidade de discursos seculares a respeito da realidade. Um modo de entender isso, por

exemplo, é pensar que além de buscar aconselhamento matrimonial com seu líder religioso,

um casal considerará recorrer de modo legítimo ao conhecimento a um psicólogo diante de

uma crise conjugal. Dentro da teoria apresentada por Berger é uma característica das pes-

soas que vivem na moderndiade o trânsito entre realidades múltiplas” daí a metáfora dos

“múltiplos altares da modernidade”. O discurso religioso é uma realidade com sua lógica

de fé, o discurso psicológico é outra realidade com sua lógica de racionalidade científica. O

tempo todo, dirá Berger, as pessoas estão transitando entre realidades múltiplas religiosas

e seculares. Por exemplo, um investidor na bolsa de valores que seja uma pessoa religiosa

fará suas orações pela manhã pedindo a direção divina para o dia de trabalho, todavia, na

hora de tomar decisões sobre compra e venda de ações se guiará pelo conhecimento da

área econômica. Um paciente cristão não hesitará em se submeter a uma cirurgia com um

médico judeu, ainda que saiba que o médico não crê na divindade de Jesus. O paciente

confiará nas credenciais científicas do cirurgião e não nas crenças religiosas dele.

A principal diferença em relação ao modo como a secularização era apresentada antes

da revisão está na ideia de complementaridade dos discursos e não mais no seu antagonis-

  1. Em vez de “isto ou aquilo” passou-se para “isto e aquilo também”. A citação a seguir é

longa, mas resume bem o ajuste feito por Peter Berger:

A maioria das pessoas modernas é crucialmente afetada pela revo-

lução tecnológica que a ciência moderna provocou, mas o raciocínio

científico não domina a maneira como elas pensam na vida ordinária.

Eu achava que alguns dos processos básicos da modernidade – in-

dustrialização, urbanização, migração, educação – expulsavam a re-

ligião de grande parte da ordem institucional. Eu também achava que

o pluralismo, na linha do que foi definido no capítulo anterior, também

alimentava a secularização – ele privava a religião da qualidade do

dado-como-certo. Esta era uma compreensão correta. Contudo, eu

cometi um grave erro: o pluralismo enfraquece a certeza religiosa e

abre uma plenitude de escolhas cognitivas e normativas. Em gran-

de parte do mundo, contudo, muitas destas escolhas são religiosas.

Vou ligar esta compreensão com a discussão do pluralismo no último

capítulo. Houve casos pré-modernos de pluralismo. No mundo mo-

derno, o pluralismo se tornou onipresente. A modernidade não leva

necessariamente à secularização; onde isto ocorre, esta evolução não

pode ser suposta, mas deve antes ser explicada. A modernidade leva

necessariamente ao pluralismo. Ela na verdade coloca a fé diante de

um desafio significativo, mas este é diferente do desafio da seculari-

zação. (BERGER, 2017, Edição do Kindle.)

Importante lembrar do fundamentalismo e do relativismo

Fundamentalismo e relativismo também são tratados no livro como modos de tentar

afastar o pluralismo de discursos trazidos pela modernidade. No caso do fundamentalismo

o cultivo da certeza e a recusa à legitimidade de outros discursos – religiosos concorrentes

e científicos – toma a forma de Governos totalitários, os casos mais conhecidos são regi-

mes do Oriente Médio e a Coréia do Norte ou de pequenas seitas que tentam isolar seus

membros de todo contado com a sociedade. Diante do pluralismo apresentado pela moder-

nidade é muito difícil para as propostas fundamentalistas conseguirem obter êxito numé-

rico significativo e duradouro. Seitas fundamentalistas parecem condenadas a encontrar

adeptos em pequenos nichos das sociedades em situação de modernidade.

O relativismo também é examinado por Berger e consistiria numa espécie de transfor-

mação da incerteza num credo. A proposta relativista é que a verdade absoluta não existe

ou é inacessível. É como se o relativismo fosse uma espécie de fundamentalismo ao aves-

  1. Nietzsche já havia captado o impulso religioso presente na pregação relativista ao co-

locar nos lábios do velho Papa: “ó Zaratustra, tu és mais devoto do que acreditas, com uma

tal descrença! Foi algum Deus em ti que te converteu a teu ateísmo” (NIETZSCHE, F. 1983,

  1. 257) No dia a dia o relativismo absoluto é impraticável uma vez que as pessoas tomam

decisões levando em conta determinadas certezas.

PENSE NISSO

O livro “A fé na era do ceticismo: como a razão explica as cren-

ças divinas” de Timothy Keller é um exercício argumentativo so-

bre como o ministério cristão pode ser exercido num contexto

de pluralismo. O texto que segue ilustra algumas das estraté-

gias que podem ser utilizadas diante de uma argumentação tí-

pica do relativismo frente à reivindicação de certeza por parte

de pessoas religiosas.

“Cada religião exerga uma parte da verdade espiritual, mas ne-

nhuma delas é capaz de enxergar a verdade integral”

Às vezes esse argumento é ilustrado com a história dos cegos e do elefante. Vários

cegos seguiam seu caminho quando encontraram um elefante que os deixou tocá-lo e

senti-lo. “Essa criatura é comprida e flexível como uma cobra”, disse o primeiro cego,

segurando a tromba do animal. “Dejeito nenhum – ela é grossa e redonda como um

tronco de árvore”, disse o segundo cego, apalpando a perna do elefante. “Não, ela é

grande e chata”, disse o terceiro cego, tocando a barriga do bicho. Cada cego podia

sentir parte do elefante – nenhum deles era capaz de ver o elefante todo. Da mesma

maneira, argumenta-se, as religiões do mundo têm, cada uma, o conhecimento de

uma parte da verdade acerca da realidade espiritual, mas nenhuma delas é capaz de

ver o elefante todo ou reivindicar uma visão abrangente da verdade.

Essa ilustração prejudica em vez de ajudar quem a utiliza. A história é contada do

ponto de vista de alguém que não é cego. Como saber que cada cego vê apenas parte

do elefante, a menos que você reivindique ser capaz de ver o elefante todo? Há uma

aparência de humildade na afirmação de que a verdade é muito maior do que a capa-

cidade de qualquer de nós de apreendê-la, mas quando usada para invalidar todas as

reivindicações de conhecer a verdade, ela é, com efeito, uma arrogante reivindicação

de um conhecimento superior a [todos os outros] … Precisamos indagar: “Qual pers-

pectiva [absoluta] a partir da qual você reivindica ser capaz de relativizar todas as

reivindicações absolutas que essas Escrituras distintas fazem?

Como saber que nenhuma religião consegue enxergar a verdade integral, a menos que

você mesmo tenha o conhecimento superior, abrangente, da realidade espiritual que

afirma faltar a todas as religiões? (KELLER, T. 2008, p.7-8)

Por fim, no que se refere ao relativismo e ao fundamentalismo, Berger assinala que

ambos são perigosos para indivíduos e sociedade. O relativismo pode desembocar em nii-

lismo e o fundamentalismo pode assumir formas de fanatismo e algumas formas de fana-

tismo podem conduzir à práticas terroristas.

Importante frisar que a revisão empreendida por Peter Berger é diferente da ideia de

uma ressacralização do mundo com uma expulsão da secularização. As pessoas não preci-

sam optar pela ciência ou pela religião, mas aprendem a navegar na modernidade utilizando

o tipo de discurso que precisam conforme a situação. O grande mérito dessa visão é sua

aproximação com a realidade da maioria das pessoas. Em síntese temos a seguinte visão

sobre religião e secularização na modernidade:

Deveria estar mais claro agora porque eu afirmo que a teoria original da seculariza-

ção estava errada na sua proposição básica de que a modernidade leva a um declínio da

religião. Mas ela não estava tão errada como os seus críticos acreditavam. Sim, o mundo

contemporâneo está cheio de religião; mas há também um discurso secular muito impor-

tante, que levou a que a religião fosse substituída por maneiras de lidar com o mundo etsi

Deus non daretur. O indivíduo moderno pode desenvolver, e em muitos casos realmente

desenvolveu, a capacidade de administrar tanto as definições religiosas quanto as defini-

ções seculares da realidade, dependendo de qual é diretamente relevante para o assunto

em questão. (BERGER, 2017)

 

 

UA2 –

UNIDADE DE APENDIZAGEM 2

2. As ciências sociais utilizadas para entender o papel da fé e da igreja no bem-estar físico e mental das pessoas

PARA INÍCIO DE CONVERSA

O entendimento do papel da fé e das comunidades religiosas no bem-estar físico e

mental das pessoal é uma abordagem menos óbvia da colaboração entre Ciências Sociais

e Teologia. Tomemos, por exemplo, as chamadas Blue Zones. São regiões do globo com

a maior concentração de pessoas idosas vivendo com saúde e autonomia. Veja no mapa

abaixo: Da esquerda para a direita:

Loma Linda, Califórnia, Estados Unidos

Nicoya, na Costa Rica

Sardenha, na Itália

Ikária, na Grécia

Okinawa, no Japão

 

Dan Buettner (2021) passou boa parte da vida visitando esses lugares, lendo artigos

científicos e buscando encontrar o segredo da longevidade dessas pessoas. Só para adian-

tar – sabe-se que a genética responde por 20% da nossa saúde, os outros 80% dizem respei-

to ao estilo de vida. Então foi justamente o estilo de vida que Buettner passou a considerar

nas suas investigações e nele dois elementos estão ligados diretamente a temas centrais na teologia: laços comunitários fortes e propósito de vida.

Tenho certeza de que você ficou interessado no assunto. Nesta unidade de aprendiza-

gem vamos olhar mais de perto como as ciências da saúde se valem das ciências sociais

para entender o papel da fé e das comunidades religiosas para promoção de saúde e bem-

-estar na vida das pessoas.

VOCÊ SABIA?

As Blue Zones são regiões do planeta onde as pessoas vivem

mais e melhor do que a média mundial, tendo baixos índices de

doenças e alta qualidade de vida. Essas regiões são:

Os pesquisadores identificaram nove fatores em comum entre as Blue Zones, que po-

dem contribuir para a longevidade. São eles:

e nozes

As Blue Zones são importantes para o estudo da longevidade porque mostram que

o estilo de vida e o ambiente têm mais influência do que a genética na duração e na

qualidade da vida. Além disso, elas oferecem exemplos e inspirações para que outras

pessoas e comunidades possam adotar hábitos mais saudáveis e felizes.

 

FÉ E LONGEVIDADE

O médico Harold G. Koenig (2012) conta da Sra. Harris, uma paciente sua que vivia nos

Estados Unidos, numa casa de repouso. Ela tinha 101 anos de idade. Nos seus dias finais

de vida a família relatou que ela continuava alerta e tentava consolar e incentivar os paren-

tes e amigos que a visitavam. Ela sempre destacava as boas qualidades deles. Contam que

ela estava entoando um hino quando sua voz foi ficando mais fraca, a respiração mais lenta

até que seu coração deixou de bater. Ela partiu com um leve sorriso no rosto, uma expres-

são com a qual sua família estava acostumada. Koenig lembra que quando ela completou

100 anos e lhe perguntaram qual era o segredo de sua vida tão longa, prontamente ela disse

que era sua fé, sua família e o fato de não beber e não fumar, nessa ordem e ela sempre

enfatizava que a ordem era muito importante.

Desde a década de 70 do século passado a aproximação entre Ciências Sociais e medi-

cina passou a enfatizar o papel dos Determinantes Sociais e Saúde (DSS). A saúde das pes-

soas é afetada por influências sociais. Saúde e doença não são, nessa perspectiva, apenas

o resultado da genética. A Organização Mundial da Saúde assim define os DSS:

Os DSS são determinantes estruturais e condições da vida cotidiana

responsáveis pela maior parte das iniquidades em saúde entre os paí-

ses e internamente. Eles incluem distribuição de poder, renda, bens

e serviços e as condições de vida das pessoas, e o seu acesso ao

cuidado à saúde, escolas e educação; suas condições de trabalho e

lazer; e o estado de sua moradia e ambiente. (Relatório Final da Comissão

Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde, realizada na 62ª Assembleia

Mundial de Saúde da OMS (2009)

 

A inserção do olhar das Ciências Sociais nas questões de saúde enfatizou a importân-

cia do investimento público em saúde coletiva para a promoção do bem-estar da popula-

ção. De pouco adianta ampliar vagas de atendimento infantil se não houver tratamento, por

exemplo, do esgoto e água potável para a população. É na conexão entre as condições de

vida e a saúde que as Ciências Sociais contribuem com as Ciências da Saúde para ampliar

o olhar para além dos aspectos individuais dos processos de saúde e doença.

Feita a observação acima sobre os DSS podemos voltar novamente para a contribuição

do Dr. Harold G. Koenig. Ele busca correlacionar os temas: medicina, religião e saúde e o

faz valendo-se das Ciências Sociais e de suas metodologias. Ele foi pioneiro na formulação

do chamado “Índice de Religiosidade de Duke”. Trata-se de um questionário de pesquisa

social que busca aferir o papel da religião na vida dos pacientes e, a partir daí, estabelecer

relações de causalidade entre saúde e religiosidade. A fé e a vida comunitária, sob a pers-

pectiva dos DSS, devem ser levados em conta para entender seu impacto sobre a saúde de

pessoas e comunidades.

A partir desse pressuposto o Koenig (2012) passou à elaboração de algumas defini-

ções operacionais dos termos religião, religiosidade e espiritualidade. Religião é o sistema

de crenças e práticas praticadas numa comunidade, apoia-se em rituais que funcionam

como instrumentos de aproximação com Deus (no caso das culturas ocidentais) ou de

aproximação com a Verdade Absoluta, a Realidade Maior (no caso de culturais orientais.

Uma religião possui um conjunto de textos (escrituras sagradas) que são utilizados pelos

fiéis para descrever o sentido da vida e as responsabilidades éticas dos indivíduos no mun-

do e as esperanças de vida após a morte. Espera-se que uma religião se organize numa

comunidade de longa duração no tempo com a finalidade de praticar seus rituais e auxiliar

os fiéis na prática dos mandamentos extraídos dos textos sagrados e no cultivo do estilo

de vida almejado pelos participantes.

Outro ponto importante na construção do “Índice de Religiosidade de Duke” é o exame

da atividade religiosa uma vez que sob o ponto de vista do impacto sobre a saúde das pes-

soas interessa a interiorização das crenças mais do que o seu registro histórico nos livros

tidos como sagrados. Assim, Koenig propõe a distinção entre religiosidade organizacional

e religiosidade não organizacional. A religiosidade organizacional compreende a participa-

ção nos cultos, missas, reuniões de grupos de oração, grupos de estudos, participação em

comissões, voluntariado social. São atividades que estão debaixo do comando da institui-

ção religiosa. A religiosidade não organizacional diz respeito às práticas que são realizadas

a sós, mais de caráter devocional pessoal. Alguns exemplos são: oração, leitura dos textos

bíblicos, meditação, cânticos de hinos, uso de acessórios religiosos tais como velas, ro-

sários, óleos. O ponto principal da atividade religiosa não organizacional é o seu caráter

particular. Se houver interação com outras pessoas será sempre indireta, por exemplo, ouvir

uma mensagem religiosa via internet.

Uma ressalva importante feita por Koenig é que embora essas práticas públicas e

particulares reflitam o grau de comprometimento de uma pessoa com sua visão religiosa

isso nem sempre é verdadeiro. Uma pessoa pode cultivar tanto a religiosidade organizacio-

nal quanto a não organizacional, porém, pode fazê-lo por conta da coerção social familiar

ou ainda, em profundo conflito com suas crenças e práticas. Diante disso foi acrescentado

outro elemento para aferir a religiosidade e o modo como ela impacta a saúde de uma

pessoa, trata-se da religiosidade subjetiva, também chamada de religiosidade intrínseca.

Nessa dimensão a pesquisa social busca entrar nas motivações mais íntimas da pessoa na

prática sua religião e no grau de coerência interna que ela chegou na sua prática religiosa.

Busca-se saber se a pessoa pratica a religião pela religião em si ou como um meio para

obter outros benefícios tais como: aceitação social, riqueza, proteção contra males etc.

Espiritualidade é um termo que entrou para “Índice de Religiosidade de Duke”. Nesse item há uma ampliação para além das fronteiras mais restritas da religião. Assim Koenig escreve:

A definição de espiritualidade é baseada na busca inerente de cada

pessoa do significado e do propósito definitivos da vida. Esse signi-

ficado pode ser encontrado na religião, mas, muitas vezes, pode ser

mais amplo do que isso, incluindo a relação com uma figura divina

ou com a transcendência, relações com os outros bem como a espi-

ritualidade encontrada na natureza, na arte e no pensamento racional

(humanismo) (2012, p.13)

Koenig observa que muitas pessoas encontram espiritualidade nas suas práticas reli-

giosas, tanto organizacionais quanto não organizacionais. É esperado que seja assim, afi-

nal, a religião se propões a lidar com realidades espirituais. Todavia, quando outras razões

que não pertencem intrinsecamente aos objetivos da religião se fazem presentes no víncu-

lo religioso da pessoa é possível que se tenha religiosidade, mas não espiritualidade. Im-

portante frisar que por espiritualidade se entende os resultados das crenças e das práticas

religiosas que aparecem na vida de uma pessoa na forma de esperança, amor, conexão,

paz interior, conforto e suporte. São recursos internos que uma pessoa dispões para dar

e receber amor, nas conexões harmoniosas que mantêm consigo mesma, com a comuni-

dade, com a natureza e com o divino. Sob o ponto de vista do comportamento humano a

espiritualidade aparece como resultado externo das convicções íntimas.

PENSE NISSO:

Não importa qual é a crença nem se ela envolve um deus. O

fato é que práticas como oração e meditação vêm se tornan-

do, cada vez mais, alvo de estudo de pesquisadores da área da

saúde, que investigam, em vários países, os efeitos da fé sobre

o organismo humano.

“Antigamente, os médicos se lembravam da religião só quando

o paciente parava de tomar um medicamento por causa dela. Hoje é comum perguntar

sobre aspectos espirituais e religiosos para usá los positivamente em um tratamento”,

analisa o psiquiatra Alexander Moreira Almeida, coordenador do Nupes (Núcleo de Es-

piritualidade e Saúde), da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em Minas Gerais.

Segundo uma pesquisa recente realizada nos Estados Unidos, já são muitos os mé-

dicos que enxergam uma ligação entre fé e saúde. Mais da metade (56%) dos profis-

sionais entrevistados disseram acreditar que a religião e a espiritualidade têm uma

influência significativa na saúde dos pacientes. Publicado no último mês no “Jama”

(“Journal of the American Medical Association”), o levantamento foi feito com 2.000

médicos de diferentes especialidades.

“O estudo sugere que grande parte dos médicos não encontra barreiras entre ciência e

fé. A maioria dos profissionais americanos acredita que Deus intervém na saúde dos

pacientes e, no entanto, continua a aplicar as últimas descobertas da ciência na sua

prática”, disse à Folha o autor do estudo, Farr Curlin, professor de medicina da Univer-

sidade de Chicago, nos Estados Unidos. Outro estudo recente, publicado neste ano

na revista científica oficial da Academia Americana de Neurologia, sugere que níveis

mais elevados de espiritualidade e de práticas religiosas individuais estão associados

a uma progressão mais lenta da doença de Alzheimer

Para Tim Daaleman, pesquisador da Universidade da Carolina do Norte (EUA) e autor

de vários estudos sobre a relação entre espiritualidade e saúde, a consciência dos

efeitos da fé nos procedimentos médicos tem aumentado nos Estados Unidos.

“Alguns prognósticos vêm projetando uma visão da saúde que será mais inclusiva do

que nossa compreensão atual, uma perspectiva global que coloca fatores espirituais

ao lado das causas físicas, psicológicas e sociais”, afirma. (Fonte: CREMESP-PB – Link:

https://crmpb.org.br/artigos/fe-influencia-na-saude/)

 

Um ponto importante na visão das Ciências Sociais a respeito da espiritualidade é que

embora seja mais comum associá-la à prática de alguma religião é possível ter espiritualida-

de sem conexão direta com sistemas religiosos. Espiritualidade e seus efeitos benéficos para

a saúde são encontrados também em pessoas que mantém um tipo regular de conexão com

a natureza, com a música, com a arte e com o pensamento humanista no sentido da busca

pela verdade e por um comportamento humano ético para com o próximo e com a natureza.

Uma observação interessante feita por Koenig é que para efeitos de pesquisa é mais difícil

mensurar esse tipo de espiritualidade secular, mas isso não significa que não exista.

Como funciona na prática essa medição dos fatores religiosos na saúde de uma pes-

soa? Compartilho abaixo questionários para entrevistas elaborados a partir dos pressupos-

tos desenvolvidos pelo Dr. Harold G. Koenig. Os questionários são ferramentas das Ciências

Sociais e são uma parte da pesquisa em saúde. A etapa seguinte é a da própria medicina

em correlacionar o estilo de vida decorrente da prática religiosa com os sintomas e a saúde

em geral do paciente.

Com que frequência você vai a uma igreja, templo ou outro encontro religioso?

  1. Mais do que uma vez por semana
  2. Uma vez por semana
  3. Duas a três vezes por mês
  4. Algumas vezes por ano
  5. Uma vez por ano ou menos
  6. Nunca

Com que frequência você dedica o seu tempo a atividades religiosas individuais, como

preces, rezas, meditações, leitura da bíblia ou de outros textos religiosos?

  1. Mais do que uma vez ao dia
  2. Diariamente
  3. Duas ou mais vezes por semana
  4. Uma vez por semana
  5. Poucas vezes por mês
  6. Raramente ou nunca

3) Em minha vida, eu sinto a presença de Deus (ou do Espírito Santo).

  1. Totalmente verdade para mim
  2. Em geral é verdade
  3. Não estou certo
  4. Em geral não é verdade
  5. Não é verdade

4) As minhas crenças religiosas estão realmente portrás de toda a minha maneira de viver.

  1. Totalmente verdade para mim
  2. Em geral é verdade
  3. Não estou certo
  4. Em geral não é verdade
  5. Não é verdade

5) Eu me esforço muito para viver a minha religião em todos os aspectos da vida.

  1. Totalmente verdade para mim
  2. Em geral é verdade
  3. Não estou certo
  4. Em geral não é verdade
  5. Não é verdade

 

Além dos benefícios diretos sobre a saúde física e mental da adesão do cultivo da es-

piritualidade, o Dr. Harold Koenig encontra outras razões para que o item ‘prática religiosa’

seja levado a sério do tema da saúde. As crenças de uma pessoa influenciam diretamente

sua adesão ou não à práticas de autocuidado físico e mental, a adesão a um tratamento

médico proposto, os significados que são atribuídos a uma doença (castigo ou provação,

por exemplo).

Por fim, mediado pelas Ciências Sociais o Dr. Koenig advoga uma parceria estratégica

para lidar com o envelhecimento da população e a sobrecarga do sistema de saúde e de

seus custos. Assim escreve:

As organizações religiosas não estarão isoladas da crise iminente. Elas enfrentarão o

impacto da saúde pública tanto quanto o governo federal. Muitos idosos serão membros de

grupos de fé (como quase dois terços dos americanos hoje). Assim, as organizações reli-

giosas terão mais membros idosos lutando com problemas crônicos de saúde. Muitos dos

membros mais jovens terão pais e avós que precisam de tratamento em casa, uma vez que

existirão poucas opções. Sem dúvida, ministérios da saúde em comunidades religiosas se-

rão mais frequentes e haverá mais pessoas dependentes deles nas décadas vindouras. […]

A primeira responsabilidade desses ministérios será promover estilos de vida saudáveis,

dietas e exercícios entre os membros, bem como conduzir triagem de doenças (exames de

pressão arterial, nível de açúcar no sangue e colesterol). O objetivo será manter os mem-

bros da congregação saudáveis para que sirvam de suporte a outros em vez de consumido-

res de assistência médica. (Idem, p. 34)

 

PENSE NISSO:

O velhecismo é uma ideologia como o sexismo e o racismo.

Há muitos estereótipos falsos de pessoas mais velhas, assim

como em outros contextos da sociedade. Assim, acredita-se

muitas vezes que trabalhadores mais velhos s]ao menos com-

petentes do que os jovens, que a maioria das pessoas acima

de 65 anos está em hospitais ou em casas para velhos e que

uma proporção é senil. Todas essas crenças são errôneas. Os

recordes de frequência e de produtividade dos trabalhadores acima dos 60 anos são

superiores em média a dos mais jovens; 95% das pessoas acima de 65 anos vivem em

moradias privadas; somente 7% daqueles que têm entre 65 e 80 anos têm sintomas de

deterioração senil. (GIDDENS, A. Sociologia. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005, p. 147)

 

 

UA3 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 3

3. As ciências sociais utilizadas para o engajamento na teologia pública

OBJETIVOS

1 Estabelecer as relações entre Ciências Sociais e teologia pública

2 Oferecer exemplos práticos de desenvolvimento de teologia pública a partir da co-

munidade local

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Nas unidades de aprendizagem anteriores as Ciências Sociais foram utilizadas para

olhar a religião e, consequentemente, a teologia que acompanha cada religião. Quando pas-

samos pelo tema da secularização a perspectiva era entender a partir das Ciências Sociais

qual é o lugar da religião na modernidade. Na unidade dois utilizamos as Ciências Sociais

para compreender o emergente tema da relação entre religião e saúde. Nessa unidade a

perspectiva é ligeiramente diferente uma vez que é a própria teologia que vai ao encontro

dos temas tratados pelas Ciências Sociais. Quais temas? Todos os assuntos que estejam

presentes na vida em sociedade e demandem algum tipo de engajamento em favor do bem

comum. Mas porque a teologia precisa das Ciências Sociais para tratar tais assuntos, talvez

você se pergunte. São temas complexos e o auxílio das Ciências Sociais não visa substituir

o raciocínio propriamente teológico, mas iluminar cada uma das questões de tal modo que

igrejas e cristãos possam assumir posições coerentes com suas convicções de fé.

Que é teologia pública?

A teologia pública é uma forma de fazer teologia que busca dialogar com os problemas

e os desafios da sociedade contemporânea, a partir da tradição teológica de cada igreja. A

teologia pública se interessa por temas como a democracia, os direitos humanos, a justiça

social, a ética, a cultura, o meio ambiente, a imigração, entre outros, e procura contribuir

para o bem comum e a cidadania.

Uma distinção importante a ser feita é entre teologia pública e apologética. Na versão

que circula em nossos dias a apologética é um tipo de argumentação que visa defender a

fé cristã. Entretanto, a perspectiva acaba sendo de uma argumentação doutrinária focada

na demonstração dos erros de outras religiões ou filosofias. Em geral a apologética é diri-

gida àqueles que já pertencem à igreja com a finalidade de evitar que sejam persuadidos por outras visões concorrentes, coisa comum na modernidade marcada pelo pluralismo de

discursos, conforme vimos na primeira unidade de aprendizagem deste módulo.

A perspectiva da teologia pública é diferente. Trata-se de um esforço de cooperar para

compreender os temas os discutidos pela sociedade a partir da teologia. Mais do que isso.

Além de refletir biblicamente sobre os assuntos, a teologia pública encoraja o engajamento

de cristãos e a cooperação das igrejas na busca de soluções para os problemas sociais.

Tome-se, por exemplo, a questão ambiental. Além de buscar na Bíblia uma compreensão

da natureza enquanto criação divina e o lugar dos seres humanos enquanto guardadores

do jardim, uma reflexão feita a partir da teologia pública buscará formas de ação para o

enfretamento dos problemas ambientais. Logo, a teologia pública é eminentemente prática

e por isso é tão importante o diálogo com as Ciências Sociais.

Há inúmeras possibilidades para desenvolvimento da teologia pública. Cada contexto

orientará quais demandas sociais estão presentes e desafiam a comunidade cristã a dar tes-

temunho do amor de Deus a partir de ações concretas. Milhares de estudos produzidos pelas

Ciências Sociais foram utilizados para se chegar aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentá-

vel estabelecidos pela Organização das Nações Unidas. Veja abaixo quais os objetivos:

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma agenda global para pro-

mover o bem-estar das pessoas e do planeta até 2030. Eles podem ser um ponto de partida

para uma reflexão seguida por engajamento a partir da teologia pública. Nos anos de 2020

e 2021 um grupo de oficiais e membros da Primeira Igreja Presbiteriana Independente de

São Paulo reuniu-se para elaborar diretrizes para o testemunho social da Igreja. O grupo de

trabalho levou em consideração as ODS e o contexto no qual a comunidade estava inserida.

O resultado abaixo ilustra como uma igreja cristã pode fazer teologia pública.

DIRETRIZES PARA TEMAS PRIORITÁRIOS

4.1. Definição de prioridades

No que diz respeito à definição de temas prioritários, o trabalho do Grupo Shalom con-

centrou-se na discussão sobre temáticas do contexto atual.

Para isso, procurou-se realizar a identificação de oportunidades para atuação da Igreja

e das Fundações por meio de projetos e iniciativas já existentes ou que pudessem vir a ser

criados ou retomados. Considerou-se também a necessidade de propor iniciativas voltadas

ao atendimento de demandas emergenciais.

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, foram tomados como

referência importante para a priorização de temas. Foi criado um Mapa de Ações, inspira-

do nos mapas da ODS. A partir dele destacaram-se alguns temas como prioritários neste

momento: Segurança Alimentar, Saúde e Bem-Estar, Educação de Qualidade, Igualdade de

Gênero e Redução de Desigualdades.

Cada um desses temas foi debatido em profundidade, com identificação de diretrizes

para a atuação da Igreja e das Fundações, de forma a orientar decisões e planejamento de

eventuais novas ações a serem encaminhadas posteriormente.

“ 4.2. Temas prioritários

4.2.1. Segurança alimentar

– Diretrizes para atuação da Igreja e das Fundações no tema:

rabilidade social na região central próxima à Igreja.

substituir ou prejudicar os existentes, como, por exemplo, a entrega de cestas para as famílias.

vel, devem ser capazes de absorver voluntários e operacionalizar ações para facilitar im-

plantação em situações de calamidades (além da pandemia).

dação que as concede em termos de combate à fome e promoção da agricultura sustentável.

– Projetos e ações emergenciais e de curto prazo

4.2.2. Saúde e Bem-Estar

– Diretrizes para atuação da Igreja e das Fundações no tema:

integrada das necessidades das pessoas e das famílias, incluindo a dimensão espiritual,

tratando saúde e bem-estar como faces inseparáveis da vida humana.

suficientes.

ciais/específicos.

– Projetos e ações emergenciais e de curto prazo:

Retomada do Espaço Saúde, observando:

dades de prevenção de doenças próprias do envelhecimento (crônico-degenerativas), promo-

ção do envelhecimento saudável, oferta de atividades artísticas e de convivência comunitária;

4.2.3. Educação Complementar

– Diretrizes para atuação da Igreja e das Fundações no tema:

como reforço escolar e atividades complementares.

lacunas claras na educação pública, tendo como possíveis áreas, a princípio, a educação

musical e o letramento digital.

mento pessoal de parceiros e doadores.

sobre o seu conteúdo.

4.2.4. Integração de mulheres e homens

– Diretrizes para atuação da Igreja e das Fundações no tema:

permeie todos os projetos e campos de atuação do nosso testemunho social.

socioeconômica.

e das Fundações.

dor e não discriminatório em relação a qualquer gênero.

nossas ou de organizações parceiras.

4.2.5. Redução das Desigualdades

– Diretrizes para atuação da Igreja e das Fundações no tema:

da equidade, visando à correção dos efeitos perversos da desigualdade.

bre a criação de oportunidades, a promoção da equidade e a redução das desigualdades.

– Projetos e ações emergenciais e de curto prazo:

É importante observar que não é preciso (e nem seria possível) desenvolver ações

contemplando todos os ODS. Os objetivos que foram escolhidos estavam ligados ao contexto

geográficoda Primeira Igrejaeàs atividadesquesuasFundações jádesenvolviamna área social.

A íntegra do documento está à disposição dos estudantes nos materiais complementares.

 

PRA PENSAR

A congregação pode estar tão identificada com o lugar a ponto

de deixar de ser o veículo do juízo e da misericórdia de Deus

para esse lugar e tornar-se simplesmente o foco da autoima-

gem das pessoas desse lugar. Ou pode estar preocupada com

a relação dos seus membros com Deus que vire as costas para

a vizinhança e é vista como algo irrelevante para os interesses

da comunidade. Com o desenvolvimento de estruturas denomi-

nacionais poderosas, agências de evangelismo ou ação social espalhadas em todo

país, o que pode acontecer é que

essas coisas já não sejam vistas como a responsabilidade direta da congregação

local, exceto na medida em que elas são chamadas para apoiá-las financeiramente.

Mas se a congregação local não é vista na sua própria vizinhança como o lugar onde

a boa nova se manifesta em boas ações, os programas para a ação social e política iniciados pelas agências nacionais tendem a perder sua relação integral com a boa

nova e passam a ser vistos como parte de uma cruzada moral em vez de como parte

do evangelho. (Newbigin, 2016, p.294)

 

Precedentes históricos

A origem da teologia pública remonta ao século XX, quando alguns teólogos protestan-

tes, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, começaram a se preocupar com o pa-

pel da religião no espaço público, diante das transformações sociais, políticas e culturais da

modernidade. Alguns dos nomes pioneiros da teologia pública são Reinhold Niebuhr, John

Courtney Murray, Martin Luther King Jr., Dietrich Bonhoeffer, Jürgen Moltmann, entre outros.

A teologia pública tem sido feita em diferentes contextos e só por essa razão já se-

ria suficiente para entender sua pluralidade. Entretanto, teólogos de diferentes tradições

cristãs se empenharam em articular teologicamente o diálogo com os temas púbicos e a

demonstração da fidelidade a Deus no contexto da modernidade. De modo livre os seguintes

pontos podem ser destacados como características de uma teologia pública:

que compõem o espaço público, e busca dialogar com elas de forma respeitosa,

crítica e construtiva.

afetam a dignidade humana e a criação divina, e anúncio da esperança do Reino de

Deus, que se manifesta na história como libertação, paz e justiça.

entre nós, e no testemunho do Espírito Santo, que nos inspira e nos capacita a ser-

mos sal e luz do mundo.

diálogo interdisciplinar, inter-religioso e intercultural, buscando aprender com as ou-

tras fontes de saber e de experiência.

vida em abundância para todos e todas, em sintonia com a vontade de Deus.

Miroslav Volf e sua contribuição para a teologia pública

Uma boa iniciação pela teologia pública pode ser feita pela obra do teólogo Miroslav

Volf. Nascido em 1956, na Croácia, que na época fazia parte da Iugoslávia ainda sob o re- gime comunista. Ele cresceu em uma família pentecostal, que enfrentava discriminação e

perseguição por causa de sua fé. Formou-se em teologia na Universidade de Zagreb e fez

doutorado na Universidade de Tübingen, na Alemanha, sob a orientação do renomado teó-

logo Jürgen Moltmann. Ele também lecionou na Escola Teológica Evangélica de Osijek, na

Croácia, e no Seminário Teológico Fuller, na Califórnia e atualmente leciona na Universidade

de Yale.

Seu livro “Uma fé púbica – como o cristão pode contribuir para o bem comum” (2018)

é uma boa iniciação à teologia pública. O livro divide-se em duas partes. Na primeira ele

trata das razões pelas quais a fé cristã falha em dar um testemunho claro do amor de Deus

no mundo. E na segunda parte busca explicar o que é uma fé engajada publicamente na

promoção do bem comum. Assim escreve Miroslav sobre a natureza pública da fé cristã:

Uma fé que faz a diferença é uma fé que nos ajuda a discernir e nos

motiva a fazer o que é certo e excelente. Alguns cristãos deixam Deus

fora das dimensões morais de sua vida profissional. Eles acreditam

que Deus salva almas e orienta a moralidade privada; que Deus até

melhora o desempenho e cura as feridas. Deus parece distante, to-

davia, das decisões morais que enfrentamos em nossa vida pública.

Quando limitamos Deus à esfera privada em vez de permitir que ele

molde toda a nossa vida, estamos impedindo que nossa fé proféti-

ca faça uma das partes mais importantes do seu trabalho. Numa de

suas funções cruciais, ela é ociosa. E, o que é pior, a ociosidade nesse

respeito a leva a falhar como fonte de bênção e libertação” (p.50)

A familiaridade de Miroslav Volf com o cristianismo nos Estados Unidos e na Europa o

leva a ser cuidadoso em relação às propostas de “recristianização” da sociedade. A teolo-

gia pública não ter por objetivo a reconquista do poder político para por meio dele exercer

influência sobre toda a sociedade. Miroslav lembra que o Deus bíblico que é o redentor é

também o criador, portanto, quando cristãos exercem seu trabalho em setores culturais

não-religiosos não estão numa terra estranha, mas num território que foi criado e abençoa-

do pelo próprio Deus. Na visão de Volf os cristãos devem se discernir áreas da vida cultu-

ral que devem ser transformadas e áreas que simplesmente serão aceitas. Um projeto de

transformação total da cultura, segundo ele, seria um erro. Assim escreve Volf:

É compreensível que os cristãos queiram ter influência social. A

responsabilidade de “consertar o mundo” e trabalhar para o bem co-

mum está gravada no próprio caráter do cristianismo como religião

profética; é uma consequência do compromisso de amar a Deus e ao

próximo. Mas, no futuro, os cristãos provavelmente exercerão essa in-

fluência menos a partir dos centros de poder e mais a partir das mar-

gens sociais. Além disso, estejam eles situados junto aos centros do

poder ou longe deles, num mundo cultural e religiosamente pluralista

as comunidades cristãs serão apenas um entre muitos atores (p.102)

Dentre as muitas contribuições importantes trazidas pela teologia pública de Miroslav

Volf está o alerta para que sejam evitadas as armadilhas das guerras culturais contempo-

râneas. O conceito de guerras culturais foi formulado pelo sociólogo James Hunter no seu

livro: Culture Wars: The Struggle to Define America (1991). O termo se refere aos conflitos

em torno de valores morais típicos de sociedades marcadas pelo pluralismo. As dispu-

tas giram em torno de religião, política, sexualidade, educação, arte, entre outros. Com as

guerras culturais estão as disputas em torno de identidade nacional e do que seria o bem

comum. Cabe ressaltar que o envolvimento de cristãos e igrejas em temas relacionados ao

bem comum muitas vezes esbarrará em discussões contaminadas pelas guerras culturais.

Quando isso ocorrer haverá sempre o risco de os cristãos serem capturados pelas bandei-

ras políticas, sejam progressistas ou conservadoras, e esquecerem as motivações do Evan-

gelho e sua ética. Miroslav lembra que a identidade cristã é estabelecida não principalmen-

te negando e combatendo o que está fora, mas abraçando e realçando o que está dentro, o

próprio Cristo e seu amor e, quando se trata de algum tipo de relação conflituosa, a atitude

do cristão continua sendo regida pelo amor (p. 119). Essa é uma lembrança importante em

tempos de guerras culturais.

 

PRA PENSAR

Em que grau seria diferente a visão que o mundo tem dos cris-

tãos se nós nos concentrássemos em nossos defeitos, e não

naqueles da sociedade? Lendo o Novo Testamento, fico im-

pressionado ao ver a pouca atenção que ali se dispensa às fa-

lhas da cultura ao seu redor. Jesus e Paulo nada dizem sobre

os violentos espetáculos de gladiadores ou sobre o infanticídio,

duas práticas comuns entre os romanos. Numa passagem re-

veladora, o apóstolo Paulo responde com veemência a um relato de incesto no seio da

igreja de Corinto. Ele insiste que se tomem medidas rígidas contra os envolvidos no

caso, mas esclarece logo em seguida: “com isso não me refiro aos imorais deste mun-

  1. […] Pois como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os

que estão dentro? Deus julgará os de fora” (1 Co 5.10, 12-13) (YANCEY, 2015, p. 222)

 

 

UA4 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 4

4. As ciências sociais utilizadas na leitura da história do cristianismo

OBJETIVOS

1 Apresentar as Ciências Sociais como recurso para estudo da história do cristianismo

2 Demonstrar como estudos antropológicos e sociológicos sobre o presente podem

auxiliar na compreensão de fatos mais distantes

PARA INÍCIO DE CONVERSA

As Ciências Sociais e o conceito moderno de História são utilizados quase que de

modo irrefletido na leitura dos processos pelos quais a Igreja cristã passou ao longo dos

séculos. A razão para isso é mais ou menos óbvia: a igreja não existe num vácuo de tempo

e espaço. Ela é uma realidade situada em meio aos acontecimentos que se dão no tempo e

no espaço. A própria periodização do cristianismo em antigo, medieval e moderno já é um

uso das Ciências Social para a leitura do desenvolvimento do cristianismo.

Nessa unidade de aprendizagem não se pretende adentrar nas muitas leituras feitas da

história do cristianismo a partir das Ciências Sociais, mas apenas demonstrar como esse é

um recurso importante para os/as teólogos/as. As correntes nas Ciências Sociais são plu-

rais e caberá a cada pesquisador escolher os pressupostos teóricos que melhor se ajustam

aos seus objetivos e visão de mundo. Cabe ressaltar, entretanto, que nada se perde ao se

buscar o apoio das Ciências Sociais para compreensão da história do cristianismo.

Mãos à obra.

Usando as Ciências Sociais para entender o crescimento do cristianismo nos primei-

ros séculos

Normalmente o exame do crescimento do cristianismo é assunto dos historiadores.

Mas como seria olhar o crescimento a partir das Ciências Sociais? É isso que se pergun-

tou o sociólogo Rodney Stark. O resultado da indagação está no seu livro: “O crescimento

do cristianismo: um sociólogo reconsidera a história” (2006), publicado originalmente em

1996, nos Estados Unidos.

Antes de falar dos resultados apresentados por Rodney Stark é importante destacar

o método presente no trabalho de releitura sociológica da história do cristianismo. A so-

ciologia acumulou, desde sua origem, volume considerável de estudos sobre processos

de transformação nas sociedades e os seus efeitos desagregadores. De outro lado, uma

série de estudos sociológicos tratou de olhar de perto como os vínculos sociais são man-

tidos e/ou reconstruídos durante e após as convulsões sociais. Estudos da demografia

populacional também são importantes no rol de estudos sociológicos, questões sobre

êxodo do campo para a cidade, taxas de natalidade e de mortalidade. Como área de

especialização da sociologia surgiu a sociologia da religião com um volume importan-

te sobre as dinâmicas do campo religioso. Ela trata de questões tais como: conversão,

protagonistas da religião, classe social e religião, tipos de organizações religiosas, taxas

de crescimento e de declínio da religião etc. Dito isso, cabe mencionar que o trabalho

de Rodney Stark foi tomar o conhecimento sociológico acumulado sobre os processos

religiosos e confrontá-lo com as fontes documentais cristãs e não cristãs sobre o cresci-

mento da igreja nos três primeiros séculos. Stark tomou o cuidado de ressaltar que seu

empreendimento não nega os fatores sobrenaturais presentes no crescimento da igreja

cristã. Assim ele escreve:

Antes de prosseguir, contudo, parece pertinente discutir se uma tenta-

tiva de explicar o crescimento do cristianismo não tem algo de sacrí-

lego. Se, por exemplo, argumento que o crescimento do cristianismo

beneficiou-se de uma fertilidade superior ou de um excedente de mu-

lheres que possibilitaram taxas altas de casamentos exogâmicos, não

estarei atribuindo causas profanas a fins sagrados? […] Não há sacri-

légio algum na tentativa de entender as ações humanas em termos

humanos. De mais a mais, não reduzo o crescimento do cristianismo

ao aspecto puramente “material” ou a fatores sociais. A doutrina re-

cebe o devido crédito – um fator essencial no sucesso da religião foi a

crença dos cristãos. (2006, p. 13-14)

A visão popular do crescimento do cristianismo nos três primeiros associa tal fenô-

meno aos milagres, à coragem dos mártires e a conversão de multidões. Aplicando o co-

nhecimento sociológico já mencionado acima e buscando amparo em fontes históricas e

arqueológicas, Stark afirma que o crescimento do cristianismo se deveu principalmente à

ação das redes sociais e dos vínculos interpessoais, que facilitaram a difusão da nova fé

entre as pessoas. O cristianismo se espalhou de forma gradual e orgânica, por meio de con-

tatos pessoais, familiares e amistosos, que geraram confiança e credibilidade. Stark (2006,

  1. 17) calcula que o cristianismo cresceu a uma taxa média de 40% por década. O quadro

abaixo mostra a evolução do crescimento:

 

Na terceira coluna são

apresentados os percentuais

em relação ao total da popu-

lação do Império Romano, es-

timada em 60 milhões. Com

base na tabela é possível afir-

mar que o crescimento dos

cristãos nos dois primeiros sé-

culos foi quase imperceptível

para o Império Romano. No ano

200 os cristãos representavam

0,36% da população. Não é difí-

cil imaginar que continuassem sendo vistos como uma pequena divisão dentro do próprio

judaísmo. Entretanto, graças às taxas de crescimento exponencial, saltaram de 0,36% da

população no ano 200 para 1,9% no ano 250 e, passados, 50 anos, ou seja, no ano 300 eles

somavam nada menos do que 10,5% da população do Império e outros 50 anos depois já

eram maioria na população, cerca de 56,5%. Importante observar que a taxa média de cres-

cimento por década continuou a mesma: 10%. Certamente houve variações de uma década

para outra, trata-se de uma projeção de não uma descrição de fato.

Stark percorre todos os temas da sociologia da religião na sua busca para entender e

explicar o crescimento do cristianismo nos primeiros séculos. No primeiro capítulo exami-

na as dinâmicas envolvendo a conversão, no segundo capítulo estuda as classes sociais

que responderam com mais prontidão ao apelo da nova religião, no terceiro capítulo exa-

mina a rede da diáspora judaica pelo Império Romano e como os missionários cristãos

se valeram dessa ponte para estabelecerem comunidades cristãs fora da Jerusalém e pe-

quenas cidades da Palestina, no quarto capítulo ele mergulha nas grandes epidemias que

dizimaram boa parte da população do Império e a resposta cristã para o enfrentamento da

crise, ponto importante nesse capítulo é a atenção para as taxas diferentes de mortalidade

entre pagãos e cristãos, no quinto capítulo é a vez de examinar o papel das mulheres no

crescimento do cristianismo, nos capítulos sexto e sétimo as cidades do Império Romano

são examinadas e se chega à conclusão que de um lado propiciaram uma rede para expan-

são do cristianismo e, de outro, o caos e a desorganização dessas cidades contribuiu para

que seus habitantes estivessem abertos a conhecer a novidade trazida pelos missionários

cristãos. Ainda com o propósito de ilustrar o uso do conhecimento sociológico para com-

preensão do crescimento do cristianismo veja a observação feita por Stark sobre a relação

entre desorganização social e abertura para novas propostas religiosas:

Quando perdem os vínculos os indivíduos têm maior liberdade de desviar-se das normas. Em estudos modernos o comportamento não-

-convencional é fortemente correlacionado a diversas medidas de re-

viravolta e de instabilidade da população. Por exemplo, onde grandes

proporções populacionais dos Estados Unidos e do Canadá são de

recém-chegados ou que mudaram há pouco tempo de uma residência

para outra, as taxas de participação em atividades religiosas não-con-

vencionais são altas (idem, p. 161)

No oitavo capítulo Stark examina o papel dos mártires no crescimento do cristianismo.

O martírio funcionou como peneira para elevados níveis de comprometimento com a nova

fé, afinal, estar disposto a ser martirizado pelas crenças é um indicador de quão a sério a

pessoa levava sua adesão ao cristianismo. A espetacularização do martírio operou como

propaganda para os cristãos. Stark cita o martírio de Inácio de Antioquia como exemplo.

Inácio foi levado para Roma escoltado por dez soldados, porém, lhe foi concedido o direito

de no percurso fazer paradas nas cidades e pregar para os cristãos. Uma verdadeira jor-

nada de heroísmo e coragem se estabeleceu nesse percurso, a ponto de Inácio escrever

para os cristãos de Roma para que não intercedessem junto ao Imperador em favor de seu

perdão. Como bispo ele percebia que a proclamação do Evangelho ganhava com o seu sa-

crifício. Assim ele escreveu:

Na verdade, é que temo que vosso amor possa prejudicar-me. Para

vós, evidentemente, é fácil alcançar vosso intento; para mim, no en-

tanto, difícil é vencer meu caminho para Deus, se tiverdes conside-

ração por mim […]. Conceda-me simplesmente que meu sangue seja

derramado em sacrifício a Deus […].

Estou escrevendo a todas as Igrejas e afirmo enfaticamente a todas

que de bom grado morro por Deus, contanto que não haja interferên-

cias de vossa parte. Rogo-vos que não me deis mostras de bondade

inoportuna. Consenti que me torne alimento de animais selvagens,

que são os meios de percorrer meu caminho em direção a Deus. Sou

o trigo de Deus, e pelos dentes dos animais selvagens estou certo de

que poderia provar o puro pão de Cristo (Epistle to the Romans, 1946,

apud. Stark, 2006, p. 201)

DICA DE LEITURA

“A fé que Persevera” foi escrito por Ronald Boyd-MacMillan, da

Missão Portas Abertas Internacional, apresenta aqui um estimu-

lante e abrangente ponto de vista sobre a perseguição na atua-

lidade. Com histórias reais, mostra ao leitor os diversos níveis

da perseguição contra a Igreja, destaca testemunhos inéditos e

apresenta maneiras de refletir e responder à perseguição. De um modo muito lúcido e equilibrado o livro mostra que a perseguição não é algo da anti-

guidade do cristianismo ou apenas de países declaradamente hostis à fé cristã. Ronald

Boyd-MacMillan contextualiza o ensino do apóstolo Paulo “Ora, todos quantos querem

viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos”. 2 Timóteo 3:12

O modo como as Ciências Sociais podem enriquecer a abordagem histórica do cristia-

nismo fica ainda mais evidente no nono capítulo do livro de Stark. Em geral, especialmente

os historiadores cristãos, se dedicam ao conteúdo da mensagem cristã propaganda e aos

seus divulgadores e quase não fazem nenhuma menção às outras religiões que já existiam

e ao ambiente de competição religiosa e regulação por parte do Estado. Examinando o

contexto greco-romano no qual o cristianismo se propagou Stark afirmará que era marcado

pelo pluralismo religioso, muitas religiões e muitos deuses e havia pouco controle por parte

do Império Romano. Isso sem dúvida alguma facilitou a propagação da nova mensagem

cristã. Nesse ambiente pluralismo o cristianismo distinguiu-se dos cultos que existiam por

dois elementos: o engajamento de todos os fiéis no compartilhamento da boa notícia e na

contribuição financeira. Os cultos greco-romanos eram dirigidos por uma elite e dependiam

financeiramente de pessoas da elite. O culto cristão contava com a participação do povo

e era sustentado financeiramente por suas contribuições voluntárias. Isso ajuda a enten-

der por que a perseguição aos bispos não afetou o crescimento da Igreja, segundo Stark

a comunidade cristã contava com a melhor de todas as estratégias: “um povo altamente

comprometido e a melhor de todas as técnicas de marketing: a influência pessoa a pessoa”

(Idem, p. 230-231)

A fim de entender ainda mais como a compreensão do funcionamento das engrena-

gens sociais pode lançar luz nos mecanismos de crescimento da igreja cristã, no caso em

que estamos tratando, mas também nas causas envolvidas no declínio de comunidades

cristãs, voltaremos ao quinto capítulo para olhar o papel das mulheres nos primeiros sécu-

los do cristianismo. Julgo importante um olhar mais atento para o modo como Stark desen-

volve esse tema porque as questões de gênero são debatidas acaloradamente dentro e fora

da Igreja. Sendo assim, o olhar sociológico sobre o passado poderá também contribuir com

o tratamento das questões contemporâneas que envolvem o assunto.

No quinto capítulo o autor examina o papel das mulheres no crescimento cristão dos

primeiros séculos. Mais uma vez o método empregado é a utilização de princípios socioló-

gicos já conhecidos e confirmados por muitos estudos para interpretação das evidências

históricas obtidas de fontes antigas. Stark lista quatro razões pelas quais as mulheres con-

tribuíram decisivamente para que os cristãos se tornassem maioria no Império Romano.

Primeiro as comunidades cristãs desenvolveram rapidamente um excedente de mulheres

em contraste com a escassez de mulheres no mundo greco-romano. Esse excedente de

mulheres cristãs é atribuído à proibição entre os cristãos da prática do infanticídio e do

aborto. É importante destacar como o autor apresenta o caráter machista tanto do infanticí-

dio quanto do aborto. O infanticídio era praticado principalmente quando a criança nascida

era do sexo feminino. O aborto muitas vezes era ordenado pelo próprio marido ou praticado

para ocultação de relações sexuais ilícitas. Lembremos que muitos homens eram soldados

e ficavam longos períodos ausentes de casa. Era muito comum, por conta da precariedade

dos métodos, que mulheres que praticavam o aborto viessem a morrer em decorrências das

complicações. Segundo Stark, apoiado em documentos, isso levou entre os pagãos a uma

redução significativa da população feminina. Entre os cristãos, o valor dado aos filhos – de

ambos os sexos ao lado da proibição do aborto levou ao aumento da população feminina,

estima-se que a igreja nos primeiros séculos contasse com 60% de mulheres na sua mem-

bresia. A segunda razão para a importância das mulheres no crescimento da comunidade

cristã é resultado do status mais elevado das mulheres na família e no grupo religioso em

contraste com a mulheres da cultura greco-romana. No âmbito da família marido e mulher

estavam sujeitos aos mesmos mandamentos, Stark lembra a passagem bíblica com orien-

tações matrimoniais transmitidas pelo apóstolo Paulo à Igreja de Corinto:

Quanto aos assuntos sobre os quais vocês escreveram, é bom que o

homem não toque em mulher, mas, por causa da imoralidade, cada

um deve ter sua esposa, e cada mulher o seu próprio marido. O mari-

do deve cumprir os seus deveres conjugais para com a sua mulher, e

da mesma forma a mulher para com o seu marido. A mulher não tem

autoridade sobre o seu próprio corpo, mas sim o marido. Da mesma

forma, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas

sim a mulher.Não se recusem um ao outro, exceto por mútuo consen-

timento e durante certo tempo, para se dedicarem à oração. Depois,

unam-se de novo, para que Satanás não os tente por não terem do-

mínio próprio. Digo isso como concessão, e não como mandamento.

Gostaria que todos os homens fossem como eu; mas cada um tem

o seu próprio dom da parte de Deus; um de um modo, outro de outro.

(NVI-PT) 1 Coríntios 7:1-7

A ética cristã do matrimônio contrastava completamente com o mundo pagão no qual

a mulher não tinha direitos sobre o próprio corpo e vontade. Ao lado do ambiente favorável

no lar, na comunidade cristã as mulheres ocupavam posições de liderança e autoridade. A

maior autonomia das mulheres nas comunidades cristãs aparece, por exemplo, numa com-

paração na idade de casamento das mulheres romanas. As mulheres cristãs se casavam

mais tarde, o que demonstra mais respeito e cuidado familiar. Segundo Stark as mulheres

eram entregues ao casamento no paganismo muitas vezes antes da puberdade e gravidez

e partos no início da adolescência estejam sujeitos a complicações de saúde maiores. Veja abaixo a tabela. (p. 123)

A terceira razão para a influência das mulheres no crescimento do cristianismo está li-

gada aos casamentos exogâmicos. Na antropologia chama-se exogamia o casamento com

cônjuge que não pertence ao mesmo grupo e endogâmico o casamento ocorrido dentro do

mesmo grupo religioso, étnico ou social. Já observamos que havia uma quantidade maior

de mulheres entre os cristãos do que entre os pagãos, a taxa maior de mulheres gerava difi-

culdades para que encontrassem parceiros para casamento dentro da própria comunidade

cristã, isso levou aos casamentos exogâmicos. Embora bispos tenham insistido para que

os cristãos se casassem com outros cristãos, nem sempre havia candidatos suficientes.

Stark lança mão de uma “lei” sociológica segundo a qual “toda vez que ocorre um casa-

mento misto, o cônjuge menos religioso normalmente irá aderir à religião do cônjuge mais

religioso” (Idem, p. 130). Isso levou ao que o autor chama de conversão secundária que se

dá quando a pessoa se aproxima indiretamente da religião por meio da convivência com

um convertido. Nessa linha dos casamentos, nas classes altas era comum que as mulheres

convertidas exercem influência em favor da comunidade cristã junto aos seus maridos.

O quarto motivo sociológico para explicar a contribuição das mulheres para o cresci-

mento do cristianismo aparecerá quase que como desdobramento dos anteriores, a saber,

mais mulheres, mais casamentos e mais filhos. Resultado final: mais cristãos. Não é difícil

entender a vantagem numérica dos cristãos sobre os pagos se pensarmos que a mortali-

dade de mulheres e crianças era mais baixa entre os cristãos e as taxas de casamento e

fertilidade eram mais elevadas.

 

UA5 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 5

5 As ciências sociais utilizadas na exegese dos textos bíblicos

OBJETIVOS

1 Inserir a relação entre correntes teológicas e o uso das Ciências Sociais

2 Demonstrar como os métodos das Ciências Sociais podem levar a uma compreen-

são mais profunda das Escrituras

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Se faz necessário, uma vez que essa unidade de aprendizagem trata do modo como

as ciências sociais são utilizadas na exegese dos textos bíblicos, uma aproximação mais

geral sobre as diferentes perspectivas que os grupos cristãos nutrem em relação ao texto

bíblico. Outra vez o tema da modernidade aparecerá e isso nos parece lógico uma vez que

as ciências sociais nasceram com a modernidade, o modo como cada grupo cristão se

relaciona com a modernidade determinará o uso que se permitirá das ciências sociais na

exegese bíblica.

A leitura da Bíblia e suas mediações

O sociólogo Steve Bruce (1990) considera que a grande diferença entre protestantismo

e catolicismo se encontra na resposta que esses dois ramos do cristianismo dão à seguinte

questão: como posso saber o que é necessário para a salvação? A partir da resposta que cada

um dos ramos do cristianismo dará a essa questão Steve Bruce faz as seguintes distinções:

A maior divisão na cristandade entre Católicos e Protestantes diz res-

peito à epistemologia. A parte não-reformada da Igreja Cristã acredita

que o conhecimento sobre Cristo existe em dois locais. O registro de

seu trabalho e de seu ensino está disponível nos textos escritos da Bí-

blia. Mas antes de sua morte, Jesus transmitiu algo de sua autoridade

para os discípulos e, particularmente, para Pedro. A autoridade de Pe-

dro foi ‘rotinizada’ na burocracia do papado. Embora muito do poder

da Igreja Católica no dia-a-dia venha de sua habilidade para executar

serviços religiosos, sua autoridade repousa na alegação de ser ela a

fonte válida para interpretação da Bíblia e da doutrina cristã.

 

O centro da Reforma foi sua rejeição da autoridade da Igreja. Protestantes acreditam que a Bíblia contém tudo que é necessário para a salvação e que pode ser compreendida pelo

homem comum. Certas passagens podem ser obscuras, mas aquilo que é essencial para a

salvação está disponível para aqueles que leem ou escutam outros lendo. (Bruce, 1990, p. 32)

Protestantes, por este recorte teológico, são as igrejas que recorrem à Bíblia como

fonte de autoridade para o conhecimento da verdade religiosa. Isto implica numa rejeição

da tradição, pelo menos quando a doutrina ou prática não estão explicitadas nas Escrituras.

A adoção desse princípio escriturístico tem consequências amplas para o protestantismo,

como lembra Peter Berger (1985).

A essência da teologia protestante residiria numa atitude epistemológica de avaliação

e subscrição tão somente das crenças e práticas eclesiásticas que encontrem apoio ex-

plícito nas Escrituras. Jean Paul-Willaime destacará que o princípio da “Sola Scriptura” faz

com que a Igreja (tradição) seja julgada pela mensagem verdadeira, ou seja, não é a insti-

tuição que legitima a mensagem, mas a última é elevada como critério para julgar a Igreja.

Isto fica claro nas seguintes passagens da Confissão de Fé de Westminster:

A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e

obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igre-

ja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que é o seu au-

tor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus. (Cap.

I – Da Escritura Sagrada)

A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura;

portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido

de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único),

esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que

falem mais claramente. (Cap. I – Da Escritura Sagrada)

O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de

ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de

concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas

de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença

nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falan-

do na Escritura. (Cap. I – Da Escritura Sagrada)

Esta Igreja Católica tem sido ora mais, ora menos visível. As igrejas

particulares, que são membros dela, são mais ou menos puras con-

forme neles é, com mais ou menos pureza, ensinado e abraçado o

Evangelho, administradas as ordenanças e celebrado o culto público.

(Cap. XV – Da Igreja)

“”

Um mínimo de familiaridade com o universo protestante é suficiente para atestar o fato

de que a elevação da Escritura à condição de árbitro não resolveu os problemas, uma vez

que ela precisa ser interpretada. A própria fragmentação do protestantismo numa infinida-

de de grupos, testemunha que as interpretações do texto bíblico nunca foram consensuais.

Porém, duas grandes linhas hermenêuticas foram se cristalizando no interior do protestan-

tismo nos últimos dois séculos. Seguindo a sugestão de Bruce (1990) vamos chamá-las de

conservadora e liberal. Importante salientar que o uso dos termos liberal e conservador não

são juízos de valor e quanto ao termo liberal é preciso enfatizar que nada tem a ver com

comportamentos imorais ou ausência de crença. Liberalismo e conservadorismo na pers-

pectiva são duas atitudes epistemológicas diferentes quanto ao texto bíblico.

A corrente conservadora, com várias gradações, mantém o pressuposto de que é

possível uma leitura direta da Bíblia e sua compreensão pelo homem comum. A corrente

liberal, bem como seus herdeiros, sustenta a necessidade de mediação hermenêutica

para que a mensagem da Bíblia seja compreendida pelo homem moderno e contemporâ-

neo. Steve Bruce (1990, p. 33) afirma que o protestantismo liberal aceita os pressupostos

e ciências naturais e das ciências sociais, o que não significa que a Bíblia não possua um

lugar de destaque em sua religião. Todavia, ela é interpretada à luz da razão e da cultura

moderna. Isto torna necessário compreender o liberalismo teológico de forma mais am-

pla, não restringindo-o a um período histórico ultrapassado pelo protestantismo. Peter

Berger (1985, p.168) observa que a compreensão dos movimentos que deram origem

ao liberalismo teológico, bem como seus desdobramentos, são fundamentais para uma

sociologia histórica do protestantismo. Ele destaca ainda, com o que concordamos, que

o liberalismo teológico, embora durasse pouco como fenômeno histórico, teve, todavia,

alcance impressionante, uma vez que afetou todos os campos do pensamento teológi-

co: estudos bíblicos, história da Igreja, ética e teologia sistemática. Para contrastar as

diferenças hermenêuticas entre as diferentes tradições cristãs, Steve Bruce (1990, p. 34)

propõe o seguinte quadro esquemático:

 

Bruce faz algumas observações importantes para evitar uma esquematização reducio-

nista ou ingênua. A primeira diz respeito ao uso que o protestantismo conservador faz da

Bíblia. Este tipo de protestantismo alega que sua leitura da Bíblia não é marcada por influên-

cias culturais, fato que evidentemente não pode ser aceito sob uma perspectiva sociológica.

Entretanto, é relevante justamente o uso que se faz, nos diversos tipos de protestantismo

conservador, da Bíblia para legitimação de determinadas opções culturais. A segunda obser-

vação diz respeito às possibilidades de combinação entre as quatro fontes de autoridade.

Se a princípio o modelo construído por Bruce pode parecer impreciso, principalmente

quando se afirma que os grupos cristãos combinam elementos de mais de uma fonte de

autoridade, um exame atento poderá revelar que o modelo é útil para apontar o princípio

teológico que predomina no grupo em questão. O próprio Bruce ilustra isto fazendo menção

aos pentecostais e aos grupos carismáticos do catolicismo. Para os pentecostais, a fonte

de autoridade é uma combinação entre Espírito e Bíblia, e para os carismáticos é uma com-

binação entre Espírito e Igreja (Papa e bispos). No caso dos pentecostais pode-se caminhar

em direção ao protestantismo conservador ao se escolher a Bíblia como critério para julgar

quais manifestações do Espírito são verdadeiras, e, no caso do catolicismo carismático, a

submissão à autoridade hierárquica aparecerá como critério para atestar que as manifesta-

ções do Espírito pertencem à tradição católica.

Sob o ponto de vista do uso das ciências sociais para entendimento do texto bíblico

o protestantismo liberal liderou com ampla vantagem esse processo. No século XIX e na

primeira metade do século XX uma série de esforços foram feitos com o uso das ciências

sociais para se chegar ao “Jesus histórico”. Já na segunda metade do século XX surgiram

as teologias contextuais e políticas. São correntes teológicas (teologia da libertação, teo-

logia negra, teologia feminista, teologia do meio ambiente etc.) que partilham, em comum

com o liberalismo teológico, uma leitura bíblica que leva em conta os condicionantes cultu-

rais da mensagem religiosa. Assim, por exemplo, a teologia feminista irá denunciar o viés

machista/patriarcal dos relatos bíblicos. A teologia da libertação, o conflito de classes e a

“opção preferencial de Deus” pelos pobres. A teologia negra, de J. Cone, também é um tipo

de teologia da libertação. Da mesma forma que fizeram o liberalismo teológico e o ecume-

nismo, estas teologias assumem como sua missão a tarefa de “tradução” da mensagem

cristã para termos modernos. Porém, diferentemente do liberalismo e do ecumenismo, que

pensaram e atuaram globalmente, essas teologias se definem mais pela agenda de grupos

locais e de movimentos sociais específicos.

Como as ciências sociais podem contribuir para a exegese?

É pouco provável que qualquer leitor encontre hoje um livro de exegese acadêmica

que não tenha incorporado em seu processo de análise e interpretação do texto bíblico

pressupostos das ciências sociais. De modo sintético e geral as ciências sociais são

utilizadas na exegese para:

históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas em que eles foram escritos e

lidos, levando em conta os aspectos como a autoria, a datação, a localização, a au-

diência, o gênero literário, a intenção, a mensagem etc.

Identificar as influências e as interações dos textos bíblicos com outras tradições

religiosas e culturais, como o judaísmo, o helenismo, o islamismo, o orientalismo

etc., reconhecendo as semelhanças e as diferenças entre elas.

aos textos bíblicos, como as relações de poder, de classe, de gênero, de etnia, de

família, de religião etc., percebendo as tensões, os conflitos, as negociações, as

alianças, as resistências, as transformações etc.

temporânea, a partir de uma perspectiva crítica e contextualizada, que considere os

desafios e as oportunidades que se apresentam para a fé e a prática cristãs, como

a secularização, o pluralismo, a globalização, a ecologia, a justiça, a paz etc.

Dois exemplos do modo como as ciências sociais podem modificar a compreensão de

textos bíblicos

Não percebemos o modo como nosso condicionamento cultural interfere na leitura dos

textos bíblicos. Veja o seguinte texto:

Naquela hora, aproximaram-se de Jesus os discípulos, perguntando:

Quem é, porventura, o maior no reino dos céus? E Jesus, chamando

uma criança, colocou-a no meio deles. E disse: Em verdade vos digo

que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de

modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se hu-

milhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus. E quem

receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe.

(Almeida Revista e Atualizada) Mateus 18:1-5

Deixando de lado outros temas presentes no texto, tomemos a menção feitas a uma

criança e às crianças em geral. Como ocidentais vivendo no século XXI estamos conscien-

tes da necessidade de proteção das crianças. Durante as últimas décadas um aparato de

leis e instituições foram elaboradas com a finalidade de garantir que as crianças serão pro-

tegidas de violências e terão assegurados seus direitos para um desenvolvimento saudável.

Importante lembrar que nossa cultura associa, além da noção de direitos e proteção, certa

pureza à condição da criança. Esses pressupostos culturais tornam a comparação feita por

Jesus entre conversão e a condição infantil uma espécie de convite para que os seguidores

de Jesus assumam as virtudes presentes na infância: pureza, ingenuidade, humildade etc.

Entretanto, quando olhamos para o texto a partir das lentes das ciências outras dimensões

sobressaiam e o texto e sua mensagem passam a ser problematizados. Veja como o exe-

geta John Dominic Crossan utiliza as ciências sociais para entender Mateus 18:1-5:

O queum camponês da Galiléia pensaria das crianças? Será que ‘como

uma criança’ seria prontamente interpretado como o equivalente de

82 83

ser humilde, inocente, novo e crédulo? […] Pense nas crianças – na sua

maioria meninas, mas às vezes também meninos – que eram abando-

nadas pelos pais logo depois de nascer e resgatadas em monturos de

lixo para serem criadas como escravos. […] Ser criança era a mesma

coisa que não ser ninguém. A sua única possibilidade de algum dia

se tornar alguém dependia da vontade dos pais e de sua posição na

comunidade. É isso, na minha opinião, que está no cerne de qualquer

alusão ou interpretação a respeito dessa metáfora chocante. Um rei-

no dos humildes, dos celibatários ou dos batizados é uma ideia que

só vem mais tarde. Antes vem o seguinte: um reino das crianças é um

reino de ninguém. (Crossan, 1994, p. 306)

 

Possibilidade interpretativas completamente diferentes surgem a partir da informação

que a compreensão que se tinha da infância no tempo de Jesus era muito diferente do en-

tendimento que temos hoje. O objetivo aqui não é discutir o texto em detalhes, mas com

este exemplo apenas ilustrar como lemos o tempo todo o texto bíblico com as lentes do

nosso tempo e cultura e as ciências sociais chegam para nos auxiliar na ampliação das

possibilidades de entendimento do texto e da nossa própria realidade.

Os séculos XX e XXI têm sido marcados por lutas em favor da igualdade entre os gê-

neros. Nas sociedades modernas, as mulheres conquistaram o direito ao voto e ao exercí-

cio de profissões que tradicionalmente eram exercidas pelos homens. Em nossos dias, o

exercício de atividades domésticas por homens, bem como de profissões tradicionalmente

restritas ao universo feminino não são vistas com completa estranheza. Apesar dos avan-

ços em direção à igualdade de gêneros na esfera pública, inúmeros estudos registram que

mulheres realizam dupla jornada de trabalho e ganham salários menores que homens, ocu-

pando funções semelhantes. Diversas formas de violência contra as mulheres persistem na

sociedade contemporânea. Empoderamento feminino (tradução do inglês: empowerment)

é o termo utilizado na luta pela promoção da equidade entre os gêneros.

O estudo do gênero é tanto um dos temas mais antigos da sociologia quanto um dos

assuntos de maior interesse na atualidade. O primeiro contato da sociologia com as di-

ferenças de gênero se deu pela via do estudo da divisão sexual do trabalho nas culturas.

Estudos realizados em mais de 200 sociedades constataram a presença da divisão sexual

do trabalho em todas. Embora existam variações de uma cultura para outra entre ativida-

des que são atribuídas aos homens e atividades que cabem às mulheres, o fato é que as

sociedades separam papéis e obrigações de acordo com os gêneros masculino e feminino.

Obviamente, a segregação dos papéis de acordo com o gênero é feita quase que invariavel-

mente em prejuízo do sexo feminino.

A Bíblia ajuda ou atrapalha na promoção da igualdade entre os gêneros? Não é segre-

do que a Bíblia foi escrita num contexto cultural de predomínio masculino. Leituras con- servadoras dos textos bíblicos têm sido feitas ao longo dos séculos para justificar a subal-

ternidade feminina em diferentes contextos culturais. Entretanto, textos bíblicos têm sido

igualmente citados para apoiar o empoderamento feminino defendido na atualidade. Um

dos textos mais citados com este propósito é extraído da carta de Paulo aos gálatas:

Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto;

nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.

29 E, se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão e her-

deiros segundo a promessa. (Almeida Revista e Atualizada) Gálatas

3:28-29

 

A ideia básica do texto é que, em Cristo, a humanidade está sendo recriada sem as bar-

reiras étnicas, sociais, econômicas, culturais, incluindo-se os papéis socioculturais atribuí-

dos a cada gênero. O ingresso na família de Abraão se dá pelo batismo, que diferentemente

da circuncisão que se aplicava somente aos homens, aplica-se igualmente aos homens e

mulheres, aos escravos e livres, aos gentios e aos judeus.

A discussão estaria praticamente encerrada em favor do empoderamento feminino se

todos os textos paulinos tivessem sido escritos nessa direção. Todavia, é das epístolas

paulinas que emergem argumentos fortemente arraigados na cultura cristã em favor da

diferenciação de papéis masculinos e femininos, o que em si não seria um problema se não

fossem acompanhados da defesa de determinados modelos socioculturais que claramen-

te colocam as mulheres numa posição de inferioridade. Não é nosso propósito examinar

todos os textos paulinos. Vejamos aquele que talvez seja o mais invocado para justificar a

inferioridade das mulheres em relação aos homens. Trata-se de 1 Timóteo 2.8-15:

Quero, portanto, que os varões orem em todo lugar, levantando mãos

santas, sem ira e sem animosidade. Da mesma sorte, que as mulhe-

res, em traje decente, se ataviem com modéstia e bom senso, não

com cabeleira frisada e com ouro, ou pérolas, ou vestuário dispendio-

so, porém com boas obras (como é próprio às mulheres que profes-

sam ser piedosas). A mulher aprenda em silêncio, com toda a sub-

missão. E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade

de homem; esteja, porém, em silêncio. Porque, primeiro, foi formado

Adão, depois, Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enga-

nada, caiu em transgressão. Todavia, será preservada através de sua

missão de mãe, se ela permanecer em fé, e amor, e santificação, com

bom senso. (1 Timóteo 2.8-15, RA)

 

Nas observações que se seguirão devo registrar que sou inteiramente devedor ao bi-

blista N.T. Wright, o qual, com seu conhecimento do texto original, das peculiaridades do

ambiente cultural do Novo Testamento e de sua argúcia teológica, fez-me enxergar novas

possibilidades de leitura dessa passagem.

Citar essa passagem é uma espécie de “cala-boca” num debate sobre a igualdade entre mulheres e homens. Geralmente esse texto é mencionado para negar às mulheres

o direito à ordenação ministerial (ser pastora, presbítera ou diaconisa). Entretanto, não é

incomum que seja lembrado para justificar a subalternidade das mulheres no mundo do

trabalho e no âmbito das relações familiares. Assim, se entendermos que essa passagem,

aparentemente tão contundente a respeito inferioridade das mulheres, talvez não esteja

dizendo o que nos acostumamos a achar que ela diz, outras possibilidades de leitura se

farão presentes. Vale ressaltar que se trata de uma leitura menos discrepante do espírito de

justiça, paz e beleza que predomina nos demais textos bíblicos.

O conhecimento do contexto de qualquer passagem bíblica é fundamental para seu en-

tendimento correto. A segunda epístola foi enviada a Timóteo enquanto ele estava na cida-

de de Éfeso. O templo principal da cidade era dedicado ao culto da deusa Artêmis (chama-

da pelos romanos de Diana). O serviço religioso era conduzido somente por sacerdotisas,

sendo os homens excluídos de qualquer papel de autoridade. O conhecimento do contexto

da cidade é importante pela seguinte razão: imagine um pequeno grupo religioso que ini-

cia suas atividades numa cidade na qual predomina uma religião dominada por mulheres;

por outro lado, o background cultural desse novo movimento religioso é proveniente de um

mundo no qual predominam os homens. Como pensar a liderança numa situação dessas?

Como fugir dos estereótipos culturais de ambos? É esse o tipo de questão que subjaz os

conselhos pastorais do apóstolo Paulo. É bom sempre lembrar que conselhos pastorais

são uma espécie de incentivo à contextualização e ao bom senso, nunca uma regra a ser

seguida cegamente.

Tendo em mente que Paulo busca fugir dos estereótipos masculinos e femininos, po-

demos fazer as seguintes observações a respeito. No versículo 8, Paulo está orientando

os homens às orações, deixando de lado a truculência masculina e as discussões para

autoafirmação. Nos versículos 9 e 10 ele ataca o estereótipo feminino segundo o qual as

mulheres deveriam cuidar apenas da aparência e de futilidades. Ao invés, deveriam se de-

dicar às boas obras. Essa expressão é importantíssima, pois era um chamado para que as

mulheres ocupassem um espaço público na sociedade e gastassem o seu tempo e dinheiro

ajudando as pessoas que se encontravam em situação de vulnerabilidade social. O chama-

do às boas obras mostra que as mulheres poderiam ocupar o lugar de benfeitoras da cida-

  1. Os versículos 11 e 12 são os mais invocados para negar direitos às mulheres na igreja

e na sociedade. Neles são mencionados que as mulheres devem aprender em silêncio e

em submissão e que não devem ensinar nem exercer autoridade de homem. Reproduzo a

seguir o comentário de N.T. Wright:

A chave para a presente passagem, então, é reconhecer que ela or-

dena que as mulheres também deveriam poder estudar e aprender,

sem serem impedidas de fazer isso (1 Tm 2.11). Elas devem se por-

86

tar “com total submissão”; isso, muitas vezes, é entendido como “aos

homens” ou “ao marido”, mas é igualmente provável que se refira à

atitude de submissão do aprendiz a Deus ou ao evangelho – que, sem

dúvida, também se aplicaria aos homens. Então, o versículo 12, que

é fundamental, não precisa ser lido como: “E não permito que a mu-

lher ensine, nem exerça autoridade de homem” – uma tradução que

causou muita dificuldade nos últimos anos. Pode igualmente signi-

ficar (e no contexto faz muito mais sentido): “e não quero dizer que

agora estou instituindo as mulheres como a nova autoridade sobre os

homens, assim como, antes, os homens tinham autoridade sobre as

mulheres”. (WRIGHT, 2015, p. 85)

Considerando o contexto mencionado anteriormente, é possível afirmar que Paulo está

ensinando que as mulheres devem ter tranquilidade (tempo e espaço) para aprender a sua

maneira e não devem se preocupar em impor sua liderança à moda masculina ou imitando

o culto à Artêmis, no qual mandavam somente as mulheres. Em Cristo, homens e mulheres

estão livres dos estereótipos para que possam relacionar-se, desenvolver seus dons e o

estilo de liderança condizente com o evangelho de amor.

Restam ainda os versículos 13,14 e 15. Sempre me incomodou o argumento paulino de

que o homem pecou deliberadamente, enquanto a mulher foi enganada. Ora, o bom senso

faz recair pena maior sobre aquele que comete um delito sabedor do que está fazendo.

Entretanto, se lembrarmos a ênfase no fato de que a mulher deve estudar, deve aprender

(versículo 11), o sentido do texto muda completamente. Ao estudar e aprender não será in-

duzida a escolhas das quais não tenha consciência, estará livre para fazer as suas escolhas

e será, portanto, responsável por tais escolhas. O versículo 15 faz menção da preservação

da mulher por meio da sua missão como mãe. A maternidade não é um castigo divino,

tampouco a única opção na vida de uma mulher. O pecado acrescentou dores ao parto,

mas não alterou a estrutura da ordem criada e muito menos retirou a dignidade do lugar

conferido à mulher.

Meu propósito neste breve texto é apenas ilustrativo e não exaustivo. Outras passa-

gens bíblicas que são costumeiramente interpretadas de maneira restritiva ao papel das

mulheres na vida da igreja e da sociedade devem ser interpretadas levando em conta o con-

texto de seus leitores originais e os grandes princípios gerais das Escrituras: amor, justiça,

a nova criação em Cristo, dentre outros. Não é um bom princípio hermenêutico interpretar

passagens bíblicas que encerram usos e costumes de época em oposição aos princípios

maiores claramente expressos no Evangelho. Por fim, reproduzo a passagem que examina-

mos na tradução oferecida por N.T. Wright.

É isto que eu quero: os homens devem orar em todo lugar, levan-

tando mãos santas, sem raiva nem disputas. De igual modo, as mu-

lheres também devem se vestir decentemente, sendo modestas e

86 87

sensíveis quanto a isso. Elas não devem se entregar a penteados

elaborados, a ouro, a pérolas ou a roupas caras. Em vez disso, como

é apropriado a mulheres que dizem ser devotas, devem se enfeitar

com boas obras. Elas precisam estudar sem perturbações, em total

submissão a Deus. Não estou dizendo que as mulheres devem en-

sinar os homens ou tentar impor-se a eles; pelo contrário, digo que

ninguém deve impedi-las de estudar. Adão foi criado primeiro, veja

bem, e depois, Eva; e Adão não foi enganado, mas a mulher foi enga-

nada e caiu em transgressão. Contudo, ela será mantida a salvo por

meio do processo de dar à luz, caso ela continue prudentemente em

fé, amor e santidade. (Idem, p.83)

 

 

 

TRANSCRIÇÃO DO VÍDEO COMPLEMENTAR

[Nota: A transcrição foi obtida através do vídeo original no canal TEDx Talks no YouTube, e a IA, realizou a organização em parágrafos, linhas etc. Data: 25/03/2025 – 14h36min]

O perdão melhora a saúde do seu coração – palavra de médico | Alvaro Avezum | TEDxSaoPauloSalon

Todos nós, indistintamente, todos neste auditório e remotamente, qualquer ser humano neste planeta, ou conhecemos circunstâncias alheias, ou passamos por situações onde dizemos:

“Não consigo perdoar, estou magoado, fiquei ressentido.”

E o oposto disso? Indivíduos com resignação, bom enfrentamento, gratidão… enfim, sentimentos.

Identificar o que isto tem a ver com a ciência, com a pesquisa ou, melhor, com o adoecimento do coração? Tudo, tudo!

Nesta jornada de alguns minutos, vamos compartilhar com vocês ideias que a ciência precisa considerar para traçarmos sugestões transformadoras para nossa saúde, com base em um modelo que anteriormente não havia sido pensado.

A ciência tem que se ocupar de traçar sugestões transformadoras para nossa saúde.

Em 2017, ocorreram 1.271.000 óbitos no Brasil.

Um terço desses óbitos teve como causa a doença cardiovascular: infarto (ataque cardíaco) e acidente vascular cerebral (derrame).

A sociedade apresenta esse encurtamento da sobrevida por meio da doença. Mas por que isso acontece?

O lar tem um modelo muito bom e prático que explica nosso adoecimento, chamado de transição epidemiológica. O indivíduo sai da zona rural ou de uma cidade pequena e pacata e vai para uma cidade mais agitada.

O benefício inicial é claro: vacinas, saneamento… Mas, a partir da vida nesse ambiente tóxico, nossa alimentação se altera, o sedentarismo cresce, o tabagismo surge.

Esses três fatores já são conhecidos, mas há um quarto elemento: forte carga de estresse, seja no ambiente doméstico, na sociedade ou no trabalho.

A partir desses fatores, chamados de fatores de risco, surgem com o tempo: pressão alta, diabetes, obesidade e alteração do colesterol — ingredientes perfeitos para que, num determinado momento, ocorra o evento cardiovascular.

A área azul no Brasil não significa que está tudo azul.

Se vocês olharem esse mapa, verão que a área azul representa o aumento das taxas de morte por infarto.

Não está havendo redução. Apesar dos avanços tecnológicos e genéticos, não há redução da mortalidade por doenças cardiovasculares em países em desenvolvimento, como o Brasil.

Com base nisso, buscamos entender quais fatores estão associados ao infarto.

Por meio de uma colaboração de 52 países, incluindo o Brasil, identificamos nove fatores de risco responsáveis por 90% do risco de infarto.

Nada de genética, nada de fatores inovadores.

Fatores simples como:

Mas um fator merece destaque: o fator psicossocial, um nome pomposo para estresse e depressão.

Se observarmos o gráfico de pizza, veremos que 33% (ou 32,5%) do risco de infarto está associado ao estresse e à depressão.

Se gerenciarmos melhor o estresse e a depressão, se melhorarmos nosso enfrentamento da vida, de nossos relacionamentos — conosco, com a família, no trabalho e na sociedade — evitaríamos um terço dos infartos.

Isso significa 140 mil infartos a menos por ano no Brasil.

O pesquisador precisa questionar.

Ele deve sempre manter 10% de dúvida e perguntar: “Isso é suficiente para explicar o adoecimento? O infarto? O derrame?”

Pensando assim, surge um novo modelo para explicar o adoecimento.

Hoje, há muita tecnologia para compensar um modelo que talvez não explique adequadamente o adoecimento, especialmente do ponto de vista cardiovascular.

E, nessa linha, temos um fator chamado espiritualidade.

O silêncio é espiritualidade.

Mas o que não é espiritualidade?

Já a espiritualidade tem outra definição.

Segundo a Dra. Puchalski, espiritualidade é parte intrínseca e dinâmica do ser humano, independente de crença ou religião, por meio da qual buscamos propósito e sentido na vida e nos relacionamos conosco e com os outros.

Na Sociedade Brasileira de Cardiologia, temos um grupo de estudos sobre espiritualidade e medicina cardiovascular, com 850 cardiologistas.

Propusemos outra definição:

“Espiritualidade é o estado mental e emocional que norteia nossos pensamentos, atitudes e ações, refletindo-se especialmente na vida de relacionamento: com nós mesmos, com os outros e com a sociedade.”

Buscamos a literatura científica.

Com certo ceticismo no início, vimos que a literatura médica sobre espiritualidade e religiosidade é abundante.

Questionários validados mostraram que espiritualidade e religiosidade estão associadas a:

Na verdade, não reduzimos a mortalidade, mas reagendamos a data do evento.

Se esse fator pode transformar a sociedade, a ciência tem obrigação de investigar.

Isso nos leva a uma pergunta científica: o ser humano tem que adoecer para morrer?

Não necessariamente. Há exemplos de pessoas que envelhecem e falecem sem adoecimento grave.

Se propormos um novo modelo para o adoecimento, podemos encontrar explicações até então não consideradas.

Por exemplo, pacientes com doença coronária (placa de gordura na coronária) que possuem prontidão ao perdão apresentam menor quantidade de isquemia (falta de sangue no músculo cardíaco).

A ciência está estudando isso.

Além disso, indivíduos coléricos, com tendência à raiva, apresentam:

Isso pode indicar que o verdadeiro adoecimento vem de fatores emocionais e psicológicos antes dos fatores físicos.

Se olharmos todos os estudos que avaliam religiosidade e espiritualidade, veremos uma redução nas taxas de mortalidade.

Isso é papel da ciência investigar.

Falamos então de virtudes e sentimentos edificantes.

Dentro da ética cristã, judaica ou mesmo do humanismo secular, encontramos princípios como:

Questionários científicos mostraram que essas virtudes podem prevenir o adoecimento, enquanto sua ausência pode favorecer a doença.

Em 1995, introduzi a medicina baseada em evidências no Brasil.

A medicina precisa de comprovação científica, e evidências sobre espiritualidade e saúde precisam ser geradas e analisadas.

Um estudo com 75 mil enfermeiras nos EUA acompanhou por décadas sua religiosidade e enfrentamento da vida.

O resultado?

Aquelas que utilizavam sentimentos positivos para enfrentar adversidades tiveram menor mortalidade por doenças cardíacas e câncer e uma redução geral na mortalidade.

Isso não vem da genética.

O impacto genético é mínimo.

Talvez devamos olhar mais profundamente para a espiritualidade para entender melhor nosso adoecimento.

Concluindo:

  1. O perdão pode fazer bem ao coração.
  2. Fazer o bem e cultivar sentimentos edificantes pode reduzir o risco de doenças cardiovasculares.
  3. Precisamos gerar mais evidências científicas sobre isso.

Quem sabe, nos próximos anos, teremos mais razões para entender por que o ser humano deve melhorar seus relacionamentos, especialmente dentro da família.

Muito obrigado de coração.

[Aplausos]

 

FT2 –

 

Vimos que a teologia pública é um esforço da igreja para compreender  e cooperar com os temas discutidos pela sociedade. Mais do que isso. Além de refletir biblicamente sobre os assuntos, a teologia pública encoraja o engajamento de cristãos e a cooperação das igrejas na busca de soluções para os problemas sociais. Levando em consideração o contexto onde está sua igreja, quais demandas sociais desafiam a comunidade cristã a dar testemunho do amor de Deus a partir de ações concretas. Cite pelo menos duas e explique como cada tema representa um desafio para sua igreja.

Após realizar a sua postagem, leia e interaja com os seus colegas, comentando, ao menos, 1 postagem realizada por eles.

 

A teologia pública é uma abordagem teológica que dialoga com os desafios da sociedade contemporânea, buscando contribuir para o bem comum e a cidadania. Diferente da apologética, que defende a fé cristã, a teologia pública reflete biblicamente sobre temas como democracia, direitos humanos, justiça social, ética, meio ambiente, imigração e outros, incentivando o engajamento de cristãos e igrejas na busca de soluções para problemas sociais, promovendo ações práticas e concretas.

 

Em minha comunidade de fé, de linha reformada; enfrentamos a dura realidade abordada no Censo 2024, realizado pela igreja nacional, Igreja Presbiteriana Independente do Brasil – IPIB. Os dados nacionais apresentaram um igreja, com membresia adulta e idosa, com etariedade de:

 

14% pertence ao grupo de 0 à 14 anos;

19% pertence ao grupo de 15 à 29 anos;

51% pertence ao grupo de 30 à 64 anos;

16% pertence ao grupo +65 anos.

 

Isso demonstra que somos uma denominação com poucas crianças, adolescentes e jovens. Essa dura realidade não se limita apenas na população da IPIB, mas também na população secular nacional. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a taxa de natalidade do país tem caído vertiginosamente a alcançou patamares preocupantes, atualmente o Brasil possui uma taxa de natalidade de 1,65 de filhos por casal, contra 2,2 filhos necessários para manter a população estável. Ainda segundo o IBGE no ano de 2070, teremos apenas 1.487,716 recém nascidos, contra, 3.423,475 recém nascidos no ano de 2000. Uma queda de mais de 50%, o que pode representar sérios problemas para as próximas gerações.

 

Diante do exposto, seria importante uma trabalho de conscientização de toda comunidade cristã, afim de educar sobre a decisão de ter filhos. Atualmente no meio secular, e infelizmente esse pensamento tem tomado conta de nossas igrejas; a de que crianças são um fardo e que dão muito trabalho. Também a valorização do trabalho remunerado afim de garantir o sustendo tem levado casais e decidirem protelar a maternidade e até a limita-la a apenas 1 filho por casal.

O ensino pode representar uma saída para esse prognóstico preocupante. Tanto nossas igrejas, como nossas comunidades secular, não terão descendência para transmitir e preservar os ensinamentos bíblicos/religiosos.

 

Outro ponto relevante é população idosa, segundo o IBGE, no ano de 2070, a população de 80 anos será de 2.156,168, contra 288,778 no ano 2000; o que representa um aumento de quase 650%.

Também o ensino pode representar uma saída para esse duro prognóstico. Cuidados com a saúde, bem estar físico e emocional, dignidade humana, respeito aos idosos, dentro outros ajudarão os atuais idosos e os futuros idosos.

 

Também o ensino pode representar uma saída para esse duro prognóstico. Cuidados com a saúde, bem-estar físico e emocional, dignidade humana e respeito aos idosos, entre outros, ajudarão os atuais idosos e os futuros idosos.

 

A Teologia pública pode contribuir para esse dos extremos, tanto em nossas comunidades de fé, quanto nas comunidades seculares, a natalidade e a etariedade, são problemas que afeta e afetará a todos.

 

 

FONTES:

https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39560-em-2022-numero-de-nascimentos-cai-pelo-quarto-ano-e-chega-ao-menor-patamar-desde-1977

https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html?

https://ojornaldaverdade.com.br/o-brasil-envelhece-a-urgencia-de-uma-mudanca/

https://ojornaldaverdade.com.br/cristao-tenham-filhos/

https://drive.google.com/file/d/1fI3mynCVvvDUEiNUNrGwesKH3Ro09Rms/view?usp=sharing

 

 

 

 

CORREÇÃO:

 

A Teologia Pública e os Desafios Demográficos da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil

 

A Teologia Pública é uma abordagem que busca dialogar com os desafios da sociedade contemporânea, contribuindo para o bem comum e a cidadania. Diferentemente da apologética, que defende a fé cristã, a Teologia Pública reflete biblicamente sobre questões como democracia, direitos humanos, justiça social, ética e meio ambiente, incentivando o engajamento de cristãos e igrejas na busca por soluções para problemas sociais.

 

Recentemente, a Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB) divulgou dados preocupantes em seu Censo 2024, que revelou uma comunidade com uma membresia predominantemente adulta e idosa. As estatísticas mostram que:

 

14% pertence ao grupo de 0 à 14 anos;

19% pertence ao grupo de 15 à 29 anos;

51% pertence ao grupo de 30 à 64 anos;

16% pertence ao grupo +65 anos.

 

Esses números refletem uma denominação que enfrenta o desafio de ter poucas crianças, adolescentes e jovens em suas fileiras, um problema que também é observado na população secular do país.

 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de natalidade do Brasil caiu para 1,65 filhos por casal, contra 2,2 filhos necessários para manter a população estável, criando preocupações sobre a manutenção da população. Em 2070, projeta-se que o país terá apenas 1.487,716 recém-nascidos, em comparação com 3.423,475 em 2000, representando uma queda alarmante superior a 50%. Esse cenário destaca a necessidade de conscientização sobre a decisão de ter filhos, combatendo a percepção, cada vez mais comum, de que as crianças são um fardo ou que a busca por uma carreira profissional é mais importante do que a maternidade.

 

O ensino pode representar uma saída para esse prognóstico preocupante. Tanto nossas igrejas quanto nossas comunidades seculares não terão descendência para transmitir e preservar os ensinamentos bíblicos e religiosos.

 

Outro aspecto relevante é o crescimento da população idosa. O IBGE estima que, em 2070, a população com 80 anos ou mais será de 2.156,168, em comparação com 288,778 em 2000, o que representa um aumento de quase 650%. Este fenômeno demográfico revela a necessidade de um cuidado redobrado com a saúde e o bem-estar físico e emocional dos idosos, assegurando dignidade e respeito em todas as etapas da vida.

 

Também o ensino pode representar uma saída para esse duro prognóstico. Cuidados com a saúde, bem-estar físico e emocional, dignidade humana e respeito aos idosos, entre outros, ajudarão os atuais idosos e os futuros idosos.

 

A Teologia Pública pode desempenhar um papel crucial na abordagem desses desafios. Através de ações concretas e educativas, a comunidade cristã pode promover uma visão positiva sobre a maternidade e a paternidade, além de assegurar que os direitos e o respeito aos idosos sejam priorizados dentro da igreja e na sociedade. A Teologia Pública pode contribuir para esses dois extremos, tanto em nossas comunidades de fé quanto nas comunidades seculares. A natalidade e a etariedade são problemas que afetam e afetarão a todos.

 

 

Fontes:

– M2 – Ciências Sociais unid 3.

– IBGE. Projeção da População. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9109-projecao-da-populacao.html>. Acesso em: 25 de março de 2025, às 16h40m.

– Agência de Notícias do IBGE. Em 2022, número de nascimentos cai pelo quarto ano e chega ao menor patamar desde 1977. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39560-em-2022-numero-de-nascimentos-cai-pelo-quarto-ano-e-chega-ao-menor-patamar-desde-1977>. Acesso em: 25 de março de 2025, às 16h41m.

– O Jornal da Verdade. O Brasil envelhece: a urgência de uma mudança. Disponível em: <https://ojornaldaverdade.com.br/o-brasil-envelhece-a-urgencia-de-uma-mudanca/>. Acesso em: 25 de março de 2025, às 16h42m.

– O Jornal da Verdade. Cristãos, tenham filhos! Disponível em: <https://ojornaldaverdade.com.br/cristao-tenham-filhos/>. Acesso em: 25 de março de 2025, às 16h43m.

 

 

 

 

 

 

 

INTERAÇÃO COM ROSARIA

 

 

A teologia pública nos chama a agir de forma concreta para enfrentar os desafios sociais e promover o bem comum. A criação de programas de capacitação profissional pode ajudar pessoas a conquistar independência financeira. A construção de hospitais com atendimento humanizado e acessível pode aliviar a sobrecarga dos serviços públicos de saúde. Espaços de acolhimento para pessoas em situação de rua, oferecendo alimentação, cuidados de higiene e aconselhamento pastoral, podem proporcionar dignidade e esperança. A teologia pública encoraja a busca de parcerias comprometidas com a justiça social, investindo tempo, talento e recursos financeiros, com a recompensa das promessas bíblicas de transformação e amor divino. Assim, a igreja manifesta o amor e cuidado de Deus de maneira prática e visível, além de pregar o evangelho e orar.

 

 

MODULO 3

UA1 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 1

1. Ciência política e o estudo do poder

OBJETIVOS

1 Apresentar as origens da Ciência Política

2 Acompanhar as diferentes justificativas para a existência do poder do Estado

3 Refletir sobre as formas legítimas de exercício do poder

PARA INÍCIO DE CONVERSA

A vida em sociedade pressupõe interessantes conflitantes e disputas entre pessoas

e grupos. Como impedir que a sociedade não se dissolva em uma guerra interminável en-

tre indivíduos e grupos? Como é possível obter obediência e cooperação? Respostas para

essas indagações foram dadas pela filosofia política e, mais tarde, pela Ciência Política.

Veremos as respostas e as diferenças entre elas.

Bons estudos!

Raízes e abrangência da ciência política

A ciência política ao lado da antropologia e da sociologia compõe a tríade das Ciências

Sociais. Trata-se da área das Ciências Sociais que se dedica ao estudo dos fenômenos

políticos, ou seja, as formas de organização, de representação e de exercício do poder nas

sociedades humanas. A ciência política busca compreender e explicar as estruturas, as

instituições, os processos, os comportamentos, as ideologias e as políticas públicas que

envolvem a dimensão política da vida social.

As origens da ciência política estão na filosofia política, área da filosofia que se ocupa

das questões éticas, normativas e práticas relacionadas à política. A filosofia política surgiu

na Grécia Antiga, com pensadores como Platão e Aristóteles, que se perguntaram sobre a

natureza, a finalidade e a forma ideal do Estado, da sociedade e do governo. Aristóteles, ao

responder sobre o direito das cidades-Estado ao exercício do poder de governar seus cida-

dãos, formulou o que veio a ser conhecido como naturalismo político:

A cidade-Estado é a comunidade completa, oriunda de muitas vilas, a qual, por assim dizer, alcança o limite máximo do autoprovimento dig-

no de suas próprias necessidades, vindo à luz para o viver, e existindo

para o bem-viver. É por isso que cada cidade-Estado existe por nature-

za, se também assim era as vilas que a formaram. E ela [a cidade-Es-

tado] é o fim dessas. Com efeito, cada coisa é depois que sua origem

se completou; dizemos ser esta a natureza de cada uma das coisas,

quer do cavalo, quer do homem ou da família (Aristóteles,2009, p 34)

A resposta de Aristóteles aponta para a natureza social dos seres humanos que os leva

da família, para a vila e desta para a cidade. A escala da cidade exige o exercício do poder

por meio do governo, assim como a família e as vilas, em escala menor, também exigiam

algum tipo de poder para o seu desenvolvimento natural.

Ao longo da história, outros filósofos, como Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Mon-

tesquieu, Kant, Hegel, Marx, entre outros, também contribuíram para o desenvolvimento do

pensamento político, abordando temas como a soberania, o contrato social, a separação

de poderes, a democracia, a liberdade, a igualdade, a justiça, etc. Entretanto, Nicolau Ma-

quiavel (1469-1527) marcou o ponto de virada na filosofia política moderna em relação ao

pensamento de Aristóteles. Sairá de cena o naturalismo e entrará o realismo político que

justifica a existência do Estado no exercício do poder para mediar os conflitos de interesses

entre grupos sociais. Assim escreve Maquiavel:

A história é mestra de nossos atos e máximas dos príncipes; e o mun-

do sempre foi, de certa forma, habitado por homens que sempre têm

paixões iguais; e sempre houve quem serve e quem ordena, e quem

serve de má vontade, e quem se rebela e se rende (Maquiavel, 2000,

  1. 165)

Há discordância entre Aristóteles e Maquiavel em relação aos meios para se obter o

bem coletivo. Enquanto o primeiro pensa que o interesse comum será obtido pela virtude

do governante, Maquiavel sustenta que a concretização do bem coletivo depende da capa-

cidade do governante equilibrar as diversas forças que compõem a sociedade. Cidadãos do

século XXI que somos, facilmente entenderemos por que a filosofia política de Maquiavel

recebeu a designação de realismo político.

Ainda no campo da filosofia política irá se contrapor ao realismo político o chamado

contratualismo. Ele estabelece como gênese da sociedade civil e do Estado a ideia de um

pacto social. Este pacto ou contrato social retira o ser humano de seu estado de natureza

e coloca-o em convivência com outros seres humanos em sociedade. Essa ideia do pacto

recebeu interpretações diferentes, como segue:

Thomas Hobbes (1588-1679) acreditava que o contrato social foi feito porque o ho-

mem é o lobo do próprio homem. Há no homem um desejo de destruição e de manter o domínio sobre o seu semelhante (competição constante, estado de guerra). Por isso, torna-

-se necessário existir um poder que esteja acima das pessoas individualmente para que o

estado de guerra seja controlado, isto é, para que o instinto destrutivo do homem seja do-

minado. Neste sentido, o Estado surge como forma de controlar os “instintos de lobo” que

existem no ser humano e, assim, garantir a preservação da vida das pessoas.

John Locke (1632-1704) defendeu que o Estado deve preservar o direito à liberdade e

à propriedade privada. As leis devem ser expressão da vontade da assembleia e não fruto

da vontade de um soberano. Locke é um opositor ferrenho da tirania e do absolutismo, colo-

cando-se contra toda tese que defendia a ideia de um poder inato dos governantes, ou seja,

de pessoas que já nascem com o poder (por exemplo, a monarquia). Para resolver os litígios

gerados por interesses rivais, deve haver um poder mediador ao qual todos devam estar sub-

metidos. O contrato social representa a aceitação e validação do poder mediador do Estado

em sua capacidade de garantir a liberdade e o direito à propriedade baseada nas leis.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) tinha uma visão distinta de seus antecessores.

Para ele, a propriedade surge com o trabalho, mas é exatamente a propriedade que gera a

desigualdade entre os homens. Enquanto para Locke a propriedade é um direito natural,

para Rousseau, assim como Hobbes, ela é um direito civil. A principal preocupação de Rou-

sseau era assegurar a liberdade através do contrato social.

 

PRA PENSAR:

No pensamento político, MaquiavelemO Príncipe éum divisor de

águas, e escrevendo uma obra-prima, legitimadora do Absolutis-

mo, desvinculada de qualquer marco de transcendência ou de éti-

ca cristã. Assim o farão os escritores de várias tendências, como

Hobbes, Spinoza, Montesquieu, Rousseau e outros. Maquiavel

não legitima o poder do príncipe por seu “direito divino”, mas por

um pragmatismo, por sua eficácia. Rousseau não advoga mais,

como o fizera Milton, um pacto entre eleitos, mas um contrato entre os homens. O poder

não era emanado de Deus através do povo, mas se apresentava no próprio povo. Deus

– se existe – não era tido como uma providência histórica, mas tendo criado os homens,

se recolhera aos céus, deixando-os completamente livres. (Cavalcanti, 1994, p. 143-144)

Nota histórica: o autor era cientista político e foi bispo da Igreja Anglicana no Brasil e um

dos precursores da reflexão sobre cristianismo e política entre os cristãos evangélicos.

É importante frisar que com os autores mencionados acima ainda não temos ciência

política e sim a filosofia política. Embora a última parta da observação da realidade, opera

PARA PENSAR

94

ainda segundo o método filosófico e um tipo muito específico de sensibilidade literária

de cada um dos pensadores citados. A Ciência Política, como a conhecemos hoje, se

consolidou como uma disciplina autônoma e empírica no século XIX, com o surgimento das

ciências sociais, que buscavam aplicar o método científico ao estudo da realidade social. A

Ciência Política se diferenciou da filosofia política por se basear em dados, fatos, evidências

e teorias que pudessem ser verificados e testados, e não apenas em argumentos racionais

e especulativos. A Ciência Política também se abriu para o diálogo e a interdisciplinaridade

com outras ciências sociais, como a sociologia, a antropologia, a economia, a história,

a psicologia, etc. Alguns dos fundadores da Ciência Política moderna foram Max Weber,

Émile Durkheim, Alexis de Tocqueville, Herbert Spencer, entre outros.

A Ciência Política explica o poder de diferentes maneiras, dependendo da abordagem

teórica e metodológica que adota. O poder pode ser definido como a capacidade de influen-

ciar, controlar ou determinar o comportamento de outros indivíduos ou grupos, de acordo

com os próprios interesses, valores ou objetivos. O poder pode ser exercido de forma legí-

tima ou ilegítima, explícita ou implícita, coercitiva ou consensual, direta ou indireta, etc. O

poder pode ser analisado em diferentes níveis, como o individual, o grupal, o institucional,

o nacional, o internacional, etc. O poder pode ser medido por diferentes critérios, como a

autoridade, a riqueza, o prestígio, o conhecimento, a informação, a violência, etc.

Algumas das principais teorias que a ciência política usa para explicar o poder são:

dade do Estado, que é a principal instituição política das sociedades modernas, que

detém o monopólio da violência legítima e da ordem jurídica.

os mecanismos e os desafios da democracia, que é a forma de governo em que o

poder é exercido pelo povo, por meio de representantes eleitos ou de participação

direta.

lações e os efeitos das elites, que são os grupos minoritários que ocupam as po-

sições de comando e de influência nas principais esferas da sociedade, como a

política, a economia, a cultura, etc.

as demandas e os resultados dos movimentos sociais, que são as ações coletivas

de grupos ou classes sociais que buscam defender ou transformar alguma situação

de interesse comum, como os direitos humanos, o meio ambiente, a educação, etc.

A teoria das relações internacionais, que estuda os atores, as estruturas, os pro-

cessos, as políticas e os conflitos que envolvem o sistema internacional, que é o

conjunto das relações entre os Estados e outros agentes, como as organizações

internacionais, as empresas transnacionais, os grupos terroristas, etc.

De acordo com Anthony Giddens (2005) a Ciência Política trabalha com distinções mui-

to claras entre os termos governo, política, poder e autoridade. O governo refere-se à repre-

sentação regular de políticas, decisões e assuntos de Estado por parte dos funcionários que

compõem a administração pública. A política trata dos meios pelos quais o poder é utiliza-

do para influenciar o alcance e o conteúdo das atividades governamentais. Frequentemente

o campo da política vai muito além dos limites das instituições que representam o Estado.

O poder consiste na habilidade de indivíduos e grupos em fazerem valer suas preocupações

e interesses, mesmo quando há resistência por parte de outros grupos ou pessoas. A auto-

ridade entra em cena com o exercício legítimo do poder, a saber, que é quando aqueles que

se submetem à autoridade de um governo reconhecem o direito que ele tem ao exercício

do poder. Embora distintos esses termos andarão sempre juntos quando a Ciência Política

estiver analisando o modo como as pessoas e grupos se organizam na sociedade.

As distinções apresentadas acima entre governo, política, poder e autoridade encon-

tram sua gênese naquilo que Max Weber (1997) chamou de formas legítimas de domina-

ção, ele as define do seguinte modo:

padrões de normas estatutárias e no direito daqueles elevados à autoridade para

emitir comandos. Neste tipo de dominação, o poder é exercido por meio de leis e

regulamentos estabelecidos e aceitos pela sociedade. O modelo típico é a burocra-

cia estatal.

de das tradições que governam o comportamento e na legitimidade daqueles que

exercem a autoridade sob tais tradições. Aqui, o poder é exercido por meio de cos-

tumes e práticas culturais enraizadas. Governos tribais e monarquias exemplificam

esse modo de dominação.

ração carismática por um indivíduo. O poder é exercido por meio do carisma pessoal

e da capacidade de influenciar e inspirar as pessoas. Em geral a dominação carismá-

tica tem um caráter desafiador da autoridade estabelecida e surge em momentos de

reforma ou revolução.

Segundo a visão weberiana a dominação burocrática é predominante na modernidade, todavia, trata-se de um tipo ideal pois no exercício do poder no âmbito das instituições as

três formas de dominação muitas vezes se misturam umas às outras.

 

UA2 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 2

2. Poder e política nas sociedades modernas

OBJETIVOS

1 Discutir o poder no contexto das democracias modernas

2 Compreender as crises e desafios das democracias na atualidade

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Nesta unidade de aprendizagem entramos para valer nas questões debatidas em nos-

sos dias. As democracias pelo mundo afora tem passado por testes severos e não é dife-

rente no Brasil. Vamos examinar com cuidado os desafios da atualidade em torno do tema.

Ao final, lançaremos um olhar socioteológico sobre a democracia.

Bons estudos.

A democracia como modo moderno de fazer política e dividir o poder

Ao longo da história os povos organizaram uma variedade de sistemas políticos e não

se pode dizer que o sistema democrático seja o destino da humanidade. Entretanto, apesar

dos solavancos em algumas nações democráticas na última década, as sociedades com

os melhores índices de desenvolvimento humano têm modernas caminhado na direção

de sistemas democráticos, muitas vezes conciliando o sistema democrático com outras

tradições políticas. Mas antes de mergulharmos nos assuntos próprios da democracia, ve-

jamos a democracia ao lado de outros sistemas políticos que se desenvolveram ao longo

da história.

Monarquia: forma de governo na qual um único indivíduo, geralmente chamado de mo-

narca (rei, rainha, imperador ou imperatriz), reina como chefe de Estado. O poder do monar-

ca dentro das monarquias, geralmente, é vitalício e hereditário, ou seja, o poder do monarca

estende-se durante toda a sua vida, sendo transmitido apenas com sua morte ou com sua

renúncia à posição de monarca. Existem dois tipos de monarquia vigentes atualmente: a

monarquia constitucional e a monarquia absoluta.

VOCÊ SABIA?

DOIS TEÓLOGOS QUE FALARAM SOBRE DEMOCRACIA

Reinhold Niebuhr (1892-1971) “A capacidade humana de fazer

justiça torna a democracia possível; porém, a inclinação huma-

na para a injustiça torna a democracia necessária. Uma vez

que o poder irresponsável e não sujeito a nenhum controle é a

maior fonte de injustiça”

C.S. Lewis (1898-1963) “Sou democrata por acreditar na queda do homem… o ser hu-

mano é tão depravado que não é possível confiar a ninguém um poder irrestrito sobre

os demais” (KOYZIS, 2014, p.152)

 

 

Democracia: regime de governo baseado no poder do povo, que atua diretamente ou

indiretamente, através de eleições ou representantes. A democracia tem como princípios

fundamentais: liberdade do indivíduo perante os representantes do poder político, especial-

mente face ao Estado; liberdade de opinião e de expressão da vontade política; multiplicida-

de ideológica; liberdade de imprensa; acesso à informação; igualdade dos direitos e opor-

tunidades favoráveis para que o povo e os partidos se pronunciem sobre todas as decisões

de interesse geral; alternância do poder conforme os interesses dos cidadãos. A demo-

cracia pode ser dividida em democracia representativa: forma de governo em que o povo

elege representantes para que estes possam defender, gerir, estabelecer e executar todos

os interesses da população. A principal base da democracia representativa é o voto direto,

ou seja, o meio pelo qual a população pode apreciar todos os candidatos a representantes

do povo e escolher aqueles que consideram mais aptos para representá-los. Os represen-

tantes eleitos através do voto podem ser vereadores, deputados estaduais, deputados es-

taduais, senadores, governadores e etc. Teoricamente, a função das pessoas que foram

eleitas é representar os direitos e interesses daqueles que os elegeram. A outra divisão da

democracia é chamada de participativa: modelo de exercício de poder no qual a população

participa ativamente na tomada das principais decisões políticas. Inspirada na Grécia anti-

ga este modelo tem sido redescoberto nos últimos anos do século XX, em resposta à crise

de algumas democracias representativas. A ideia da democracia participativa está direcio-

nada à participação e comunicação de todos os diferentes grupos e movimentos sociais

que habitam uma mesma sociedade, com a intenção de terem as suas demandas ouvidas

e que, consequentemente, se desenvolvam ações para atender as necessidades de todos.

Nesse tipo de democracia há uma ênfase maior nas alternativas para consultas à opinião

da população sobre assuntos, principalmente os mais polêmicos e divisivos. Nestes casos são feitos referendos e plebiscitos e realizadas audiências públicas para ouvir os cidadãos.

Autoritarismo: O autoritarismo é um sistema de liderança no qual uma pessoa, ge-

ralmente um líder ou governante, detém poder absoluto e toma decisões sem consultar

ou considerar a opinião dos outros. Nesse sistema, a autoridade do líder é suprema, e as

pessoas têm pouca ou nenhuma participação nas decisões políticas ou sociais. O autori-

tarismo é caracterizado por um poder central, onde o líder é o superior e nada está acima

dele, e pela repressão das liberdades individuais dos cidadãos, a fim de manter a ordem na

sociedade. Se compararmos os estados autoritários com as democracias veremos que a

participação popular é restringida ou severamente reprimida. No autoritarismo as necessi-

dades e interesses do Estado ganham prioridade sobre os cidadãos e não existe nenhum

mecanismo legal de resistência ao governo e nem para deposição do governante em casos

de insatisfação popular. (Giddens, A. 2005, p. 344)

 

Nas democracias o poder é dividido

Nas democracias modernas o poder de governar é estabelecido pela divisão entre os

poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário. Outra característica importante dos governos

democráticos é que o acesso aos dois primeiros – legislativo e executivo – ocorre por meio

de eleições periódicas, promovendo por meio da competição rodízio permanente entre os

políticos que ocupam tais posições. Na busca por equilíbrio no exercício do poder, fica

acertado que aqueles que fazem as leis (legislativo) não executam ou administram os bens

públicos, tarefa que cabe ao poder executivo, e, ao lado de ambos, o judiciário opera de

modo técnico para julgar com base na Constituição que rege o país e outros códigos feitos

em conformidade com ela – tanto a edição de novas leis quanto os atos administrativos do

poder executivo.

 

VOCÊ SABIA?

A LONGA BATALHA DAS MULHERES PELO DIREITO AO VOTO

NO BRASIL

A luta pelo sufrágio feminino no Brasil tem uma história rica e

complexa. No final do século XIX, a Lei Saraiva foi promulgada

em 1880, trazendo grandes modificações para o sistema elei-

toral do Brasil. Essa lei permitia que todo brasileiro com título

científico pudesse votar e, aproveitando-se disso, a cientista

Isabel de Souza Mattos exigiu na Justiça o direito ao voto.

No começo do século XX, a resistência em conceder esse direito às mulheres era

muito grande. O crescimento da causa do voto feminino resultou no surgimento de

VOCÊ SABIA

100

CURIOSIDADE

associações, instituições e até partidos em defesa dessa pauta. Um exemplo foi o sur-

gimento do Partido Republicano Feminino, criado em 1910 pela professora Leolinda

de Figueiredo Daltro.

Em 1920, uma das associações mais importantes para a causa foi fundada e, assim,

surgiu a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM). Dois anos depois, essa

associação teve seu nome modificado para Federação Brasileira pelo Progresso Femi-

nino. Essa associação era liderada pela feminista Bertha Lutz, um dos grandes nomes

na luta pela equiparação dos direitos de homens e mulheres no Brasil1.

Finalmente, durante a presidência de Getúlio Vargas, as mulheres tiveram seu direito

ao voto garantido. O voto feminino no Brasil passou a ser permitido oficialmente a

partir do Código Eleitoral de 19321. Somente em 1946 o sufrágio passou a ser obriga-

tório também para as mulheres. Em 1988, a Constituição estendeu o direito de votar a

homens e mulheres analfabetos.

Hoje, as mulheres representam mais da metade dos brasileiros aptos a votar e têm o

poder de definir uma eleição. Em 2015, foi instituída a Lei 13.086, em que foi decreta-

do o Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil, celebrado todo dia 24 de fevereiro

 

 

Sob o ponto de vista do interesse da sociedade, tão importante quanto os chamados

três poderes é a liberdade de seus cidadãos para se organizarem buscando influenciar di-

reção de políticas públicas que julguem importantes e para fiscalizar os atos praticados

por seus representantes. A liberdade de imprensa é essencial para o bom funcionamento

das democracias modernas. Profissionais qualificados e treinados na arte da apuração e

comunicação das informações são imprescindíveis para a saúde de regimes democráticos.

A democracia moderna possui o sistema de freios e contrapesos, meios para impedir

que o Estado, representado por qualquer um dos seus poderes, se transforme em um gover-

no ditatorial que aja em benefício dos governantes de plantão e em prejuízo para os cidadãos.

 

CURIOSIDADE

Embora a desconfiança dos governados em relação aos go

vernantes seja uma característica das democracias modernas,

esse “pé atrás” já estava presente no Antigo Testamento na Pa

rábola do Espinheiro. Veja

Avisado disto, Jotão foi, e se pôs no cimo do monte Gerizim, e

em alta voz clamou, e disse-lhes: Ouvi-me, cidadãos de Siquém,

100 101

e Deus vos ouvirá a vós outros. 8 Foram, certa vez, as árvores ungir para si um rei e

disseram à oliveira: Reina sobre nós. 9 Porém a oliveira lhes respondeu: Deixaria eu o

meu óleo, que Deus e os homens em mim prezam, e iria pairar sobre as árvores? 10 En

tão, disseram as árvores à figueira: Vem tu e reina sobre nós. 11 Porém a figueira lhes

respondeu: Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto e iria pairar sobre as árvores?

12 Então, disseram as árvores à videira: Vem tu e reina sobre nós. 13 Porém a videira

lhes respondeu: Deixaria eu o meu vinho, que agrada a Deus e aos homens, e iria pairar

sobre as árvores? 14 Então, todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu e reina

sobre nós. 15 Respondeu o espinheiro às árvores: Se, deveras, me ungis rei sobre vós,

vinde e refugiai-vos debaixo de minha sombra; mas, se não, saia do espinheiro fogo que

consuma os cedros do Líbano. (Almeida Revista e Atualizada) Juízes 9:7-15

A política pode se tornar um terreno fértil para pessoas que nada tem a oferecer para a

coletividade. Buscam o poder para o enriquecimento e para obtenção de salvo-conduto

para a prática de crimes de toda sorte. Entretanto, Jotão deixa claro que isso só é pos

sível porque os bons cidadãos, representados pela oliveira, figueira e videira, descuidam

dos interesses coletivos julgando que é suficiente cumprir suas obrigações individuais.

Em resumo, a vida em sociedade pressupõe a organização do Estado/Governo, en

tretanto, a vigilância e os controles devem ser permanentes sobre aqueles exercem

o poder em nome dos cidadãos. Um recurso que governantes muitas vezes lançam

mão para obtenção de legitimidade e, mais do isso, de apoio irrestrito dos cidadãos é

o uso do nome de Deus.

 

Os paradoxos do advento da internet às redes sociais: fortalecimento e enfraqueci-

mento das democracias

O paradoxo do advento da internet é: por um lado, a internet tem fortalecido a partici-

pação democrática, mas por outro lado, o surgimento de redes sociais e a disseminação de

fake news têm ameaçado a integridade das democracias.

A internet tem o potencial de ampliar a participação social em sistemas democráticos,

permitindo mais acesso à informação e maior participação dos cidadãos. A internet pode

fortalecer comunidades, chamar a atenção para os problemas reais enfrentados por elas

e favorecer mecanismos de governança pública como transparência e responsabilidade.

No entanto, a internet é um meio e não um fim em si mesma. As ferramentas produzidas a

partir da internet só terão efeito democrático se o contexto social e político fora do mundo

virtual oferecer condições para uma participação social efetiva e plena.

Por outro lado, as redes sociais e a disseminação de fake news têm se mostrado uma

ameaça à integridade das democracias. As fake news podem influenciar o resultado de

votações, especialmente em disputas muito concorridas. Além disso, a disseminação de

desinformação pode minar a confiança nas instituições democráticas, como a imprensa,

o governo e o sistema judicial. A proliferação incontrolável de fake news tem provocado

impactos negativos nas relações sociais e políticas. Informações falsas são jogadas no

mundo virtual para abalar instituições, agentes públicos e polarizar ideologias.

Portanto, enquanto a internet tem o potencial de fortalecer a democracia, também

apresenta desafios significativos que precisam ser abordados para garantir a integridade

das democracias modernas. A imprensa (jornais e redes de televisão) foi apontada como

“quarto poder” nas democracias. Usando essa figura seria o caso de se perguntar se a re-

des sociais se tornaram “o poder fora de controle”?

 

VOCÊ SABIA?

COLETIVO BEREIA

No meio cristão pululam fake news. Isso desafio um grupo de

cristãos à criação de uma agência de checagem de notícias.

Trata-se do coletivo Bereia. Eles se apresentam da seguinte for-

ma: (https://coletivobereia.com.br/)

Bereia – Informação e Checagem de Notícias. Separar o Joio.

Guardar o trigo.

Uma iniciativa de organizações, profissionais, pesquisadores e estudantes de comuni-

cação dedicados à compreensão dos processos informacionais nos espaços digitais

religiosos.

Os de Bereia dedicaram-se a avaliar se tudo correspondia à verdade. – Atos 17:11

Conhecer e comunicar a verdade é urgente em um tempo marcado pela chamada

“pós-verdade” (prática de formação da opinião pública nos quais os fatos objetivos

têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais) e pela ampla

circulação de fake news (notícias falsas), de desinformação e de informação manipu-

lada, em especial com objetivos políticos. Nesse sentido, a verdade liberta pessoas e

grupos das amarras de conteúdos mentirosos, caluniosos e promotores de intolerân-

cia em todas as suas formas.

O nome Bereia tem um caráter simbólico e faz parte de uma narrativa bíblica do Novo

Testamento. Conforme o livro de Atos dos Apóstolos 17.10-15, a mensagem de Paulo

e seus companheiros foi bem recebida na sinagoga judaica de Bereia, localizada na Grécia, na região da Macedônia. O texto registra um elogio aos bereanos, homens e

mulheres, que mantiveram não apenas uma abertura em ouvir as Escrituras, mas de

examiná-la.

“Os judeus que moravam em Bereia tinham a mente mais aberta que os de Tessalô-

nica e ouviram a mensagem de Paulo com grande interesse. Todos os dias, exami-

navam as Escrituras para ver se Paulo e Silas ensinavam a verdade. Como resultado,

muitos judeus creram, assim como vários gregos de alta posição, tanto homens como

mulheres.”

Nesse espírito e a partir da iniciativa da organização Paz e Esperança Brasil, um grupo

de jornalistas se reuniu e criou o Coletivo Bereia, responsável por este site (Bereia –

Informação e Checagem de Notícias) e pelas contas associadas nas redes sociais.

Importantes parcerias institucionais foram estabelecidas no processo de construção

dessa proposta.

Objetivo

Checar fatos publicados diariamente em mídias religiosas e em mídias sociais brasi-

leiras que abordem conteúdos sobre religiões e suas lideranças no Brasil e no exterior.

Bereia oferecerá pluralidade de pontos de vista e transparência, com base em sua

política editorial, para que o/a leitor/a tenha condições de avaliar se a informação está

correta e contextualizada com a realidade dos fatos. Não serão checadas opiniões ou

material analítico, apenas material informativo (notícias).

Metodologia de Checagem

Diariamente, a equipe do Bereia acompanha sites e portais (agências) de notícias gos-

pel. Acompanha também pronunciamentos e declarações de políticos e autoridades

cristãs de expressão nacional (líderes da Bancada Religiosa e Ministros de Estado)

veiculados pelas mídias noticiosas, pelas mídias sociais destas personagens e/ou

expostos no Parlamento. Será verificado se os conteúdos veiculados são informativos

(verdadeiros) ou desinformativos (imprecisos, enganosos, inconclusivos e falsos).

Para isso, adotamos um protocolo com cinco passos de checagem:

  1. Identificação de matérias e pronunciamentos ou declarações veiculados em mí-

dias e expostos no Parlamento que, pelas características do título e da chamada, de-

mandam verificação (afirmações absolutas, ufanismo, casos inusitados) por repre-

sentarem relevância (interesse público, ou que afetem o maior número de pessoas

possível) relacionada à presença de grupos religiosos no espaço público e/ou tenham

tido destaque nas mídias noticiosas.

  1. Pesquisa sobre a fonte original (quando existir).
  2. Pesquisa sobre o que foi publicado sobre o assunto/tema.
  3. Pesquisa em fontes oficiais e alternativas (incluindo pessoas, grupos, institui-

ções/organizações/associações/movimentos sociais citados) para confirmação,

identificação de lacunas e de distorções ou para refutação do conteúdo. Tudo será

relatado no texto a ser produzido pela equipe do Bereia com a devida indicação do

acesso dos leitores/as a estas fontes.

  1. Contextualização do conteúdo checado, com busca de referencial bibliográfico e

contato com especialistas, quando for o caso.

  1. Classificação do conteúdo como Verdadeiro, Impreciso, Enganoso, Inconclusivo

ou Falso:

VERDADEIRO

A notícia, o pronunciamento ou a declaração são corretas e coerentes com os fatos

apurados.

IMPRECISO

A notícia, o pronunciamento ou a declaração oferecem conteúdos verdadeiros, mas

não oferecem dados comprováveis, não consideram diferentes perspectivas e não

contextualizam a situação em questão. Isto pode levar o público a julgamentos er-

rôneos sobre determinados casos, pessoas, grupos, instituições/organizações/asso-

ciações/movimentos sociais. É desinformação e necessita de complementações e

contextualização.

ENGANOSO

A notícia, o pronunciamento ou a declaração oferecem conteúdos de substância

verdadeira, mas a apresentação deles é desenvolvida para confundir. Os títulos e

imagens que não correspondem ao que é exposto na íntegra, teores distorcidos que

instigam julgamentos negativos de uma pessoa, de um grupo ou de instituição/or-

ganização/associação/movimentos sociais, ou invocam sensacionalismo para con-

quista de audiência. Representa desinformação e necessita de correções, substân-

cia e contextualização.

INCONCLUSIVO

A notícia, o pronunciamento ou a declaração oferecem conteúdos de substância

informativa mas não apresentam todos os elementos necessários para serem clas-sificados como verdadeiros. Além disso, trazem evidências na redação para serem

avaliados como desinformação. São matérias que demandam cuidado, atenção e

acompanhamento em torno da conclusão.

FALSO

A notícia, o pronunciamento ou a declaração não oferecem informações, não têm

substância factual, caracterizando-se como boato, conteúdo fabricado para parecer

informação. Os dados disponíveis sobre a situação em questão contradizem objetiva-

mente o que é apresentado. É desinformação.

Como morrem as democracias

Esse é o título do instigante livro escrito pelos cientistas políticos Steven Levitsky e Da-

niel Ziblatt. O livro foi publicado em 2018 e analisa os ataques aos regimes democráticos

em diversos países, durante diferentes períodos históricos. A tese central do livro é que a

morte das democracias pós-Guerra Fria ocorre predominantemente pelas mãos de líderes

eleitos e não pela via dos golpes de Estado clássicos, como o Golpe de 1964 no Brasil. Os

autores argumentam que o retrocesso democrático hoje começa nas urnas, com líderes

descritos como outsiders ganhando relevância caso encontrem algum tipo de apoio em

partidos políticos do establishment. Em vez de defensores da democracia, tais partidos

políticos acabam contribuindo para a legitimação de um candidato a ditador.

Para prevenir a ascensão de “demagogos”, os autores propõem uma lista de verifica-

ção do comportamento autoritário, que inclui: rejeição das regras democráticas do jogo,

negação da legitimidade dos oponentes políticos, tolerância ou encorajamento à violência,

propensão a restringir liberdades civis dos oponentes, inclusive a mídia. Seguindo esses

critérios não é difícil perceber que tanto Donald Trump, nos Estados Unidos, quanto Jair

Bolsonaro, no Brasil, seguiram rigorosamente todos esses passos. O ataque ao Capitólio

dos Estados Unidos ocorreu em 6 de janeiro de 2021, e o ataque ao Congresso Nacional e

ao Supremo Tribunal Federal, em 8 de janeiro de 2022, foram embalados na cantilena apon-

tada acima.

Importante salientar ainda que, segundo os autores, os retrocessos democráticos se

dão como erosões das regras que regem os sistemas políticos, especialmente das normas

não escritas (grades de proteção) que permitem a convivência de partidos adversários. A

sustentação dos regimes democráticos, inclusive nos EUA, teria em normas sedimentadas

pelos costumes da luta política (regras não-escritas) um poderoso reforçamento das cons-

tituições (regras escritas).

 

Os autores também apontam presidentes de viés totalitários como Chaves na Venezue-

la, Erdogan na Turquia e Orbán na Hungria que começaram a governar por meio de eleição

e, com discursos de força, guinaram rumo ao autoritarismo, abandonando a ação democrá-

tica para governar de forma autoritária.

 

UA3 –

UNIDADE DE APRENCIZAGEM 3

3. A secularização a partir da separação entre poder estatal e religião

OBJETIVOS

1 Revisitar o tema da secularização na perspectiva da separação entre

Estado e religião

2 Compreender a separação entre poder civil e poder religioso

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Novamente voltamos ao tema da secularização. Na primeira unidade de aprendizagem

do módulo 2 foi apresentada a secularização foi examinada como perspectiva teórica que

trata do lugar da religião na modernidade. Autores que acreditam que a religião iria declinar

e autores, como Peter Berger, que fizeram ajustes à essa visão chegando à conclusão que a

modernidade leva ao pluralismo de discursos religiosos e seculares e não necessariamente

ao declínio da religião. Agora retomamos o tema da secularização com uma perspectiva

um pouco diferente ao tratar da relação do Estado com a religiões.

A solução moderna para as guerras religiosas

Será no final do século XVII, após o longo período em que a Europa esteve mergulha-

da nas Guerras de Religião, que emergirá a defesa mais contundente da separação entre

Estado e religião. John Locke é o responsável por essa formulação em suas Cartas acerca

da Tolerância. No total foram publicadas quatro cartas, sendo que a última Locke não teve

tempo de ver publicada, pois veio a falecer em 1704. A sua primeira Carta acerca da Tolerân-

cia foi publicada na Holanda em 1689. Nela John Locke expõe seus argumentos em favor

da tolerância entre as diferentes religiões e da separação entre o governo civil e a religião.

Ele sustenta a tese de que não é a diversidade de crenças e opiniões a causa das Guerras

de Religião no mundo cristão, mas a ausência de tolerância. Locke formula filosoficamente,

com clareza ímpar, o princípio de uma religião interior. Seu propósito é pôr fim a qualquer

tipo de coerção em matéria de religião e permitir o livre trânsito religioso, para isto se valerá

amplamente de figuras. Por exemplo, afirma que se Deus quisesse impor pelas armas a fé

aos infiéis não se valeria de exércitos humanos, mas de legiões celestiais. Ainda na mesma

linha de raciocínio, escreve que alguém pode até ser curado por remédio no qual não confia, mas não se pode ser salvo por religião na qual não se confia. Por fim, ele arremata: “Nem o

próprio Deus salvará os homens contra vontade deles” (2005, p. 140). Segundo Locke o “O

cuidado da alma de cada homem pertence a ele próprio” (Idem, p.140).

CURIOSIDADE

ESTADO E IGREJA NA CONFISSÃO DE FÉ DE WESTMINSTER

A Confissão de Fé de Westminster já colocara, em 1643, a ques-

tão da separação entre Estado e Igreja nos seguintes termos: “Os

magistrados civis não podem tomar sobre si a administração

da palavra e dos sacramentos ou o poder das chaves do Reino

do Céu, nem de modo algum intervir em matéria de fé; contudo,

como pais solícitos, devem proteger a Igreja do nosso comum

Senhor, sem dar preferência a qualquer denominação cristã sobre as outras, para que

todos os eclesiásticos, sem distinção, gozem plena, livre e indisputada liberdade de

cumprir todas as partes das suas sagradas funções, sem violência ou perigo. Como

Jesus Cristo constituiu em sua Igreja um governo regular e uma disciplina, nenhuma lei

de qualquer Estado deve proibir, impedir ou embaraçar o seu devido exercício entre os

membros voluntários de qualquer denominação cristã, segundo a profissão e crença de

cada uma. E é dever dos magistrados civis proteger a pessoa e o bom nome de cada um

dos seus jurisdicionados, de modo que a ninguém seja permitido, sob pretexto de reli-

gião ou de incredulidade, ofender, perseguir, maltratar ou injuriar qualquer outra pessoa;

e bem assim providenciar para que todas as assembleias religiosas e eclesiásticas pos-

sam reunir-se sem ser perturbadas ou molestadas.”(Cap. XXIII – Do Magistrado Civil)

Se para o catolicismo romano o critério para discernir a verdadeira Igreja está na tra-

dição, para Calvino, está na correta pregação da Palavra de Deus e na administração dos

Sacramentos, para Locke, o critério para julgar se uma Igreja é verdadeira é a tolerância:

Uma vez que você pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância

entre os cristãos de diferentes ramos, respondo-lhe, com brevidade,

que a considero como a marca característica de uma verdadeira igre-

  1. Por mais que algumas pessoas alardeiem da antiguidade de luga-

res e de nomes, ou da pompa de seu ritual; outras, da reforma de sua

disciplina, e todas da ortodoxia de sua fé, pois toda a gente é ortodoxa

para si mesma, tais coisas, e outras desta mesma natureza, são muito

mais as marcas dos homens lutando por poder e domínio do que as

marcas da igreja de Cristo. (2005, p. 126)

Para Locke, a religião não pode ser imposta porque seus valores dizem respeito à cons-

ciência interior de cada indivíduo. De outro lado, ele critica a fórmula Cuius regio, eius religio

(Tal a religião do príncipe, tal a religião do país), introduzida pela Paz de Augsburgo em 1555,

pois essa faria a salvação de um homem depender de seu local de nascimento. A tolerância

entre as diferentes confissões somente será possível, na visão de Locke, com a distinção

clara entre as funções do governo civil e da religião. O governo civil diz respeito à preserva-

ção da comunidade civil e seus bens. Os bens civis da comunidade são a vida, a liberdade, a

saúde física, a libertação da dor, posse de bens externos tais como: terras, dinheiro, imóveis

etc. A jurisdição do governo civil diz respeito apenas aos bens civis da comunidade e não se

aplica em matéria de religião. São as seguintes razões pelas quais a jurisdição do governo

civil sobre a salvação dos homens é inadequada: a) Não cabe ao magistrado civil o cuida-

do das almas, porque mesmo se alguém quisesse não poderia jamais crer por imposição

de outrem. Uma religião para ser verdadeira tem necessidade de profunda convicção; b)

Porque o poder do magistrado consiste totalmente em coerção. Já a religião verdadeira e

salvadora consiste em persuasão interior do espírito, sem isto não tem qualquer valor para

Deus. Uma coisa é persuadir, outra ordenar; uma coisa é insistir por meio de argumentos,

outra, por meio de decretos. Logo, o poder civil não deve prescrever artigos de fé nem a

forma de se cultuar a Deus; c) Ainda que o governo tivesse o poder de converter o espírito

dos homens, isto não garantiria a salvação, uma vez que os príncipes professam diferentes

religiões. Locke, com essa separação entre comunidade civil e comunidade religiosa, pro-

duz um desencaixe entre território e religião, entre comunidade e religião.

O impacto do princípio da tolerância sobre as pretensões da igreja de apresentar-se

como portadora de uma verdade universal serão enormes. A tolerância, por conduzir a uma

atitude de neutralidade em relação ao conteúdo propriamente espiritual das mensagens

religiosas, desemboca num relativismo frente a qualquer pretensão de verdade absoluta

por parte das igrejas. De outro lado, como bem salientou Troeltsch (1958, p.52), “três igrejas

infalíveis que se excluem e condenam reciprocamente desacreditam a Igreja em geral, pois

não pode haver várias”. Recorde que na unidade de aprendizagem 1 do segundo módulo fo-

ram analisados os temas do pluralismo, fundamentalismo e relativismo. Se for necessário,

volte a esse conteúdo para melhor entendimento.

Tendo apresentado seus argumentos em favor da tolerância em matéria de religião

e seus argumentos pelo afastamento do governo civil das questões de natureza religiosa

John Locke apresenta sua definição de igreja:

Parece-me que uma igreja é uma livre sociedade de homens, reuni-

dos entre si, por iniciativa própria, para o culto público a Deus, de tal

modo que acreditam que será aceitável pela Divindade para a salva-

ção de suas almas. Considero-a como uma sociedade livre e voluntá-

110

ria. Ninguém nasceu membro de uma igreja qualquer; caso contrário,

a religião de um homem, juntamente com sua propriedade, ser-lhe-ia

transmitida pela lei de herança de seu pai e de seus antepassados, e

deveria sua fé à sua ascendência: não se pode imaginar coisa mais

absurda. O assunto explica-se desta maneira. Ninguém está subordi-

nado por natureza a nenhuma igreja ou designado a qualquer seita,

mas une-se voluntariamente à sociedade na qual acredita ter encon-

trado a verdadeira religião e a forma de culto aceitável por Deus. A

esperança de salvação que lá encontra, como se fosse a única causa

de seu ingresso em certa igreja, pode igualmente ser a única razão

para que lá permaneça. Se mais tarde descobre alguma coisa errônea

na doutrina ou incongruente no culto, deve sempre ter a liberdade de

sair como a teve para entrar, pois laço algum é indissolúvel, exceto

os associados a certa expectativa de vida eterna. A igreja é, portanto,

sociedade de membros que se unem voluntariamente para esse fim.

(2005, p.132)

Destacamos da citação os elementos que continuam sendo constitutivos da concepção

moderna de religião: uma igreja (religião) é uma sociedade voluntária, ninguém nasce mem-

bro de uma religião; a união a qualquer sociedade religiosa é questão de consciência pessoal,

nenhum laço é indissolúvel. John Locke afirmará que nada impede que alguém acredite na

sucessão apostólica, desde que deixe os outros livres para se unirem a qualquer sociedade

religiosa na qual julguem encontrar o que precisam para a salvação da alma (Locke, 2005, p.

122). Peter Berger formulou, nos termos de Locke, uma definição da manifestação da reli-

gião numa situação tipicamente moderna “como um complexo legitimante voluntariamente

adotado por uma clientela não coagida” (1985, p. 145). Ressalta-se que John Locke ofereceu

os fundamentos teóricos para a fundamentação jurídica que ganharia corpo nas diferentes

constituições dos países modernos tratando de separar religião e Estado.

Olhando a separação entre Estado e religião no Brasil

A chegada nas Américas de espanhóis e portugueses no século XVI é mais um dos

capítulos da complexa relação entre Estado e Igreja. O Brasil foi colonizado sob a espada

e a cruz e os períodos da Colônia e do Império tiveram a união oficial entre Igreja e Estado.

O Catolicismo Romano foi religião oficial do Brasil até o advento da República. O resultado

foi marcado por prejuízo tanto para a Igreja quanto para o Estado. Nesse período, por con-

cessão de Roma, o chefe da Igreja era o Imperador e o clero, por sua vez, enquadrava-se na

condição de funcionário público. Outras igrejas cristãs estavam proibidas de evangelizar

em território brasileiro. O quadro começou a mudar com a assinatura dos Tratados de Co-

mércio e Navegação e Aliança e Amizade (1810) com a Inglaterra com a chegada das pri-

meiras levas de imigrantes europeus a partir de 1824. A presença de protestantes passou a

ser reconhecida, embora o Estado brasileiro ainda tivesse uma religião oficial.

Foi com o advento da República, em 1889, que o país deixou de ter o catolicismo roma-

no como religião oficial, passando a reconhecer a existência de diferentes religiões em solo

nacional, mencionadas como “religiões acatólicas”. A história da separação entre Igreja e

Estado na República não é tão retilínea, como atesta o período da ditatura Vargas, mas de

modo geral caminhou-se para o que foi consagrado nos parágrafos da Constituição de 1988:

Art. 5

VI – É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegu-

rado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a

proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa

ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de

obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alterna-

tiva, fixada em lei;

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embara-

çar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes rela-

ções de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração

de interesse público;

Laicidade estatal é o nome dado a solução constitucional de garantia de liberdade de

consciência e de culto aos cidadãos. O Estado não possui uma religião oficial e protege o

direito dos cidadãos de professarem determinado credo e de, segundo sua consciência,

não professar nenhuma religião. O texto da Constituição brasileira segue tradição moldada

pela experiência de pluralidade religiosa no Ocidente cristão, inspirada na solução formu-

lada por John Locke. A Reforma Protestante fez surgir diversas igrejas cristãs ao lado da

Igreja Católica Romana. A primeira reação foi vincular a religião à confissão religiosa dos

príncipes de cada região, a fórmula Cuius regio, eius religio. Assim, se um príncipe alemão

era cristão reformado, todos os moradores de sua região seriam reformados. Logo se per-

cebeu, como ironicamente destacou John Locke, que não fazia sentido fazer a salvação

depender do local de nascimento. A solução foi a neutralidade do Estado em matéria de

religião e a admissão e proteção ao direito dos cidadãos de se guiarem em matéria religiosa

de acordo com sua consciência.

Jeitos de burlar a separação entre igreja e Estado: o triste caso da nazificação da Igreja alemã

Neste tópico vamos recuperar um pouco da história do processo de nazificação das igrejas cristãs na Alemanha com o objetivo de mostrar que a mera separação formal entre

Estado e religião não é uma garantia que não ocorram manipulações de parte a parte.

Católicos e protestantes representavam cerca de 95% da população na Alemanha no

período de ascensão do nazismo. Assim, era natural que o poder político procurasse enten-

der-se com as igrejas cristãs e seus líderes. Foi exatamente isso que Hitler fez por meio de

acordos com Roma e por meio de um esforço de unificação das igrejas protestantes (lute-

ranas, reformadas, livres, metodistas e batistas) sob a designação de Igreja do Reich (Igreja

do Império). De início foi bastante cuidadoso, assegurando que seu desejo era proteger as

atividades das igrejas e a própria civilização cristã. Entretanto, na unificação, feriu a liberda-

de de cada uma das confissões ao determinar que as igrejas protestantes, unificadas sob

o Reich, deveriam escolher um bispo nacional. Esse bispo teria poderes doutrinários e ad-

ministrativos nos moldes do modelo episcopal católico. Embora as igrejas votassem para

escolher o seu representante, o escolhido deveria ser aquele indicado pelo Führer, nesse

caso, Ludwig Müller, que era pessoa de sua absoluta confiança. Com isso ele assegurava

que mandaria na igreja por meio de um bispo leal ao nazismo. A candidatura do pastor

Friedrich von Bodelschwing, que era reconhecido e respeitado em toda Alemanha pelos tra-

balhos sociais que realizava na área de assistência aos necessitados, foi apresentada, mas

as pressões governamentais foram tão intensas que ele teve de retirar seu nome. Acabou

sendo eleito o bispo chapa branca.

Um dos primeiros atos para nazificação do protestantismo alemão foi a imposição da

cláusula ariana. Segundo essa imposição, ficavam impedidos de ingressar como pastores

da igreja aqueles que tivessem ascendência judaica. Os pastores de origem judaica que já

estavam no ministério poderiam continuar servindo à igreja. A nova constituição da igreja

foi aprovada em 1933 e marcava o controle pleno de Hitler sobre a igreja, tanto sob o pon-

to de vista teológico quanto sob o ponto de vista político. Adotou-se o lema: “Um Estado,

um povo e uma igreja”. Um recurso que seria utilizado não muito depois pela Gestapo para

prender e calar pastores que se opusessem ao regime nazista era a acusação, verdadeira

ou não, de ascendência judaica.

Reinhard Krause era um dos mais inflamados defensores de versão “puramente” ariana

do cristianismo. Num discurso proferido quase no final do ano de 1933 para uma multidão

de cerca de 20 mil pessoas reunidas em Berlim, Krause sustentou que a igreja protestante

deveria passar por uma nova reforma e dela deveria brotar uma nova Bíblia sem o Antigo

Testamento e suas histórias de judeus, sem os escritos paulinos e sua teologia da expiação

e sem os milagres de Jesus, que segundo ele eram apenas relatos eivados de superstições

e fantasias. Entretanto, Reinhard Krause foi além e atacou a divindade e a ressurreição de

Cristo. Até mesmo para os mais ardorosos apoiadores de Hitler, o discurso dele soou heré-tico, e Ludwig Müller, bispo escolhido pelo Führer, foi chamado a agir repreendendo o dis-

curso de Krause e colocando-o de lado no movimento rumo à nazificação da igreja. O que

Hitler farejou foi nascimento de oposição no seio de sua unificação protestante e tratou de

agir para minimizar os efeitos negativos que isso teria sobre seu projeto totalitário.

A famosa doutrina de Martinho Lutero sobre os dois reinos precisa ser lembrada se

quisermos entender o avanço tão rápido do nazismo sobre o protestantismo. Segundo a

compreensão luterana, o cristão vive em dois reinos, o de Cristo e o de César. Por vezes,

haverá contradição entre esses reinos, entretanto, o cristão deve cumprir suas obrigações

próprias de cada reino sem se esforçar para superar tais contradições. A única ocasião em

que lhe é permitido opor-se ao governo é quando este avança sobre a esfera espiritual, nos

demais casos, cabe ao cristão obedecer a seus governantes, sabendo que cada um deles

prestará contas a Deus.

A “lei da mordaça” foi o passo seguinte na busca de destruição da essência cristã da

igreja alemã. De acordo com essa nova diretriz do bispo Müller, os pastores ficavam proibi-

dos de pregar temas que diziam respeito ao Estado e que pudessem, portanto, suscitar al-

gum tipo de polêmica entre os fiéis. Era a aplicação da censura ao púlpito cristão. O pastor

Martim Niemöller, que havia comandado um submarino na Primeira Guerra e que até então

era um entusiasta do governo nazista, manifestou seu descontentamento com a imposição

da censura. Numa reunião que Hitler fez com os pastores, Niemöller, no aperto de mão de

despedida lhe disse: “Você disse: cuidem da igreja que eu cuido do povo alemão. Porém,

como cristãos e homens do clero, temos responsabilidade para com o povo alemão. Essa

responsabilidade nos foi confiada por Deus, e nem você nem ninguém neste mundo têm o

poder de tirá-la de nós”. Surpreendentemente Hitler não lhe disse nada, mas naquela mes-

ma noite a Gestapo invadiu a casa de Niemöller em busca de provas para incriminá-lo e,

alguns dias depois, uma bomba explodiu no salão de sua igreja.

Ao lado de Martim Niemöller estava Dietrich Bonhoeffer e algumas centenas de pasto-

res. Os golpes de nazificação da igreja continuaram sendo desferidos por aqueles setores

que controlavam a Igreja do Reich. O nazismo foi professado na igreja como nova revela-

ção de Deus para a humanidade, e Hitler era o seu profeta maior. Cruzes foram removidas

das igrejas e a suástica colocada em destaque. Bíblias nos altares foram substituídas por

“Minha luta”, de autoria de Hitler. No seu aniversário de 50 anos, Hitler foi presenteado pela

Igreja do Reich com um decreto que obrigava todos os pastores a prestarem um juramento

de lealdade plena a ele. Assim dizia o juramento: “Juro ser fiel e obediente a Adolf Hitler,

o Führer do povo e do Reich alemão, observarei as leis atentamente e desempenharei as

atividades do meu cargo. Que Deus me ajude”. ( Silveira, 2014, p. 92. Na igreja do Reich, a

adesão foi total, mas o juramento fez estragos na igreja Confessante. O grupo de pastores liderados por Niemöller e Bonhoeffer, depois de debater o assunto, deixou a decisão para

cada pastor. Essa decisão abateu profundamente Bonhoeffer.

Não obstante as investidas do nazismo, Deus preservou sua igreja e muitos joelhos não

se dobraram diante da adoração da suástica. A igreja Confessante escreveu um dos mais

belos testemunhos de resistência da fé cristã no mundo moderno e legou-nos a síntese de

suas razões na “Declaração Teológica de Barmen”. O teólogo Karl Barth foi o seu redator e, à

luz da nazificação da igreja, ganha maior clareza a primeira grande tese da Declaração que

afirma: “Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhecer – além da

Palavra de Deus – ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como

fontes da sua pregação e como revelação divina”.

 

UA4 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 4

4. O debate atual sobre o lugar da religião na esfera pública

OBJETIVOS

1 Discutir o que é a esfera pública e o lugar da religião

2 Distinguir entre esfera pública e poder público

3 Refletir sobre a presença de símbolos religiosos nos prédios públicos

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Estamos vendo ao longo da disciplina de Ciências Sociais que as religiões continuam vivas

e atuantes em todos os Continentes do planeta. Diante disso, sendo as religiões atores sociais

importantes é natural que surja o debate sobre o lugar delas na esfera pública. Faremos uma

breve distinção conceitual dos termos para, em seguida, situar essa discussão no Brasil.

O que é essa tal esfera pública?

Trata-se da arena de debate público em que os assuntos de interesse geral podem ser

discutidos e as opiniões podem ser formadas, o que é necessário para a efetiva participa-

ção democrática e para o processo democrático. Espera-se que processo culmine na for-

mação da opinião pública que, por sua vez, age como uma força oriunda da sociedade civil

em direção aos governos no sentido da transformação em legislação e políticas públicas

da vontade da população.

O debate sobre o lugar da religião na esfera pública tem sido um tópico de grande inte-

resse. A religião, enquanto parte integrante da vida de muitas pessoas, inevitavelmente se

entrelaça com a política e a sociedade. No entanto, a natureza dessa interação é complexa

e com perigos para as próprias religiões.

PARA PENSAR

ESTADO E IGREJA AO LONGO DA HISTÓRIA

Resumindo, o Novo Testamento apresenta o governo como ne-

cessário, até ordenado por Deus, mas não certamente como

um patrocinador ou amigo da fé. No fim das contas, Jesus e

Paulo e a maioria dos doze discípulos morreram como márti-

116

res, e os primeiros cristãos enfrentaram ondes periódicas de perseguição promovidas

por imperadores romanos.

Dois séculos mais tarde, os cristãos viram com gratidão e alívio a conversão do im-

perador Constantino, o qual conferiu status de proteção ao cristianismo, que logo se

tornou a religião oficial do estado. Ao longo do milênio seguinte na Europa, a igreja e

o estado interagiram como um par de dançarinos, ora presos num forte abraço, ora

jogando um ao outro no salão de baile. A propagação global do cristianismo introdu-

ziu novas variações no relacionamento igreja/estado em lugares como a África e as

Américas. (Yancey, P. 2015, p. 234)

É inegável o papel desempenhado pela religião na formação dos valores morais e

éticos fundamentais para o desenvolvimento da cidadania nas sociedades modernas. A

influência da religião nos espaços públicos ajuda, por exemplo, no estabelecimento de

solidariedade e cordialidade na convivência entre as pessoas. O filósofo Jurgen Habermas,

analisando a crise das democracias, reconheceu que democracias liberais pressupõem que

seus cidadãos tenham qualidades que elas não podem proporcionar (Habermas, J. apud.

Yancey, 2015, p.232). O solo para formação das qualidades de cidadania democrática não é

uma exclusividade da religião, mas é inegável a contribuição da religião nessa área.

Entretanto, se a participação da religião no espaço público tomar a direção da hegemo-

nia o resultado poderá ir na direção da intolerância e do preconceito, nas instituições, na fa-

mília, na escola, nas decisões políticas, entre outras, reforçando atitudes fundamentalistas.

Justamente por isso, o debate sobre o lugar da religião na esfera pública é tão importante

em nossos dias, pois somente ele poderá responder como a religião pode contribuir para a

democracia e a justiça social e evitar os efeitos negativos do tratamento dos temas públi-

cos a partir da visão de mundo religiosa.

O debate sobre o lugar da religião na esfera pública parece ter chegado ao seguinte

ponto: a religião é importante demais para fazer de conta que ela não existe, entretanto,

por outro lado, as perspectivas religiosas são múltiplas e muitas vezes discordantes entre

si e, além disso, é preciso levar em conta aquelas pessoas que não são religiosas. Como

é possível colocar pessoas com perspectivas tão diferentes ao redor de uma mesa para

conversar sobre o bem comum? Como fazer isso? O teólogo Miroslav Volf, mencionado no

módulo anterior, nos ajuda. Assim ele escreve:

Sugeri que cada pessoa deveria falar na arena pública tendo sua própria

voz religiosa. Mas o que significa ter voz própria quando se fala? […]

Falar na voz da própria religião é falar a partir do centro da fé pessoal.

116 117

Falar numa voz cristã é falar com base nestas duas convicções funda-

mentais: que Deus ama todo mundo, incluindo os transgressores, e que

a identidade religiosa está circunscrita por fronteiras permeáveis. Qual-

quer outra coisa que se diga sobre qualquer tópico deve ser dito levando

em conta essas convicções. Quando isso acontece a voz que fala será

propriamente cristã, mas poderia conter, mesmo assim, os ecos de mui-

tas outras vozes, e muitas outras vozes repercutiram com ela. É óbvio

que, às vezes, a a voz não encontrará nenhum eco, apenas contestação.

Esse é o material de que são feitas as boas discussões, tanto em conta-

tos pessoais como na esfera pública. (Volf, 2018, p. 159-160)

Reflexões como acima abrem caminho para inserção mais madura das religiões no

debate na esfera pública. De um lado pessoas religiosas têm o direito de falar sobre os

temas públicos a partir de suas convicções de fé e a separação entre Estado e religião não

significa um “cala-boca” para argumentos que nasçam no campo religioso. Entretanto, a

maturidade nesse debate também exige da religião o respeito à pluralidade de atores que

participam do debate público.

Diferença entre esfera pública e poder público

Já vimos o que é a esfera pública e o lugar das vozes religiosas nessa esfera. Vejamos

agora o que é o poder público. Trata-se do conjunto dos órgãos com autoridade para realizar

os trabalhos do Estado, constituído de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. A

noção de poder público abarca todos os poderes que são próprios do Estado. O Estado exerce

o poder legislativo (cria e modifica leis), o poder judicial (aplica essas normas) e o poder execu-

tivo (desenvolve políticas de governo) através de diversas instituições. Na esfera pública cada

grupo faz ouvir sua voz, seu ponto de vista e seus interesses, porém, o poder público representa

a todos. Um equívoco comum no debate atual sobre a separação entre religião e Estado é julgar

que porque a maioria da população é cristã o Estado deva sê-lo também. Na esfera pública o

Poder público deve ouvir a todos, sem distinção, porém enquanto órgão estatal ele não deve

impor ponto de vista ou representar simbolicamente nenhuma religião.

Propomos abaixo uma leitura que problematiza o tema da laicidade nos contornos que

vem assumindo no Brasil nas últimas décadas. Todavia, o sociólogo José de Souza Martins

retoma pontos importantes e caros aos protestantes na discussão da separação entre reli-

gião e Estado no Brasil.

 

BÊ-Á-BÍBLIA

autor:JOSÉ DE SOUZA MARTINS –

Fonte: O ESTADO DE S. PAULO, 26 Julho 2014

A Câmara Municipal de Nova Odessa (SP) aprovou projeto de lei, de vereador

evangélico, que obriga os alunos das escolas municipais a lerem pelo menos um

versículo da Bíblia no início da aula, todos os dias. A lei foi vetada pelo prefeito,

mas o veto pode cair. A proposta abusiva expressa a crescente intolerância

religiosa no País e as armadilhas usadas para fazer as instituições públicas e do

Estado cúmplices do proselitismo religioso. A lei é inconstitucional. Viola a

liberdade de consciência e o direito dos pais educarem os

filhos na própria crença.

Na passagem do regime de religião compulsória para o de livre opção religiosa,

em 1889, ocorreram ataques ao que fora a religião oficial do Império, quando

ficou claro que as religiões se equivaliam e nenhuma delas tinha privilégios em

relação às outras. O caso de Nova Odessa remete ao debate que se travou nos

jornais e nos tribunais sobre a chamada questão do Cristo no júri. Mas inverte o

cenário: os beneficiados pela liberdade religiosa da República querem agora

cercear a liberdade religiosa dos demais, impondo a sua.

Um decreto de 1890 proibia às autoridades “instituírem alguma religião ou

vedarem-na”. Dele se valeu Miguel Vieira Ferreira, positivista, pastor da Igreja

Evangélica Fluminense, oriundo da Igreja Presbiteriana. Jurado em sessão do

tribunal do júri, em 1891, requereu ao juiz que o crucifixo fosse removido da sala.

A lei o obrigava a servir como jurado e ele o fazia como cidadão. Mas não o

obrigava a fazê-lo sob o império de um símbolo religioso.

Em face dos conflitos que se disseminavam, Rodrigo Octávio de Langgaard

Menezes, procurador da República, em 1892, emitiu luminoso parecer sobre a

questão, que se tornaria um marco no debate e nas decisões sobre o assunto.

Nele, alude ao despedaçamento de imagens de Cristo na sala do júri do Rio de

Janeiro, ao apedrejamento de templos protestantes e à violência contra uma

procissão católica. Invocando valores da Revolução Francesa, que inspiraram as

leis da República, sentenciou: “A permanência de um símbolo religioso em um

lugar público onde são chamados os cidadãos a cumprir um dever cívico ofende o

preceito constitucional de liberdade de consciência”

Rui Barbosa, em 1903, interpreta a questão da religião na Constituição

republicana, que ajudara a escrever, e atenua a interpretação de Rodrigo Octávio.

Diz que a inspiração da Carta fora a mesma da americana, na qual os fundadores

da nação viram a religião como anterior à fundação do Estado e inspiradora das

leis. É provavelmente essa interpretação que influenciará uma decisão da

ditadura no Estado Novo no sentido de reconhecer a religião católica como a da

maioria da nação. Isso abrandava a separação entre o Estado e a Igreja e abria

caminho para transgressões várias, numa recíproca cumplicidade.

Os protestantes já haviam adotado uma estratégia de calmo confinamento nos

templos. Nem quando Café Filho, presbiteriano, tornou-se presidente da

República, em 1954, fizeram alarde ou se valeram do poder para impor ao País

seus próprios valores. Desde a proclamação da República, em face da liberdade

religiosa do novo regime, a maioria deles preferira limitar-se a explorar brechas

na organização do Estado para viabilizar a difusão de seus valores sociais e não

propriamente de suas concepções religiosas. Impunham-se pelo republicanismo

de sua tradição e nesse sentido tentavam enquadrar os católicos e os confessantes

de outros credos no mesmo princípio cívico. Uma das consequências da celeuma

inicial da República fora, justamente, um agressivo reavivamento do catolicismo.

Sobretudo nos anos 1910, com o movimento generalizado de cerimônias de

reintrodução do Cristo nas salas do júri e nas escolas públicas. A campanha

protestante contra o Cristo no júri fortalecera o catolicismo.

Com a multiplicação das igrejas pentecostais nas décadas recentes ressurgiu a

hostilidade contra religiões e crenças que delas diferem, especialmente contra o

catolicismo, no âmbito de uma “guerra santa” que tem tido expressões em

episódios como o do “chute na santa”, em 1995. Foi quando um pastor da Igreja

Universal chutou na TV uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Ou o

despedaçamento da imagem original e sagrada da santinha negra em 1978 por

um jovem pentecostal, depois de ouvir um sermão preconceituoso de seu pastor.

Têm sido frequentes as manifestações dessa ordem no Brasil, incidindo de

preferência em imagens de Nossa Senhora Aparecida. Mesmo na visita do papa

Francisco, no Rio de Janeiro um homem quebrou uma imagem da santa e pisoteou-a em público. Proclamada Padroeira do Brasil, a incidência de agressões

sobre esse símbolo religioso, que é também um símbolo político da

nacionalidade, parece indicar que o que está em jogo não é a religião, mas o

poder. O episódio de Nova Odessa indica isso e muito mais: é uma clara mostra

de ilegal tentativa de uso do poder para sobrepor a fé da minoria à dos demais.

Qual é a vontade de Deus para a sociedade e qual seria o papel do Estado

Existe uma vontade de Deus para a sociedade democrática? Se existe, como podemos

conhecê-la? Qual o papel do Estado na implementação da vontade de Deus para socieda-

de? Os reformadores, especialmente Martinho Lutero e João Calvino, trataram de separar

Estado e Igreja, separar a esfera de governo temporal da esfera de governo espiritual. Esse

assunto é conhecido como teologia dos dois reinos na teologia luterana. Deus é um só,

mas ele decidiu governar o mundo por meio do Estado e da Igreja. Tudo o que diz respeito à

convicção pessoal, espiritual e eterna é remetido ao reino espiritual; tudo o que é externo ao

indivíduo e trata da vida em sociedade diz respeito ao Estado, portanto, ao reino temporal.

É importante destacar a mudança do Antigo Testamento para o Novo Testamento. Na

antiga aliança, havia convergência entre as leis civis e as leis religiosas. Na nova aliança,

sob Cristo, a Igreja é a reunião daqueles que creem e vivem uma vida piedosa em qualquer

que seja o regime político. A adesão das pessoas é voluntária e a obediência ao estilo

de vida cristão não é fruto da imposição de qualquer lei por parte do Estado. Ainda que o

Estado venha a criar embaraços para que cristãos vivam de acordo com sua fé – e tem sido

assim em muitos momentos da história – a resposta será sempre: “antes importa obedecer

a Deus do que aos homens (Atos 5.29)”.

Mas, se no Antigo Israel havia coincidência entre a lei civil e a lei religiosa, ou seja, aqui-

lo que era imoral era também ilegal, qual é a visão cristã do papel do Estado na nova alian-

ça? De diferentes modos o Novo Testamento enfatiza que o papel do Estado é a promoção

da justiça e não a promoção da fé. Na expressão de Paulo no texto dirigido ao jovem Timó-

teo (1 Timóteo 2.1-7), isto aparece nas orações que devem ser feitas em favor de todas as

autoridades para “que tenhamos uma vida tranquila e pacífica” na sociedade. Na Carta aos

Romanos, capítulo 13, Paulo afirma que a existência de autoridades é da vontade de Deus

e que a missão delas é a promoção da justiça.

Por fim, cabe registrar, ainda que todos admitam ser a promoção da justiça o dever maior do Estado, definir o que é ou não justo não é nada fácil e, por isso, requer diálogo, tole-

rância e boa vontade de todos. À luz da fé a participação política numa sociedade democrá-

tica, como a brasileira, deve ocorrer em torno da busca da justiça para todos os cidadãos.

Na leitura do Antigo Testamento não se deve buscar inspiração para invenção de uma teo-

cracia tupiniquim sob o tosco argumento que cristãos são maioria na sociedade brasileira e

logo seu estilo de vida deve prevalecer sobre os demais. Cristãos envolvidos com a política

numa sociedade democrática oferecem bom testemunho do Evangelho quando lutam pela

justiça e não quando pregam moralidade. Do Antigo Testamento, a teocracia foi superada,

mas a busca pela justiça permanece: “Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei

ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas. (Isaías 1.17)

 

UA5 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 5

5. Olhar socioteológico para a crise das democracias modernas

OBJETIVOS

1 Lançar um olhar socioteológico sobre as democracias modernas

2 Refletir sobre a experiência democrática brasileira

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Parabéns por ter chegado até aqui. Quero te convidar para um olhar socioteológico para

a crise das democracias modernas. É importante construir uma visão madura da democra-

cia que envolve suas possibilidades, mas também seus limites. Essa unidade foi preparada

pensando no tipo de conversa (ou aula) que você pode conduzir com sua comunidade de

fé. Conceitos das Ciências Sociais são contextualizados a partir de uma visão bíblica. A

intenção é tornar o assunto mais familiar para o povo de Deus.

Bons estudos.

A realidade das democracias hoje

Viver numa democracia é uma realidade recente na história humana e ainda restrita

a aproximadamente 30 ou 40% dos habitantes de nosso planeta, sendo que algumas são

consideradas democracias falhas e em declínio. O seguinte exemplo ajuda a entender o

quão restrita ainda é a experiência democrática: Brasil, Índia e África do Sul, dentre os BRI-

CS, estão entre os países democráticos. China e Rússia são considerados países nos quais

não há democracia. No ano de 2016 tive a oportunidade de conhecer um grupo de cristãos

chineses e entender um pouco melhor o que significa ser um cristão num país no qual não

há democracia. Conversei com Victor, um advogado na casa dos 45 anos. Ele é professor

universitário. Perguntei como foi a conversão dele e ele me disse que ficou examinando a fé

cristã por 10 anos antes de tomar uma decisão por Cristo, pois ele sabia das consequências

para sua vida e ele queria estar certo de que Cristo era o caminho, a verdade e a vida. Para

ilustrar as consequências de ser um cristão na China ele me contou o seguinte: sua esposa

ficou grávida, era o segundo filho. Segundo as leis da China ela era obrigada a comunicar

imediatamente ao seu chefe na empresa e depois de comunicado havia a decisão a ser

tomada: abortar e continuar no emprego ou levar adiante a gravidez e ser demitida. Ela es-colheu ser demitida. Terminou? Não! Para ter o filho eles precisaram pagar uma multa de 15

mil dólares ao governo local. E o que aconteceria se não pagassem? Um guarda bateria à

porta da casa deles e ela seria levada à força a um hospital e a gravidez seria interrompida

contra a vontade deles. Victor e sua esposa são pessoas marcadas pelo governo chinês

como rebeldes. A vida profissional dela acabou. Qual a razão da subversão deles? A opção

pela fé em Cristo.

Ser cristão debaixo de um regime totalitário e de um regime democrático apresenta

desafios diferentes. Os regimes democráticos ainda são, sob o ponto de vista histórico, re-

lativamente novos no mundo. É possível perceber o caráter recente dos regimes democráti-

cos olhando, por exemplo, para o direito ao voto feminino. Você consegue imaginar um país

que eleja o seu governo por meio do voto, mas que alguém não possa votar pela simples

razão de ser mulher? Esquecemos com facilidade, mas a conquista do direito de votar pelas

mulheres é algo muito recente na história. A luta pelo voto feminino começou em 1918 na

Inglaterra, nos Estados Unidos em 1920 e no Brasil, o primeiro Estado a reconhecer o direi-

to das mulheres de votar foi o Rio Grande do Norte em 1928. Foi sob o governo de Getúlio

Vargas, em 1932 que o nosso país reconheceu o direito ao voto às mulheres. Importante

a lembrança para afirmar que democracias são construções históricas. Democracias não

caem prontas do céu na cabeça das pessoas funcionando perfeitamente. São construções

histórias cheias de acertos e de erros de avanços e recuos.

Democracia e frustração

É possível perceber uma frustração crescente com a democracia no mundo. Uma

frase que começou a ser utilizada nos protestos em Portugal, foi adotada nos protestos que

eclodiram no Brasil no ano de 2013. A frase resume bem o sentimento atual em relação aos

regimes democráticos: “Nossos sonhos

não cabem em suas urnas”.

A frase é extremamente reveladora

sobre a compreensão que se tem atual-

mente da democracia. Teríamos colocado

sonhos demais em nossa democracia? É

de se esperar numa democracia melhores

hospitais, melhores estradas, melhores es-

colas, serviços com boa qualidade, bom

uso dos impostos arrecadados, fiscaliza-

ção e transparência. Esse tipo de sonho e outras coisas semelhantes a estas cabem nas

urnas de uma democracia e são demandas legítimas dos cidadãos brasileiros. Mas, então,

o que mais colocamos nas urnas? Nas urnas colocamos a expectativa que a democracia formaria automaticamente bons cidadãos, pessoas mais honestas, pessoas mais civiliza-

das, pessoas que agiriam com maior respeito ao próximo e ao dinheiro público, pessoas

que fariam aquilo que é certo por consciência e não por coerção da lei. De algum modo a

democracia tornou-se um credo, uma utopia, uma ideologia.

Ideologia democrática versus mecanismo democrático

Quando a democracia é professada como credo, como ideologia ela cria expectativas

que não são realistas. A democracia como credo proclama: “Vox Populi, vox Dei” a voz do

povo é a voz de Deus. A vontade da maioria é deificada e divinizada como portadora de uma

sabedoria infalível (Koyzis, 2014). Mais do que isso: a manifestação da vontade da maioria

define aquilo que é certo e errado na sociedade. Entretanto, na história com muita frequên-

cia as minorias estavam do lado certo e as maiorias ao lado das injustiças. Foi Rubem Alves

quem melhor mostrou o caráter idolátrico da democracia moderna. Assim ele escreve:

GANHEI CORAGEM

Rubem Alves

Folha de São Paulo (05/05/2002)

Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele

realmente conhece”, observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus,

eu guardei em segredo. Por medo. Albert Camus, leitor de Nietzsche, acrescentou

um detalhe acerca da hora em que a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a

coragem de assumir aquilo que sabemos”. Tardiamente. Na velhice. Como estou ve-

lho, ganhei coragem.

Vou dizer àquilo sobre o que me calei: “O povo unido jamais será vencido”, é disso

que eu tenho medo.

Em tempos passados evocava-se o nome de Deus foi exilado e o “povo” tomou o seu

lugar: a democracia é o governo do povo… não sei se bom negócio; o fato é que a

vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta

ver os programas de TV que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação históri-

  1. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia, o povo e Deus andam sempre em direção opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse na montanha para que o

povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando as altu-

ras, Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os dez mandamentos.

E a história do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao con-

templar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outra ideias. Amava a prosti-

tuição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão

a perdão. Até que ela o abandonou… Passando muito tempo, Oséias perambulava

solitário pelo mercado de escravos… E o que foi que viu? Viu a sua amada sendo

vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você

será minha para sempre…”. Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa

parábola do amor de Deus.

Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta, mas

sabia que ela não era confiável. O povo preferia os falsos profetas aos verdadeiros,

porque os falsos profetas lhe contavam mentiras. As mentiras são doces; a verdade

é amarga.

Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos

romanos, o circo eram os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gos-

tava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida

para os leões, se transformaram em donos do circo.

O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças

públicas. As praças ficavam apinhadas como o povo em festas, se alegrando com o

cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu

livro “O Homem Moral e a Sociedade Imoral” observa que os indivíduos, isolados,

têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis” por aquilo que fazem.

Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciosa pelas emoções

coletivas.

Indivíduo que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incor-

porados a um grupo tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de lincha-

mentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no

meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral.

O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.

Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo

os interesses da comunidade. É sobre esse pressuposto que se constrói o ideal da

democracia.

Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O

povo é movido pelo poder das imagens, e não pelo poder da razão. Quem decide

as eleições e a democracia são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições,

dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa.

Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a

ser assimilados à coletividade. Uma coisa é o ideal democrático que eu amo. Outra

coisa são as práticas de engano pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de

manobra sobre a qual os espertos trabalham.

Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus foi crucifi-

cado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a revolução cultural, na China

de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei

que outras coisas o povo é capaz de queimar.

O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer.

O povo, unido, jamais será vencido!

Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristo-

cráticos… Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahma, de Fernando Pessoa, de

Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não

gosto de música sertaneja, não gosto de futebol. Tenho medo de que, num eventual

triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir

sapos e a brincar de “boca-de-forno”, à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento

raro aconteça, é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhan-

do e cantando e seguindo a canção…” Isso é tarefa para os artistas e educadores.

O povo que amo não é uma realidade, é uma esperança.

 

 

Rejeitar a democracia enquanto ideologia, enquanto credo não significa rejeitá-la en-

quanto um mecanismo de governo. A democracia enquanto mecanismo de governo é um

arranjo político que incorpora a participação dos cidadãos por meio do voto e da fiscaliza-

ção de seus governantes. A democracia é o sistema de governo que possibilita que as pes-

soas convivam respeitando suas diferenças. A democracia promove o rodízio na ocupação

do poder de tempos em tempos. A democracia é um arranjo institucional que busca conci-

liar interesses sociais que são conflitantes e faz isto de um modo pacífico e dentro das leis.

Ela é ao mesmo tempo só isso e tudo isso.

Sobre democracia, tronos, principados e potestades

Olhemos sob a perspectiva bíblica observando o que Paulo ensina sobre os

poderes temporais:

… pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra,

as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer princi-

pados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é

antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. (Colossenses 1.16-17)

 

Qualquer poder que exista foi criado em Cristo, ensina o apóstolo Paulo. Qualquer po-

der – governamental ou familiar – foi instituído para contenção do mal e realização do bem.

A democracia é o mecanismo para entregar o poder a pessoas escolhidas por meio do voto.

A monarquia, por exemplo, confia o exercício do poder a uma linhagem real. A frustração

com a democracia e com as revoluções democráticas é que aqueles que chegam ao poder,

depois de conquistar o poder se deixam corromper no exercício do poder. Aqueles que con-

quistam o poder acabam praticando as mesmas coisas que condenavam em seus anteces-

sores. Mudam as pessoas, mas as estruturas não mudam. Mudam os personagens, mas

a história é sempre a mesma. Morre o rei, mas sobrevive a realeza. As observações acima

não se referem aos últimos 4 anos. As frustrações com a democracia abrangem décadas.

O apóstolo Paulo, grande conhecedor do império romano e dos poderes religiosos

judaicos, escreveu:

… porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim con-

tra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo

tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.

(Efésios 6.12

Principados e potestades nada mais são do que os poderes governantes, os princípios

governantes, as estruturas vigentes ou, para usar uma palavra mais comum, o sistema, sim

a cultura sistêmica de uma sociedade. O cidadão não vê o sistema, mas sabe que as pes-

soas governam dentro de um sistema, de uma determinada estrutura. A estrutura – o jeito

de fazer as coisas – estava ali antes de chegarem os governantes de plantão e continuarão

128

ali depois que eles saírem de cena. O rei morre, mas a realeza vive, ou seja, as pessoas

passam, mas a cultura perdura, o sistema sobrevive. Um olhar puramente externo atribui

a pessoa que ocupa um cargo político poder quase onipotente, entretanto, a proximidade

o detentor da posição política revelará os limites e até certa impotência diante do poder

estrutural e sistêmico que reina naquele campo. Obviamente isto não isenta as pessoas

da responsabilidade pessoal, pois o pecado é sempre uma união entre pessoa e estrutura.

Importante enfatizar é que os Principados e Potestades contra os quais cristãos lutam em

sociedades democráticas são estruturas, sistemas, tradições, jeitos e esquemas codifica-

dos – seja na política ou na economia. A luta é contra o sistema que muda pessoas, para

que as coisas continuem do mesmo jeito. A luta cristã não é contra o sangue e a carne, mas

contra os principados e potestades, isto é, contra um sistema invisível aos olhos, mas real;

invisível aos olhos, mas operante e poderosíssimo.

Houve uma época que alguns segmentos evangélicos tornaram moda amarrar os demô-

nios. Saíam identificando os chamados “espíritos territoriais” e amarram demônios que se-

gundo eles dominavam cidades e países e eram responsáveis por nossas mazelas políticas

e econômicas. Entretanto, alguns líderes dessas correntes evangélicas foram eleitos e foram

para Brasília e foram dominados pelos principados e potestades, ou seja, entraram no esque-

ma, se deixaram corromper pelas estruturas reinantes, tornaram-se operadores do sistema.

  1. Newbigin, que foi secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas, se perguntou:

como os Principados e Potestades podem ser abalados? Como o poder pode ser despo-

jado e colocado a serviço de Cristo? A resposta dada é: apenas pelo poder do Evangelho,

anunciado em palavras e incorporado em ações. À luz disso não se trata de tomar o poder.

Roma e todo o poder imperial caíram não porque o trono de César foi conquistado por um

cristão ou o Senado tomado por cristãos. Roma foi conquistada quando as vítimas se ajoe-

lharam diante do Coliseu e oraram pelo imperador em nome de Jesus (Newbigin, 2015, p.

261). Não se tratava de desacreditar um imperador ou conquistar o poder do trono, tratava-

-se de desmascarar os principados e potestades e a sua lógica. Tratava-se de substituir a

lógica do poder pelo amor.

O evangelho opera sob a lógica do poder do amor. Os principados e potestades operam

sob a lógica do amor ao poder. Na cruz Cristo expôs a mesquinharia e falta de horizontes

dos principados e potestades.

Não às utopias, sim à parusia

Sob a perspectiva da proclamação do Evangelho é correto afirmar que o sonho de um

mundo com sentido e pleno de amor e respeito não cabe na urna, mas ele cabe no reino de

Deus. Ela pressupõe para funcionar um tipo de gente com valores que ela não consegue gerar. Foi Martin Luther King quem melhor ilustrou esse dilema da democracia moderna.

Ele disse, no contexto da luta pelo fim da segregação racial, nos anos 60, que o governo

pode exigir que um homem branco receba negros em seu restaurante e pode impedir que

brancos linchem negros, mas nenhum governo pode forçar uma pessoa branca a amar

uma pessoa negra, pois isso exige transformação do coração. Nenhum governo pode, mas

Cristo pode efetuar esta transformação que nenhum principado ou potestade pode realizar.

Nas urnas cabem reivindicações. Nas urnas cabem reformas: econômica, política e

social, mas nas urnas não cabem os sonhos de transformação dos seres humanos.

Parusia é o termo grego para falar da segunda vinda de Jesus para consumar o reino de

Deus. Foi assim que Paulo, o prisioneiro do império romano referiu-se à Parusia de Cristo:

Mas, de fato, Cristo ressuscitou dentre os mortos…

E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando

houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder.

Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos

debaixo dos pés (1 Coríntios 15.20,24-25).

 

 

 

FT 3 –

No guia de estudos vimos que nas urnas num regime democrático cabem reivindicações tais como: econômicas, políticas e sociais. Porém, nas urnas não cabem os sonhos de transformação dos seres humanos. Por isso, não devemos idolatrar ou demonizar a democracia. Você concorda que a teologia reformada apresenta uma visão equilibrada sobre a democracia? Explique.

A teologia reformada, ao abordar a democracia, oferece uma visão equilibrada e realista, reconhecendo tanto seus méritos quanto suas limitações. A democracia, como sistema de governo, proporciona um espaço para reivindicações econômicas, políticas e sociais, mas não é capaz de realizar os sonhos de transformação profunda dos seres humanos. Por isso, a teologia reformada nos adverte contra a idolatria ou demonização da democracia.

 

Viver em uma democracia é uma experiência recente e limitada a uma parcela da população mundial. Em países como o Brasil, Índia e África do Sul, a democracia é uma realidade, enquanto em nações como China e Rússia, a ausência de democracia impõe desafios significativos aos cristãos.

 

A teologia reformada reconhece que, embora a democracia ofereça benefícios como melhores serviços públicos e maior transparência, ela não garante a formação de cidadãos virtuosos. A frase “Nossos sonhos não cabem em suas urnas“, utilizada em protestos, resume a frustração com a democracia. Esperamos que a democracia produza cidadãos mais honestos e respeitosos, mas essa expectativa é irrealista.

 

Rubem Alves, em sua crítica à idolatria da democracia, destaca que a vontade do povo nem sempre é confiável. Ele observa que o povo, como massa, pode ser manipulado e levado a cometer atos cruéis. A história bíblica também nos mostra que o povo frequentemente se afastava de Deus, preferindo falsos profetas e ídolos. Reinhold Niebuhr, em “O Homem Moral e a Sociedade Imoral”, argumenta que indivíduos isolados são seres morais, mas quando em grupo, podem cometer atrocidades.

 

A teologia reformada, ao invés de idealizar a democracia, propõe uma abordagem crítica e equilibrada. Ela reconhece que a democracia é uma construção histórica, cheia de acertos e erros, avanços e recuos. A democracia não é um sistema perfeito, mas é um mecanismo que pode ser aprimorado. A teologia reformada nos lembra que a transformação verdadeira dos seres humanos não pode ser alcançada apenas por meio de sistemas políticos, mas requer uma mudança profunda no coração e na mente, algo que só pode ser realizado pela graça de Deus.

 

Miroslav Volf, em sua obra “Uma fé pública”, argumenta que a fé cristã deve engajar-se publicamente na promoção do bem comum, sem tentar reconquistar o poder político. Ele afirma que os cristãos devem discernir áreas da vida cultural que precisam ser transformadas e aquelas que podem ser aceitas. Volf também alerta contra as armadilhas das guerras culturais, lembrando que a identidade cristã deve ser estabelecida pelo amor de Cristo, e não pela oposição a outras ideologias.

 

Em conclusão, a teologia reformada apresenta uma visão equilibrada sobre a democracia, reconhecendo seus benefícios e limitações. Ela nos chama a participar ativamente na sociedade, promovendo o bem comum, mas sem idolatrar a democracia. A verdadeira transformação dos seres humanos só pode ser alcançada pela ação divina, e a teologia reformada nos lembra de manter essa perspectiva ao engajarmos com os sistemas políticos de nosso tempo.

 

 

 

Resposta a outro aluno

 

A teologia reformada oferece uma perspectiva equilibrada sobre a democracia, reconhecendo seus benefícios e limitações. Ela destaca a importância da soberania de Deus e a natureza pecadora da humanidade, alertando contra a idolatria do sistema democrático. Embora a democracia promova liberdade, justiça e participação, a teologia reformada entende que ela não pode transformar completamente a sociedade. Em vez de idealizar ou demonizar a democracia, a teologia reformada a vê como uma ferramenta útil, mas imperfeita, para organizar a sociedade, lembrando que a verdadeira transformação vem pela graça de Deus.

MÓDULO 4

EVANGÉLICOS DE MISSÃO E DITADURA CIVIL-MILITAR NO PRIMEIRO QUINQUÊNIO 1964-1969

17 Richard Shaull se tornou objeto de uma série de

acusações por parte da comunidade de informações do

regime militar. Em um relatório do DEOPS-SP (s/nº e sem

data, com carimbo de “secreto”) registra na p.7: “Millard

Richard Shaull – desnecessário qualquer comentário por

ser elemento esquerdista bastante conhecido. Orientador

de todo trabalho de destruição teológica. Pregador de

modernismo e da desnecessidade de princípios éticos

para nortear a vida, o que identifica seu espírito ateísta

e materialista. Fundador de uma escola modernista, que

prega a desnecessidade de organização eclesiástica e a

necessidade de organização eclesiástica e a necessidade

da Igreja agir no terreno social. Prega a necessidade de se

explorar a pobreza, para fortalecer os princípios pregados.

Homem de notável cultura e de extraordinária força de

persuasão, chefia todo o movimento esquerdista dentro da

Igreja Presbiteriana do Brasil, escudado pela organização

internacional: Conselho Mundial de Igrejas”. (PÁGINA 135)

18 O Acampamento Palavra da Vida durante alguns anos

frequentou, por meio de propaganda, as páginas de O

Estandarte, anunciando as temporadas de acampamento

para jovens evangélicos com as seguintes palavras: “Mo-

ços… moças… esportes e muita alegria… num ambiente

sadio” ou então, “venha aproveitar suas férias gozando de

conforto, camaradagem e comunhão com Deus” (O Estan-

darte,31/10/62). Porém uma fotografia de acampantes, em

que os rapazes apareciam de shorts e as moças vestidas com

discretos maiôs causou escândalo em Votorantim e Pilar

do Sul, provocando protestos das IPIs locais, em reunião

do Presbitério Sul de São Paulo, quando então se anunciou

que dezenas de assinaturas de O Estandarte teriam sido

canceladas por causa daquele tipo de propaganda, (veja as

Atas publicadas em 31/3/62). Paralelamente havia muitas

reflexões no jornal oficial sobre a deserção de jovens da

Igreja e campanhas da Confederação Nacional da UMPI

pela frequência dos jovens às reuniões da Igreja. Durante

os anos 60, o slogan de uma campanha era “cada umpista

um dizimista”. Em 15/10/61, um artigo escrito por Benilton

Carlos Bezerra tinha por título “A fuga dos filhos de crente”. (PÁGINA 136)

Mesmo assim, líderes jovens

da IPI, como Xel Santana Graça,

Roberto Lessa, Moysés Aguiar,

Ferdinando Caldeira, Josué Pache-

co de Lima e outros, insistiam, por

meio da Confederação da Mocida-

de Presbiteriana Independente,19

em desvincular o comunismo da

necessária preocupação social,

política e ecumênica da Igreja.

Entre eles havia alguns idealistas e

conservadores, como Hélio Teixeira

Calado, que durante duas décadas

foi vereador em Sorocaba e parti-

cipou da Conferência do Nordeste,

divulgando entre 1962 e 63 os seus

resultados por meio de palestras

no interior de São Paulo. (PÁGINA 137)

Mesmo assim, líderes jovens

da IPI, como Xel Santana Graça,

Roberto Lessa, Moysés Aguiar,

Ferdinando Caldeira, Josué Pache-

co de Lima e outros, insistiam, por

meio da Confederação da Mocida-

de Presbiteriana Independente,19

em desvincular o comunismo da

necessária preocupação social,

política e ecumênica da Igreja.

Entre eles havia alguns idealistas e

conservadores, como Hélio Teixeira

Calado, que durante duas décadas

foi vereador em Sorocaba e parti-

cipou da Conferência do Nordeste,

divulgando entre 1962 e 63 os seus

resultados por meio de palestras

no interior de São Paulo. Calado mostrava inclusive o material que circulou naquele evento: cartilhas

de alfabetização de adultos inspi-

radas pelo até então mundialmente

desconhecido, o pedagogo pernam-

bucano Paulo Freire, ou até mesmo

a Constituição da URSS, que,

teoricamente garantia a liberdade

de crença.

Também circulavam entre a

juventude da IPI documentos pu-

blicados para reflexão das uniões lo-

cais de jovens (Umpis), publicações

feitas pela Confederação da juven-

tude presbiteriana independente

(Documentos de Botucatu, 1964,

por exemplo) que insistiam na ação

profética, social e política da Igreja

para os novos tempos considerados

“revolucionários”. Nesse contexto,

começaram os preparativos para o

congresso nacional do movimento

“umpista”, marcado para julho

de 1964, mas que acabou sendo

adiado para o ano seguinte, por causa do golpe militar.

20 Após o Golpe, Hélio Calado se tornou um entusiasta do

regime militar, se opondo a quaisquer pessoas que se levan-

tassem para criticar o governo. Por exemplo, em 8/8/79, o

reverendo Roberto Vicente Cruz Themudo Lessa fez uma

palestra em Sorocaba sobre “A liberdade de expressão nos

grupos religiosos”. Nessa palestra Lessa teceu críticas as

igrejas protestantes particularmente a Igreja Presbiteriana,

devido ao apoio prestado ao regime militar. Calado usou

da palavra, segundo relatório do DOPS (507-300-2790)

para refutar tudo o que o orador afirmou a respeito dos

protestantes e do governo. Anexo ao relatório foi incluído

o roteiro da palestra distribuído pelo próprio Lessa. Esse

e outros documentos do DOPS (SP), analisados pelo GT

“Igrejas e Ditadura” (da Comissão Nacional da Verdade,

em 2013) testemunham o patrulhamento que as atividades

de alguns pastores e teólogos protestantes sofreram durante

todo o período da ditadura militar.

22 .Um idealista presbítero (líder leigo de uma comuni-

dade presbiteriana local), filho e irmão de missionários

norte-americanos no Brasil, Paulo StuartWright, conseguiu

se eleger deputado estadual em Santa Catarina, represen-

tando grupos de pescadores do litoral catarinense, os quais

foram organizados por ele em cooperativa de produção de

pescado. Wright, logo após o Golpe de 1964, foi cassado

por “atentar contra o decoro parlamentar” (comparecer a

uma sessão da Câmara, sem portar gravata no pescoço,

foi a desculpa!). Logo a seguir Wright passou a viver na

clandestinidade, até que foi capturado em São Paulo e

morto sob tortura em 1973. Esse acidente na família do Rev.

Jaime Wright (1928-1999), pastor da Igreja Presbiteriana

Unida, o levou a participar ao lado do Arcebispo de São

Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, da pesquisa que resultou

na redação dos textos do Projeto “Brasil: Nunca Mais”, da

Comissão de Justiça e Paz, que em 6.891 páginas compro-

vou o comportamento violento do regime militar brasileiro..

 

Essa seria, no entanto, uma tarefa

muito mais intensa do que analisar

algumas décadas anteriores ao Gol-

pe de 1964, pelo menos os 10 anos

que o antecederam. Esse período

foi marcado pela formação de fac-

ções opostas no interior das igrejas

evangélicas em decorrência das lutas

ideológicas que também ocorriam na

sociedade brasileira. Nos primeiros

anos da década de 1960 acirrou-se a

tensão entre grupos que defendiam um maior comprometimento das

igrejas evangélicas com as transfor-

mações sociais, culturais e políticas

da sociedade.

26 Os principais pressupostos doutrinários e ideológicos da

Doutrina de Segurança Nacional, de sua função ideológica

e raízes “teológicas” foram bem examinados por Joseph

Comblin (1980). Nesse texto o seu autor aponta para a

necessidade que tem os militares de legitimar o seu poder

na América Latina por meio de uma ideologia que deveria

se tornar matéria apresentada a alunos das escolas de todos

os níveis. Ela serviria também para fundamentar as ações

estratégicas contra a oposição, o direito de censurar a mídia,

artes e espetáculos, e de até a interferir no funcionamento

das instituições tradicionalmente democráticas. Para a

manutenção da segurança do Estado-Nação seria necessário

diminuir a liberdade dos cidadãos, isto é, aumentar-lhes a

sensação de insegurança.

O grupo de Shaull chegou a

utilizar uma propriedade na Vila

Anastácio, um bairro operário de São

Paulo, de onde estudantes de Teolo-

gia saiam para trabalhar nas fábricas,

à semelhança dos padres operários

franceses.28 Shaull teve a sua visão teológica classificada sob o rótulo de

“Teologia da Revolução”. Eduardo

Galasso Faria (2002), um de seus

alunos no Seminário de Campinas, no

mesmo ano da morte de Shaull, pu-

blicou a sua dissertação de mestrado,

ressaltando a capacidade de Shaull

de fazer dialogar a fé cristã com a

teoria marxista e as transformações

revolucionárias que aconteciam nos

anos 1950-60 por toda a América

Latina. Ele seria o “pai da Teologia

da Revolução” e inspirador, ainda que

não tão diretamente, do que viria de-

pois a ser conhecida como “Teologia

da Libertação”.29

A oxigenação da teologia pro-

testante brasileira foi um dos mais

significativos resultados da militân-cia de Shaull no Brasil e, segundo

Antonio Gouvêa Mendonça (in

Shaull, 2003, p.133) “toda a te-

ologia do Brasil esta dividida em

dois períodos – antes e depois de

Shaull”. Mas, foi na organização da

Conferência do Nordeste (1962)

que Shaull demonstrou a sua “pe-

riculosidade” para as classes con-

servadoras brasileiras e a sua facili-

dade em relacionar, de um lado, a

sociedade, os rumos da “revolução”

latino-americana que conforme o

paradigma da época seria inevitável

e estaria em andamento, de outro,

o compromisso com o Evangelho

de Jesus Cristo.30

No entanto, já durante a

realização do evento, pastores e lei-

gos presbiterianos fundamentalistas

denunciaram em jornais de Recife

que a infiltração comunista era

facilmente constatada até mesmo

no cartaz oficial do evento, segun-do o presbítero Ebenezer Furtado

Gueiros no Diário de Pernambuco,

(29/7/62, p.12).31

“A infiltração vermelha na citada

conferência é evidente a começar

do cartaz de propaganda de 95

por 65 centímetros, em fundo

vermelho, com uma cruz inclinada,

tangida por um vendaval do qual

sobressai uma foice. Contém os se-

guintes dizeres: ‘Cristo e o processo

revolucionário brasileiro’. Se o C da

palavra Cristo se juntar em sentido

horizontal com o T da mesma pala-

vra teremos a conhecida e estilizada

figura da foice e do martelo. Este

cartaz foi afixado aos milhares pelas

ruas da cidade”.

Fica claro então que quando foi

dado o golpe em 1964, a sociedade

brasileira estava dividida ideolo-

gicamente, e como tal também

estavam as igrejas evangélicas de

missão, formadas por fiéis vindos

das classes médias ou da classe

operária que haviam ascendido

socialmente. Esses fiéis se dividi-

ram em dois campos opostos, tal

como a sociedade mais ampla.

31 A posição à Conferência do Nordeste se deu entre os

presbiterianos e, com mais força por parte dos pastores e

leigos da Igreja Presbiteriana Fundamentalista, da qual era

membro Neemias Gueiros, redator do Ato Institucional

n.2. Seu pastor, Rev. Israel Furtado Gueiros, conforme

documentação da Secretaria da Segurança Pública de

Pernambuco (Ofício n. 895, 17/7/64) compareceu ao DOPS

para prestar declaração contra um pastor batista (Gerson

Maciel Neto) acusado de subversão e de envolvimento

na Conferência de 1962 (Cf. Marcio Vilela, 2013, p.71).

 

Por isso as camadas

médias da população se mostravam

extremamente medrosas. João Dias

de Araújo (2010, p. 95) escreveu

que: “Entre as igrejas evangélicas

do Brasil, a Presbiteriana foi a mais

envolvida e a mais comprometida

com a revolução de 1964 por causa

das ligações dessa Igreja com a clas-

se média e por causa do prestígio

político que ela gozava nos meios

políticos e militar.”

Ora, nessas igrejas evangélicas

de missão a pregação contra o

comunismo, que já vinha sendo

objeto de sermões, estudos bíblicos,

artigos em revistas desde o final da

Segunda Guerra Mundial, foi se

tornando acirrada, especialmente

no decorrer de 1963 e inicio de 1964

Alexander Duncan Reily

(2003, p.309) também observou

que em grande parte

“o alto grau de aceitação da

intervenção militar pelos

protestantes, a princípio [se

deu] pelo medo que João

Goulart estivesse condu-

zindo o País para um caos

socialista e possivelmente

à guerra civil. Nesse caso o

novo regime representou a

salvação política da pátria.

Medo da esquerda e simpatia

pela direita parece refletir

fielmente a mentalidade pro-

testante majoritária.”

 

No meio dessa onda de temor

o pastor batista-pentecostal, Enéas

Tognini, convocou todos os evangé-

licos brasileiros para uma jornada

de jejum, meditação e oração no

dia 15/11/1963, pedindo que Deus “libertasse o Brasil do perigo

comunista”. Milhares de templos

abriram as suas portas naquele dia,

das seis da manhã até as nove da

noite, dentro do espírito da convo-

cação. Após o Golpe, em 21/4/64

nova convocação levou as massas

evangélicas a um dia de oração e

jejum em agradecimento por Deus

ter “ouvido as orações de seu povo”

e providenciado o livramento da

nação de tão arriscado futuro.

Nas semanas que antecederam

ao golpe muitos evangélicos parti-

ciparam da marcha da família com

Deus pela liberdade ou de outros

eventos voltados a protestar contra

o governo constitucional de João

Goulart. Presbiterianos indepen-

dentes de São Paulo chegaram, em

janeiro de 1964, a enviar para a

mais alta instância da denominação

religiosa uma moção pedindo inter-

venção na Faculdade de Teologia

da IPI. Havia o temor de que os

futuros pastores fossem seduzidos

pela ideologia marxista. Essa preo-

cupação com uma formação isenta

de riscos ideológicos de esquerda

voltaria a se repetir quando a IPI

chegou a fechar o seu Seminário

em 1968 por quase dois meses, ex-

pulsando a metade de seus alunos,

reabrindo a Faculdade depois de um

processo de “depuração” dos alunos “comunistas”, “liberais” e “moder-

nistas”. Não por mera coincidência

a maior parte dos que não puderam

voltar estudava também na USP,

onde participavam do movimento

estudantil.32

32 A repressão contra alunos de teologia e seminários

teológicos aconteceu num curto espaço de tempo. Em 1967,

logo depois da eleição do reverendo Boanerges Ribeiro, a

IPB expulsou alunos do Seminário Presbiteriano do Sul, em

Campinas, demitindo alguns professores. No ano seguinte,

1968, o Seminário Presbiteriano Independente de São Paulo

esteve fechado entre junho e início de agosto, cerca de

30% dos alunos foram expulsos. Uma longa crise ocorreu

no mesmo ano no Seminário Metodista de Rudge Ramos,

quando houve repercussão na imprensa, greve de fome,

expulsão de alunos, demissão de professores. Os conflitos

começaram quando os formandos de 1967 convidaram

para ser o Paraninfo deles o Arcebispo de Olinda e Recife,

  1. Helder Câmara. A reação por parte dos bispos e dos

conservadores foi muito forte. O Seminário ficou fechado

durante todo um semestre, reabrindo em fevereiro de 1969.

O bispo aposentado, Izaias Sucazas, agente do DOPS, não

teve dúvida de atribuir ao “vírus comunista” o que estava

acontecendo naquela escola de Teologia. Em seu diário o

bispo escreveu: “O que está passando na Faculdade de Teo-

logia é um opróbrio. Nem os moleques da rua procederiam

como eles estão procedendo. É legítimo caso de cadeia e

borracha em cima.” Sobre o fechamento da Faculdade ele

escreveu em uma carta (14/10/68): “O vírus repugnante

do comunismo se apoderou de alguns acadêmicos que se

serviram de canais para derramar dentro de nossa Faculda-

  1. Jamais pensei que tal coisa pudesse acontecer na mais

santa e nobre instituição da Igreja”. (cf. Diário de Sucazas,

6/5/68, apud Schmidt, 2014, p. 105, 126).

CNBB (Mainwaring, 2004,

p.102) declarou oficialmente:

“Atendendo à geral e angus-

tiosa expectativa do Povo

Brasileiro, que via a marcha

acelerada do comunismo

para a conquista do Poder,

as Forças Armadas acudiram

em tempo, e evitaram que

se consumasse a implantação

do regime bolchevista em

nossa Terra. (…) Logo após

o movimento vitorioso da

Revolução, verificou-se uma

sensação de alívio e de espe-

rança, sobretudo porque, em

face do clima de insegurança

e quase desespero em que se

encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a

Proteção Divina se fez sentir

de maneira sensível e insofis-

mável. (…).”

 

De modo semelhante os evan-

gélicos, por meio da Confederação

Evangélica do Brasil que reunia várias

denominações pertencentes ao grupo

dos evangélicos de missão, se mani-

festaram sobre o Golpe, enviando um

telegrama com os seguintes dizeres:

Exmo. Sr. Mal. Humberto de

Alencar Castelo Branco” – “Dig- níssimo Presidente da República, a

Confederação Evangélica do Brasil,

entidade de representação pública e

ação conjunta de Igrejas Evangélicas,

saúda Vossa Excelência, motivo:

posse no alto cargo de primeiro

magistrado da nação, formulando

votos a Deus de continua assistência

divina ao Governo de Vossa Exce-

lência, iluminando o caminho da

reconstrução cristã democrática em

nossa pátria, assegurando direitos do

homem, promovendo justiça social

e bem-estar ao povo, defendendo a

soberania nacional, cristianizando

o desenvolvimento da sociedade

brasileira, conduzindo a Pátria a alto

destino no concerto de nações livres,

sentido em que Vossa Excelência

terá constante apoio moral e leal

cooperação dos cristãos evangélicos.

(a) Rev.Amantino Adorno Vassão,

presidente; Rev. Rodolfo Anders,

secretaria-geral”.33

Mesmo assim o seu redator

registrou com respeito ao Golpe

Civil-Militar:

“Transformou-se completa-

mente a face da Nação. O alto

comando militar assumiu as

rédeas do país, deu-lhe certos

aspectos constitucionais (…)

revestiu de poderes especiais

e está fazendo a “limpeza”

para que os comunistas, agi-

tadores e peculatários fiquem de fora, e por muito tempo,

sem os direitos políticos que

lhes eram assegurados. (…).

Graças a Deus, estão sendo

banidos da Nação os agita-

dores extremados e, assim,

não haverá mais perigo de os

reacionários da direita, com

a finalidade de nos combate-

rem, insistirem na confusão

que gostam de fazer – todo

reformista, todo pregador da

justiça social, todo propug-

nador por um Brasil social e

economicamente equilibrado

é comunista.”

(Brasil Presbiteriano, março

de 1964, p.3).

 

elaborado por

um de seus Sínodos, e que recebeu

o título de Representação ao Sr.

Presidente da República, o qual foi

lido na tribuna da Câmara Federal

pelo veterano deputado, médico, e

presbítero no principal templo da

IPI em São Paulo, Lauro Monteiro

da Cruz.34

O Sínodo [Sínodo Oeste

da IPB], respeitosamente,

declara que dirige a Deus

orações em favor do mais

alto magistrado da República.

Que nessas orações, muito especialmente, o Sínodo

pede a Deus em favor da

saúde pessoal, preciosa de V.

Excia., a cobertura de ampla

inspiração divina, a fim de

que V. Excia. saiba dirigir

com sabedoria, serenidade

e firmeza, os destinos da na-

ção (…). Que deste modo, o

governo de V. Excia. passe à

História, como um governo

autenticamente democráti-

co, humildemente temente

a Deus (…). Que a espada

de Caxias, – fulgurante e

impávida -, reviva nas mãos

austeras de V. Excia., como

garantia e penhor da defesa

das instituições democráti-

cas da República (…). Que,

finalmente, Deus ilumine e

guarde, sempre, a V. Excia.,

para o bem da Pátria e para

inspiração e exemplo de seus

generosos filhos (…). Na

certeza irrebatível de que a

justiça exalta as Nações e de

que o Pecado é o opróbrio

dos Povos, – hipotecam, Se-

nhor Presidente, – respeitosa

e patrioticamente, enorme

soma de confiança em seu go-

verno.” (Brasil Presbiteriano,

maio de 1964, p.8)

Rev. Oscar Chaves,

líder conservador na IPB, pastor em

Santo André, manifestava no Brasil

Presbiteriano (maio de 1964, p. 7)

a sua posição que simbolizava a de

milhares de outros presbiterianos

brasileiros:

“Todos os verdadeiros cris-

tãos se regozijaram e estão

regozijando com os resul-

tados da gloriosa revolução

de março-abril: o expurgo

dos comunistas e seus sim-

patizantes, da administração

do nosso querido Brasil. A

Providência de Deus se fez

sentir na hora certa, quando

muitos fiéis, já ansiosos e

temerosos, pensavam que a

nação teria de ser flagelada

pela horda dos anarquistas e

materialistas – Deus agiu na

hora certa, repetimos usando

a coragem e o patriotismo das

Forças Armadas e de civis.”

Rodolfo

Hasse, em O Mensageiro Luterano

(junho de 1964, p.87) comentava

as acusações de comunismo feitas

a um sacerdote católico com as

seguintes palavras:

“Esta notícia revela infiltra-

ção do comunismo entre as

fileiras clericais no Brasil.

As investigações do atual

governo descobriram tramas

surpreendentes da ação ver-

melha no país. Em tempo

livrou o Brasil da desgraça

vermelha. Ainda bem que

não respeita nem mesmo as

portas das casas religiosas.

Oremos muito pelo nosso

país e pelas nossas autori-

dades para que Deus lhes

conceda clarividência e de-

terminação no seu propósito

de livrar a nossa pátria da

derrocada total” (os grifos

são nossos).

Os presbiterianos independen-

tes registraram em seu jornal ofi-

cial, O Estandarte (15/4/64, p.2)

a notícia intitulada “O País tem um

novo presidente”:

“O País foi atingido por um

movimento revolucionário de

grandes proporções e que tem

implicações muito profundas

(…) o antigo presidente da Repú- blica não estava se conduzindo

com austeridade, mas ameaçava

levar o País a rumos perigosos

(…) os grupos democráticos da

oposição, contando com o apoio

das Forças Armadas, provoca-

ram mudanças radicais (…)

posteriormente o Alto Coman-

do Revolucionário, assumindo a

liderança definitiva da situação,

deu a conhecer o Ato Institu-

cional [AI-1] sendo certo que

sua vigência será justificada até

que se eliminem as causas que

motivaram a revolução, isto é,

o Comunismo e a corrupção.

Temos justos motivos para

aplaudir a ação revolucionária,

acrescentando que veio em

muito boa hora (…) daí repre-

sentar a cassação de mandatos e

direitos políticos de comunistas

e corruptos medida saneadora

de grande alcance (…) a luta

contra o Comunismo e contra

a corrupção é imperiosa e deve

realizar-se implacavelmente (…)

nesta altura podemos afirmar

que há governo nesta terra. Te-

mos um homem de autoridade e

austeridade para dirigir o leme

do grande barco. Confiemos em

sua ação administrativa e em

seus propósitos moralizadores.

Sobretudo oremos: Deus, guar- de o Presidente. Deus, salve a

pátria” (Os grifos são nossos).

 

 

 

ÍNICIO

Os presbiterianos fundamenta-

listas, para marcar a vitória contra

o comunismo de acordo com

Marcio Ananias F. Vilela (2013,

p.117), convocaram todos os

evangélicos fundamentalistas do

Recife (presbiterianos, pentecos-

tais, batistas, congregacionais, e

demais evangélicos de um modo

geral), para uma “concentração de

Ação de Graças, que se realizará

no templo da Igreja Presbiteriana

Fundamentalista do Recife na

próxima terça-feira, 7 de abril,

às 20 horas”. Essa notícia foi, se-

gundo a mesma fonte, divulgada

pelo jornal Diário de Pernambu-

co, (7/4/64. 2º Caderno, p.4).

Vilela (2013, p.131) e reproduz

notícias publicadas no Boletim

da IPB Boa Vista “sugerindo alto

grau de aceitação por parte da

instituição” do clima de euforia

que ganhou as ruas do País e da

cidade em decorrência do Golpe.

Luciane Silva de Almeida (2010,

p.70) também nos ajuda no en-

tendimento daquele período ao

apontar para a participação de um

“batalhão evangélico” que desfilou

na Marcha da Família com Deus

pela Liberdade, em 15/4/64, em

Salvador, na comemoração da vi-

tória obtida pelos militares.

Considerações finais

É muito conhecida a lenda gre-

ga registrada por Homero sobre o

“cântico das sereias”, já mencionada

que somente perdeu a sua eficácia

sobre os navegadores quando Ulis-

ses colocou cera nos ouvidos dos

tripulantes de seu barco, e ele mes-

mo foi amarrado no mastro de uma

forma que não pudesse se lançar

nos braços daqueles seres híbridos

– mulher e peixe – as sereias. O que

havia de atrativo naquele canto que

os ouvidos dos experimentados ma-

rinheiros não conseguiam resistir?

Usamos essa lenda como metá-

fora para propor a seguinte questão:

que poder de sedução havia no dis-

curso e retórica dos militares e civis

– cânticos ideológicos de “sereias

fardadas” ou não – que derrubaram

o governo constitucional brasileiro

em 1964? Que força emanava deles

que despertou a sedução de grande

parte do povo brasileiro, inclusive

dos evangélicos, durante o tempo

de preparo do golpe, de consolida-

ção da ditadura na passagem dos

anos 1960 para o início dos anos

1970? Por que um significativo

setor da Igreja Católica ouviu o

mesmo cântico no início do período ditatorial, mas, nos anos seguintes,

conseguiu abandonar o secular ape-

go às autoridades políticas passando

para a oposição?

Que desafios e oportunidades

o novo regime autoritário oferecia

para tais evangélicos? Humberto

Schuffeneger (2001, p.5, 7), ana-

lisando o caso da ditadura chilena,

elaborou bem a questão ao pergun-

tar: “Que papel joga o religioso na

implantação de projetos políticos

de tipo autoritário”? O que leva

as “ideologias políticas” a “apro-

priar-se de significações religiosas

metassociais” em seu processo de

obtenção dos dominados de uma

submissão que vá além da simples

obediência passiva? Ora, parece-nos

que o desafio da ditadura brasileira

foi como a de todas as demais, a de

obter uma submissão permanente

dos dominados, fazendo com que

a obediência superasse a simples

dimensão racional para se arraigar

no íntimo das pessoas, e de uma

forma emocional, mexer com os va-

lores que promovam um consenso

duradouro.

As reflexões aqui expostas ter-

minam antes do início do mandato

do general Médici, que deu conti-

nuidade a consolidação do regime

militar a partir da edição do Ato

Institucional nº 5 (13/12/68), considerado pelos historiadores

como um “golpe dentro do golpe”.

Em agosto de 1969 se deu o afas-

tamento do general Costa e Silva,

quando o vice-presidente, o civil

Pedro Aleixo, foi impedido de assu-

mir e os três comandantes militares

assumiram o poder até a posse de

Médici. Após o AI-5 a linha dura

dos militares assumiu para valer o

controle do Estado, sendo então

um regime de exceção exacerbado,

se estabelecendo de uma maneira

aberta, tendo por fundamento

uma ideologia nascida do ventre

da Guerra Fria, e transformada em

instrumento jurídico com o nome

de “Lei de Segurança Nacional”.

Merece uma especial atenção

o governo Médici, justamente por

ter sido um período emblemático,

e que assinalou o esmagamento de

toda oposição contra a ditadura, em

especial e com mais força, a opo-

sição armada. É bom, no entanto,

registrar que durante todos os anos

da ditadura militar brasileira foram

reprimidos, junto com os militantes

de diversos movimentos armados e

da esquerda comunista, estudantes,

lideranças sindicais, agentes religio-

sos católicos, judeus e evangélicos.

Todos eles, indistintamente, eram

tratados como “inimigos”, subme-

tidos à prisão e a tortura, quando

 

A dependência ideológica entre os presbiterianos

e a ditadura militar vem desde os primeiros

momentos da conspiração e do Golpe.

Isso aparece de uma forma muito clara

num documento publicado no jornal Brasil

Presbiteriano (8/5/64, p.13), elaborado por

um de seus Sínodos, e que recebeu o título de

Representação ao Sr. Presidente da República,

o qual foi lido na tribuna da Câmara Federal

pelo veterano deputado, médico, e presbítero

no principal templo da IPI em São Paulo, Lauro

Monteiro da Cruz

então, centenas ou milhares deles

morreram em consequência dos

maus tratos ou foram assassinados

depois de torturados durante sema-

nas e meses.

Consideramos também serem

de grande importância para o estu-

do desse curto período ditatorial,

embora não caibam nos limites

deste artigo, os acontecimentos

relacionados aos dois governos

posteriores ao de Médici, isto é, os

governos de militares entre 1974

a 1985. Esses dois governos foram

os de Ernesto Geisel (1907-1996), cuja importância está no desenca-

deamento da abertura “lenta”, “gra-

dual” e “progressiva”, e a revogação

do Ato Institucional n. 5.

O segundo citado foi o governo

de João Figueiredo (1918-1999),

por ter ele encaminhado para apro-

vação do Congresso a Lei da Anistia

(1979). Essa lei, apesar de todos os

defeitos apontados por juristas e

pelas cortes internacionais de jus-

tiça; ou pela Comissão Nacional da

Verdade e suas congêneres locais;

ou por outras entidades de defesa

dos Direitos Humanos; ainda assim

 

Durante todos os anos da ditadura militar

brasileira foram reprimidos, junto com os

militantes de diversos movimentos armados e

da esquerda comunista, estudantes, lideranças

sindicais, agentes religiosos católicos, judeus e

evangélicos. Todos eles, indistintamente, eram

tratados como “inimigos”, submetidos à prisão e a

tortura, quando então, centenas ou milhares deles

morreram em consequência dos maus tratos ou

foram assassinados depois de torturados durante

semanas e meses.

foi um divisor de águas, pois mar-

cou a decadência final e irreversível

do regime militar, que por razões

estratégicas precisou resguardar

milhares de seus quadros que es-

tiveram de uma forma inegável,

envolvidos em casos graves de

violações dos direitos humanos. 35

Não se pode generalizar, mas a

maioria dos evangélicos de missão

ofereceu à “Pátria”, isto é, ao go-

verno militar, algo mais do que suas

orações e preces: eles se ofereceram

de corpo e alma para concretizar as

metas estabelecidas, foram trabalha-

dores exemplares, não participando de greves; estudantes empenhados

em levar adiante seus estudos sem

se politizarem na Universidade;

militares obedientes aos superiores

hierárquicos, e, quando possível, aju-

dando o Estado a manter a ordem,

dentro da ideia de que o “preço da

liberdade é a eterna vigilância”.

Nesse aspecto não faltou a dela-

ção de elementos suspeitos, mesmo

que as vezes fossem seus irmãos na

fé. Daniel Schmidt (2014) mostra

como esse esquema de delação

prosperou na Igreja Metodista,

quando inclusive um bispo delatou

jovens de sua própria congregação,

entre eles Anivaldo Padilha, que

foi preso e torturado com selvage-

ria, precisando depois seguir para

o exílio. Nesse caso a expressão

“irmão delata irmão” se tornou

aplicável. Mas, há outros casos a

serem estudados.

 

 

35 ALei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28/8/79) foi concedida

pelos militares após uma intensa campanha que começou

com o Movimento Feminino da Anistia (1970) e passou

pela reunião de vários movimentos que lutavam para o

mesmo fim, em 1978, com o Comitê Brasileiro pela Anistia.

Somente uma pequena parcela de evangélicos, entre eles

os articulados ao redor do movimento ecumênico (Centro

Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI),

ousou participar dessa luta que visava mostrar como era

desejo da sociedade brasileira o fim da ditadura militar.

 

 

UA1 –

 

EVANGÉLICOS E A POLÍTICA NO BRASIL

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 1

1. Religião e política no Brasil

OBJETIVOS

1 Examinar as relações entre religião e política no Brasil nos períodos

colonial e imperial

2 Acompanhar a presença protestante no período colonial e imperial e

suas relações com o poder político

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olhamos, nessa unidade de aprendizagem e, neste módulo de modo geral, para o modo

como se organizaram no Brasil as relações entre politica e religião. Muitas vezes cristãos

torcem o nariz para o envolvimento com a política, entretanto, igrejas e seus membros ocu-

pam determinado território nacional, possuem obrigações políticas e partilham das ideais e

preferências políticas que circulam no seu tempo. Nessa primeira etapa a presença protes-

tante ainda é pequena e o catolicismo está profundamenta entranhado no Estado.

Religião e política no Brasil Colônia (1500-1822)

Nesse período o Estado, poder político, e a religião, Igreja Católica atuam lado a lado.

São as duas instituições básicas da organização da colonização do Brasil. É até difícil dis-

tinguir uma da outra. Lembremos que a discussão sobre a separação entre Igreja e Estado

ocorrerá somente nos séculos XVIII e XIX. A religião do Estado era a católica e os súditos,

lembremos que não havia também o conceito de cidadania, deveriam ser católicos.

Estado e Igreja tinham papéis bem definidos no processo de colonização do Brasil. Ao

primeiro coube a tarefa fundamental de garantir o domínio da Coroa portuguesa sobre a

Colônia e organizar nesta uma estrutura administrativa para gerenciar o processo de povoa-

mento. Outra responsabilidade dos representantes no Estado no Brasil Colônia era garantir

o relacionamento entre a Metrópole e o novo território. No cumprimento dessa tarefa o

Estado tinha seus recursos convencionais: poder de cobrar impostos e de usar as armas.

A Igreja Católica tinha um lugar estratégico no processo de colonização. Cabia a ela a

educação das pessoas, o chamado “controle das almas” no dia a dia. O clero era essencial para inculcar nas pessoas a obediência ao poder do Estado. O poder da Igreja era muito

grande uma vez que ela falava diretamente ao povo e o acompanhava em todas as etapas da

vida: nascimento, batismo, casamento e morte. Lembremos que a expectativa de vida nesse

período era muito baixa e não havia secularização, portanto, o sentido da vida era proveniente

sobretudo do discurso religioso católico. A própria “extrema-unção” conferia uma poder enor-

me à Igreja pois ela era a guardiã da passagem para o céu. A Igreja Católica controlava os

cemitérios, ou seja, não ser católico significa não ter um lugar para ser sepultado.

As combinações entre Igreja e Estado tiveram diferentes formas na Europa. No caso da

experiência portuguesa foi configurado o que se chamou de Padroado Real. Tratava-se de

um subordinação da Igreja ao Estado português. Obviamente isso passava por um acordo

com a Santa Sé em Roma. O rei de Portugal tinha o direito de recolher o dízimo devido pelos

súditos à Igreja, criar dioceses e nomear bispos. Em troca o rei de Portugal se comprometia

em proteger e promover a organização da Igreja Católica nas suas colônias.

As responsabilidades que a Coroa tinha acabavam gerando uma subordinação admi-

nistrativa da Igreja, por exemplo, cabia ao Estado remunerar os padres, na prática eles eram

funcionários públicos. Cabia ao Estado construir templos e zelar por eles, na prática eram

edifícios estatais. Isso empurrava para dentro do governo português a criação de depar-

tamentos destinados exclusivamente à administração eclesiástica no período colonial. A

Mesa da Consciência e Ordens foi o organismo criado para cuidar dos assuntos da Igreja.

Um ruído no sistema do Padroado Real foi o lugar ocupado pelas ordens religiosas,

como a Companhia de Jesus. Essas ordens sempre foram muito disciplinadas e em muitos

casos tinham recursos próprios o que as tornava menos suscetíveis aos controles exerci-

dos pelo Estado. Além dos jesuítas outras ordens poderosas no período colonial foram:

franciscanos, mercedários, beneditinos e carmelitas. Essas ordens divergiram do Estado

em alguns momentos, como por exemplo, no caso da política indígena. Quando o Estado

pagava o salário do padre de uma determinada cidade, era fácil para exercer o controle so-

bre ele, o caso era diferente no caso das ordens, muitas delas detentoras de fazendas, es-

colas e hospitais, portanto, não dependiam financeiramente do Estado e sentiam-se livres

para defender seus próprios interesses.

Gilberto Freyre (1987) observou que no Brasil o catolicismo no período colonial será

uma religião de família e não de catedral. Na prática muitas veze o clero secular ( o padre

do povoado) era mantido financeiramente pelos senhores de engenho, formando um cato-

licismo patriarcal e rural do que propriamente estatal e metropolitano.

O historiador Boris Fausto (1999) registra que a famosa Inconfidência Mineira contou

com a participação de padres e em todos os movimentos de rebelião contra a Coroa padres apareciam entre os apoiadores. A hipótese para adesão de alguns padres aos movimentos

de contestação está na maior proximidade deles com os sofrimentos da população e por

serem, a maioria deles, provenientes dos extratos mais pobres da sociedade.

 

CURIOSIDADE

OS PRIMEIROS PROTESTANTES QUE PISARAM

NO SOLO BRASILEIRO

Entre a primeira missa católica e a primeira celebração eucarística

reformada houve um espaço de apenas 57 anos.

Pouco mais de meio século depois da descoberta do Brasil, 38

anos depois da proclamação da Reforma Protestante e ape-

nas 6 anos depois da chegada dos jesuítas à Bahia, aportou no Brasil uma carava-

na ecumênica procedente da França. Eram nobres, artesãos, soldados, criminosos e

agricultores, alguns católicos e outros protestantes, sob o comando do navegador e

aventureiro Nicolau Durand de Villegaignon, de 45 anos, ora católico ora protestante.

Os três navios e os 600 tripulantes e passageiros haviam saído de Hâvre-de-Grâce

no dia 22 de julho de 1555 e chegaram à Baía de Guanabara menos de quatro meses

depois, em 10 de novembro.

o dia 7 de março de 1557, um ano e três meses depois da primeira expedição, chegou

a segunda leva de franceses: cerca de 300 colonos, católicos e sem religião em sua

maioria. Com eles vieram quatorze huguenotes (nome que se dá aos reformados de

língua francesa) de Genebra, enviados por João Calvino, a pedido do próprio Villegaig-

non. Entre estes estavam o doutor em teologia Pierre Richier, de 50 anos, o pastor

Guillaume Chartier, o historiador Jean de Léry e dez artesãos.

No dia 10 realizou-se o primeiro culto reformado debaixo da linha do Equador. Richier

pregou em francês sobre o verso 4 do Salmo 27: “Je demande à l’Eternel et une chose,

que je désire ardemment: je voudrais habiter toute ma vie dans la maison de l’Eternel,

pour contempler la magnificence de l’Eternel et pour admirer son temple”. A cerimônia

foi realizada no Forte Coligny, na ilha de Serijipe, hoje Villegaignon. Onze dias depois,

21 de março, foi organizada a primeira igreja evangélica do Brasil e da América do

Sul. Entre os que participaram da Santa Ceia à maneira calvinista estava Villegaignon.

Isto quer dizer que entre a primeira missa católica e a primeira celebração eucarística

reformada houve um espaço de apenas 57 anos.

O namoro do vice-almirante com os huguenotes durou muito pouco tempo. Em outu-

bro de 1557, sete meses depois de ter tomado a Ceia do Senhor em duas espécies (pão e vinho), Villegaignon os expulsou da ilha para um local chamado La Briqueterie,

hoje Olaria, no continente. Menos de três meses depois, em janeiro de 1558, Richier e

outros genebrinos foram obrigados a voltar para a Europa e lá contaram o que havia

acontecido e chamaram Villegaignon de “o Caim da América”. Nesse mesmo ano, no

dia 9 de fevereiro, o homem forte da França Antártica mandou estrangular e lançar ao

mar os quatro signatários de uma confissão de fé reformada: Jean de Bourdel, Mat-

thieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon. Eles faziam parte da delegação de Gene-

bra e eram leigos. Por ser o único alfaiate dos franceses e por ter voltado atrás, André

la Fon, na última hora, foi poupado. Os outros três tornaram-se os primeiros mártires

evangélicos do continente. Para não serem mortos, outros huguenotes fugiram para o

interior, inclusive Jacques de Balleur, que foi parar em São Vicente, onde foi preso e le-

vado para a Bahia. Em 1567, foi enforcado no Rio de Janeiro por ordem de Mem de Sá

e com a assistência de José de Anchieta, de 33 anos. ( o dia 7 de março de 1557, um

ano e três meses depois da primeira expedição, chegou a segunda leva de franceses:

cerca de 300 colonos, católicos e sem religião em sua maioria. Com eles vieram qua-

torze huguenotes (nome que se dá aos reformados de língua francesa) de Genebra,

enviados por João Calvino, a pedido do próprio Villegaignon. Entre estes estavam o

doutor em teologia Pierre Richier, de 50 anos, o pastor Guillaume Chartier, o historiador

Jean de Léry e dez artesãos.

No dia 10 realizou-se o primeiro culto reformado debaixo da linha do Equador. Richier

pregou em francês sobre o verso 4 do Salmo 27: “Je demande à l’Eternel et une chose,

que je désire ardemment: je voudrais habiter toute ma vie dans la maison de l’Eternel,

pour contempler la magnificence de l’Eternel et pour admirer son temple”. A cerimônia

foi realizada no Forte Coligny, na ilha de Serijipe, hoje Villegaignon. Onze dias depois,

21 de março, foi organizada a primeira igreja evangélica do Brasil e da América do

Sul. Entre os que participaram da Santa Ceia à maneira calvinista estava Villegaignon.

Isto quer dizer que entre a primeira missa católica e a primeira celebração eucarística

reformada houve um espaço de apenas 57 anos.

O namoro do vice-almirante com os huguenotes durou muito pouco tempo. Em outu-

bro de 1557, sete meses depois de ter tomado a Ceia do Senhor em duas espécies

(pão e vinho), Villegaignon os expulsou da ilha para um local chamado La Briqueterie,

hoje Olaria, no continente. Menos de três meses depois, em janeiro de 1558, Richier e

outros genebrinos foram obrigados a voltar para a Europa e lá contaram o que havia

acontecido e chamaram Villegaignon de “o Caim da América”. Nesse mesmo ano, no

dia 9 de fevereiro, o homem forte da França Antártica mandou estrangular e lançar ao mar os quatro signatários de uma confissão de fé reformada: Jean de Bourdel, Mat-

thieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon. Eles faziam parte da delegação de Gene-

bra e eram leigos. Por ser o único alfaiate dos franceses e por ter voltado atrás, André

la Fon, na última hora, foi poupado. Os outros três tornaram-se os primeiros mártires

evangélicos do continente. Para não serem mortos, outros huguenotes fugiram para

o interior, inclusive Jacques de Balleur, que foi parar em São Vicente, onde foi preso e

levado para a Bahia. Em 1567, foi enforcado no Rio de Janeiro por ordem de Mem de

Sá e com a assistência de José de Anchieta, de 33 anos.

(https://ultimato.com.br/sites/blogdaultimato/2018/06/15/os-calvinistas-estao-chegando-o-

-primeiro-culto-protestante-na-baia-de-guanabara/)

 

O Império e as mudanças religiosas (1822-1889)

As mudanças religiosas começaram um pouco antes da da Independência. O catoli-

cismo romano ainda era a religião oficial, mas a assinatura dos Tratados de Comércio e

Navegação e Aliança e Amizade (1810) com a Inglaterra possibilitou às religiões acatólicas

estabelecerem seus serviços de culto em solo brasileiro. Com tais tratados são iniciadas as

pressões por parte da Inglaterra para a extinção do tráfico negreiro para o Brasil. Em 1822

é proclamada a Independência do Brasil e a partir de 1824 começam a chegar as primeiras

levas de imigrantes europeus e com eles as primeiras comunidades protestantes nascerão.

O Primeiro Reinado (1822-1831) pouco avançou em termos concretos na direção de

um projeto de modernização do Brasil e no início do pluralismo religioso. O período signi-

ficativo para a modernização do Brasil começará a desenvolver-se no Segundo Reinado

(1840-1889). Sobre o significado desse período Boris Fausto afirma:

 

1850 não assinalou no Brasil apenas a metade do século. Foi o ano

de várias medidas que tentavam mudar a fisionomia do país, encami-

nhando-o para o que então se considerava modernidade. Extinguiu-se

o tráfico de escravos, promulgou-se a Lei de Terras, centralizou-se a

Guarda Nacional e foi aprovado o primeiro Código Comercial. Este tra-

zia inovações e ao mesmo tempo integrava os textos dispersos que

vinham do período colonial. Entre outros pontos, definiu os tipos de

companhias que poderiam ser organizadas no país e regulou suas

operações. Assim como ocorreu com a Lei de Terras, tinha como pon-

to de referência a extinção do tráfico. A liberação de capitais resul-

tante do fim da importação de escravos deu origem a uma intensa

atividade de negócios e de especulação. Surgiram bancos, indústrias,

empresas de navegação e vapor etc. (1999, p.197).

É justamente no período do Segundo Império que os missionários norte-americanos

começam a circular pelo território nacional. Dentre os primeiros estão os missionários

metodistas Daniel Parrish Kidder e Justin Spaulding. O primeiro esteve no Brasil de 1837 a

1840 e o segundo de 1838 a 1842. Os missionários presbiterianos James Cooley Fletcher,

de 1851 a 1865, Ashbel Green Simonton, de 1859 até seu falecimento em 1867, Alexander

Latimer Blackford, de 1860 a 1890, George Chamberlain, de 1862 a 1902 e Francis Joseph

Christopher Schneider (1860-1884). Enviados pela Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados

Unidos, atuaram no Brasil George Nash Morton (1869-1886) Edward Lane (1869-1892). Nes-

se período também se instalou no Brasil o médico-missionário Robert Reid Kalley (1855-

1876). Ele era escocês e fugia de perseguições movidas contra ele na Ilha da Madeira.

No campo da educação, esse período registrou a presença de algumas mulheres. Do lado

presbiteriano são as seguintes: Mary Parker Dascomb e Elmira Kuhl. A primeira chegou ao

Brasil em 1869 com a missão de dirigir a recém-criada Escola Americana, na cidade de São

Paulo, e a segunda em 1874, indo trabalhar em Rio Claro, transferindo-se, em 1878, para São

Paulo para auxiliar Mary P. Dascomb. Um segundo grupo de educadoras foi enviado pela

Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos para o trabalho com o Colégio Internacional

de Campinas. Eram Arianna Herderson, em 1872, Mary Videau Kirk, em 1874 e Charlotte

Kemper, em 1882

Desse período de circulação de missionários e o estabelecimento das primeiras igrejas

missionárias, o caso mais interessante de estratégia de aproximação com o poder político

é o do Rev. James Cooley Fletcher. Ele foi enviado ao Brasil, em 1851, como capelão dos

marinheiros e pastor dos norte-americanos residentes no país. Seu envio foi uma parceria

entre duas sociedades: a União Cristã Americana e Estrangeira e a Sociedade de Amigos

dos Marítimos. Em 1854, por ocasião do nascimento de seu segundo filho e adoecimento

de sua mulher, retornou aos Estados Unidos. Ainda em 1854 regressou ao Brasil como re-

presentante da Sociedade Bíblica Americana. Daí em diante, até meados da década seguin-

te, Fletcher empreenderá várias viagens ao Brasil.

As condições do trabalho de Fletcher no Brasil foram negociadas com o Governo Bra-

sileiro pelo ministro dos Estados Unidos Robert Cumming Schenk. Fletcher veio para ser

capelão dos marinheiros, mas recebeu o título de “Adido” da Legação Americana. Isto, além

de garantir-lhe proteção oficial, haveria de abrir-lhe as portas de acesso à elite imperial, bem

como as próprias portas do Palácio.

Fletcher circulou com grande desenvoltura junto à elite imperial. Certamente sua condi-

ção de bem-nascido e de viajante ofereciam-lhe o traquejo social para tal tarefa. Mas quais

eram seus ideais quanto ao Brasil? Fletcher explicitou seu plano de ação nos seguintes

termos: converter o Brasil ao protestantismo e ao “progresso” (Vieira, 1980, p. 63).

Seus primeiros contatos com o Imperador Dom Pedro II haviam começado ainda em

1852, quando no exercício do cargo de Secretário da Legação Americana. A razão da visita

era o agradecimento por ter o Imperador aceitado o convite para visitar o navio mercante

City of Pittsburg que se encontrava atracado no porto do Rio de Janeiro (Kidder; Fletcher,

1941, p. 273). Na segunda etapa elaborou plano mais ousado, através do qual viria a estrei-

tar laços com o Imperador. Fletcher sabia do interesse de Dom Pedro II pela modernização

do Brasil e via os Estados Unidos como modelo industrial a ser seguido. Assim, ele orga-

nizou uma exposição com produtos industriais trazidos dos Estados Unidos. O Imperador

visitou a exposição e manifestou sua aprovação ao esforço do Rev. Fletcher em ajudar o

Brasil no projeto de modernização.

Após a Exposição, a visita para a entrega de objetos da exposição ao casal Imperial, foi

descrita minuciosamente por Fletcher em “O Brazil e os Brasileiros”.

 

Poucos dias após o encerramento da Exposição, levei os muitos objetos

destinados à família Imperial ao grande palacete de Márquez de Abran-

tes, situado num dos mais belos recantos do Rio, na praia de Botafogo,

que tanto lembrava o golfo napolitano. S. Majestade estava passando,

aí, algumas semanas, para tomar banhos de mar. Passei pela guarda do

portão e, quando subi as escadas, fui visto pelo Imperador, que veio ao

meu encontro, na porta de entrada, agradecendo-me cordialmente por

tudo o que havia feito. Pedi-lhe que me concedesse alguns momentos

até que chegassem os caixotes, pois tinha que lhe dar algumas explica-

ções sobre a fechadura secreta dos excelentes baús, mandados para S.

Majestade por Peddie & Morrison de Newark, N. J. Com a sua permis-

são, penetrei nos belos jardins, onde havia as mais ricas e belas flores

do país, em perpetua florescência. O ambiente estava verdadeiramente

saturado de doces perfumes. Havia aí fontes e estátuas, muitos pás-

saros de brilhantes plumagens, e, tudo na natureza e na arte, feito para

alegrar os que vivem para o belo. Olhando para uma cena tão encanta-

dora, tive um único desejo, de que esta terra, para quem Deus tanto fez

no ponto de vista da natureza, pudesse possuir as vantagens mentais

e morais que pertencem aos mais ríspidos povos do norte, pela sua

educação e religião” (Idem, p. 283).

 

James C. Fletcher termina a descrição da entrega dos presentes ao Imperador dizendo

que deixou o Palacete com a convicção de que, pelo menos naquilo que dizia respeito ao

Chefe do Governo Brasileiro, sua missão obtivera completo sucesso. Noutro momento, ao

avaliar seus esforços para a realização da Exposição e para a aproximação entre os dois

países, afirma que “havia nisso mais altos objetivos em vista do que seria uma mera difusão

de conhecimentos, e de uma intensificação do comércio”. (Ibid., p. 277)

Um ponto a ser assinalado nas relações entre religião e política nesse período história

do Brasil é que a presença protestante era importante para a elite brasileira e porque não

INTERDISCIPLINAR – CIÊNCIAS SOCIAIS

139

para o próprio Imperador D. Pedro II, pois era em si o sinal da modernização do país, sinal

de liberdade e circulação de ideias. A lei eleitoral de 1882 que estendia o direito ao voto aos

não católicos é um dos sinais desse desejo de modernização. Entretanto, se olharmos para

as conversões dos filhos da elite que buscaram como o Mackenzie veremos que interessa-

va para eles interessava muito mais a presença protestante do que a mensagem religiosa

do protestantismo. A mensagem moderna, a intelectualidade brasileira recebera do ilumi-

nismo francês. Essa ambiguidade das elites frente ao tipo de modernidade proposta pelo

protestantismo pode ser ilustrada pela seguinte passagem registrada por Themudo Lessa:

 

No anno de 1878, em uma excursão a S. Paulo, recebeu a Escola Ame-

ricana a visita honrosa de Sua Majestade o Imperador, que foi aliás um

benemérito da instrução. Demorou-se duas horas no estabelecimen-

to, “inspeccionando as aulas de primeiras e segundas letras e exami-

nando as classes à sua vontade”. Ao deixar a sala dirigida pela hábil

professora D. Adelaide Molina, perguntou-lhe: “Que doutrina se ensina

aqui?” “O Evangelho só” – respondeu-lhe D. Adelaide.

Em consequencia disso, um dos diretores da Escola, indo depois à

Corte, offertou ao Imperador exemplares dos livros da doutrina ensi-

nada na Escola, observando-lhe que aqueles compendios iam à casa

dos paes juntamente com os outros livros, de sorte que ficavam elles

habilitados a inspeccionar o ensino religioso ministrado a seus filhos.

Parece que D. Pedro II não ficou satisfeito, respondendo: “Já sei, já

sei, a doutrina é protestante”. A uma explicação de que taes doutrinas

estavam de acordo com a Biblia, retorquiu que nem a Biblia devia se

achar nas escolas e que o ensino religioso deveria ser ministrado no

lar e na egreja. Falou ainda da boa impressão que tivera da escola em

tudo o que vira, acrescentando: “Se eliminarem o elemento do ensino

religioso, podem contar com a nossa protecção”. O director respon-

deu com firmeza: “A Bíblia tem estado aberta na Escola desde o pri-

meiro dia de sua abertura e, quando fechar-se, fechar-se-ão as portas

da Escola Americana”.

O Imperador deu por encerrada a audiencia com as palavras: “Cada

um tem direito à sua opinião” (Lessa, 1938, p. 151-152).

 

Se não é possível verificar a historicidade do diálogo acima, certamente não se anula

sua utilidade no que diz respeito à percepção que os protestantes formaram da atitude am-

bígua da elite frente à sua proposta de modernidade. O Imperador que desfilou pela expo-

sição promovida por James C. Fletcher encantado com as mercadorias norte-americanas

é o mesmo que parece irritar-se com o biblicismo da educação protestante. Não sintetiza a

atitude do Imperador o sentimento de toda a intelectualidade brasileira? Sente-se fascinada

pelo progresso norte-americano e paralelamente se deixa tomar por certa repulsa diante

da estreiteza intelectual da cultura protestante. Na explicação do paradoxo da cultura pro-

testante reside, a nosso ver, a grandeza da obra Weberiana ao enfatizar que o racionalis- mo não segue caminhos paralelos. Aqui no gigante do Sul chegou-se sempre primeiro às

racionalizações teóricas, lá pelos lados do Norte, chegou-se primeiro à racionalização da

vida prática. Disso, resultou o grande dilema protestante no século XIX, vinham de um país

extremamente adiantado no comércio e na indústria, mas pareciam por demais religiosos

para uma elite que se acostumou a ser sempre muito mais adiantada na teoria do que na

prática. Os produtos dos países protestantes interessavam muito mais do que o estilo de

vida protestante. Dois argutos observadores da relação entre protestantismo e cultura no

Brasil apontaram nessa direção:

 

O Evangelho como ordinariamente tem sido apresentado no Brasil, bem

como através de toda América Latina, geralmente não é atrativo para

as exigentes classes intelectuais. A principal razão para isto é o tipo

de cultura francesa que tem se arraigado na mentalidade brasileira, e

a propaganda evangélica tem apresentado a mensagem do Evangelho

nos moldes da cultura anglo-saxônica (Braga; Grubb, 1932, p. 113)

 

 

Neste ponto já nos aproximamos das influências que iriam desaguar na Proclamação

da República e começaram a modificar a relação entre política e religião no Brasil.

 

UA2 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 2

2. República, ditadura militar e os evangélicos no Brasil

OBJETIVOS

1 Analisar as mudanças que a Proclamação da República trouxe para

as relações entre política e religião

2 Examinar o crescimento das igrejas evangélicas e as mudanças na

relação delas com a política ao longo da República.

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Embora nossa unidade de aprendizagem comece com a Proclamação da República,

em 1889, os fatos que se desenvolvem a partir dela são mais próximos dos nossos dias. O

modelo de separação entre Igreja e Estado inaugurado pela República é o que permanece

até os nossos dias. As igrejas, denominações, que conhecemos estavam iniciando suas

atividades e o pentecostalismo seria implantado no Brasil nas primeiras décadas do século

XX, portanto, quando a República ainda engatinhava. O século XX é cheio de mudanças po-

líticas. Embora a República tenha sido mantida, a alternância entre períodos democráticos

e períodos autoritários foram constantes e, tais mudanças, repercutiram nas relações entre

religião e política. Certamente olhar para o período republicano que nos precedeu auxiliará

na compreensão das relações entre política e religião em nossos dias.

Bons estudos!

As mudanças trazidas pela República

A relação da Igreja Católica com o Estado brasileiro não havia conseguido conter in-

fluência das ideias secularizantes oriundas do positivismo francês e que ganharam a sim-

patia dos círculos militares. A maçonaria era outro espaço social no qual circulavam as

ideias positivistas que se opunham à influência católica sobre o Estado. A queda da mo-

narquia e a Proclamação da República, em 1889, assinalaram uma nova etapa na relação

Estado e religião no Brasil. A Constituição de 1891, revisada por Rui Barbosa e inspirada

na Constituição dos Estados Unidos, consagrava a separação entre Estado e religião e a

Igreja Católica Apostólica Romana deixou de ser a religião oficial do Brasil. Observe-se que

até então, cabia a Igreja Católica emitir certidões de nascimento, casamento e falecimento.

Somente em 1893 o Estado assumiu seu papel na emissão desses documentos. A adminis-

tração dos cemitérios foi transferida para os municípios.

 

SEPARAÇÃO IGREJA E ESTADO NA CONSTITUIÇÃO DE 1891

“Declaração de Direitos” Art. 72…

o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bem, observadas as

disposições do direito comum.

dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados.

privado de seus direitos civis e políticos nem se eximir de cumprimento de qualquer

dever cívico.

A Igreja Luterana, do protestantismo de imigração, e as igrejas do protestantismo histó-

rico, chamadas de igrejas missionárias já estavam estabelecidas no Brasil quando se deu a

Proclamação da República. Congregacionais, presbiterianos, medodistas e batistas haviam

criado uma rede de igrejas e de escolas pelo Brasil. Embora as igrejas estivessem mais

livres na República para seguirem com a evangelização, um dos pilares da estratégia de in-

serção na sociedade brasileira e apresentação da nova mensagem religiosa acabou sendo

abalada por ações do governo republicano. Trata-se da entrada do Governo no campo da

educação, até então, monopolizado pelas escolas confessionais, católica e protestantes.

O Decreto 510, do Governo Provisório da República, dizia, em seu artigo 62, item 5o, que “o

ensino será leigo e livre em todos os graus e gratuito no primário”. Embora as iniciativas nos

primeiros anos da República tivessem sido poucas e tímidas, aos poucos, a mão governa-

mental chegava à educação. Eis algumas iniciativas nas primeiras décadas do governo re-

publicano: criação do Instituto Adolf Lutz (1893), da Escola Politécnica (1893), do Instituto

Butantã, sob a direção de Vital Brazil, da Escola de Manguinhos (1901) dirigida por Oswaldo

Cruz, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1901) em Piracicaba.

A missionária metodista Martha Watts, fundadora de colégios evangélicos pelo Bra-

sil, depois da entrada do Governo no campo educacional registrava as baixas de alunos

do colégio dirigido por ela em Belo Horizonte e passava a se manifestar contrariamente a

abertura de novas escolas protestantes. Registre-se, entretanto, o fiasco da educação nos

primeiros 30 anos de existência da República, pois em 1890 o número de analfabetos na população era de 67,2%, em 1920 esse número era de 75%.

A presença protestante na República se amplia, em 1910, com a chegada da Assem-

bleia de Deus e a Congregação Cristã, as quais no decorrer do século XX seriam conhecidas

como Igrejas Pentecostais e se tornaram as maiores igrejas evangélicas no País.

No campo das igrejas protestantes começam as primeiras iniciativas de cooperação e

uma rearticulação da inserção na sociedade brasileira. O primeiro movimento foi a criação

de escolas, já mencionado acima. Sob a influência do Congresso de Ação Cristã, realizado

1925, na cidade Montevidéu, no Uruguay as denominações presentes no Brasil criaram, nas

décadas seguintes, hospitais confessionais. No referido congresso Robert Speer, um dos

mais importantes dirigentes do trabalho missionário nos Estados Unidos e um dos articu-

ladores da cooperação missionária na América Latina, se pronunciou sobre a importância

do trabalho missionário médico como estratégia de evangelização na América Latina. A

sua palestra no Congresso se intitulou: Medical missionary work in south América (SPEER,

1926, 407- 419). Nela expôs a precariedade da saúde na América Latina e a atuação de

missões cristãs com foco no atendimento da Saúde em diversos países da América do Sul.

A criação dos seguintes hospitais é resposta a articulação nascida no Congresso de Mon-

tevidéu: Hospital Evangélico Goiano (1927); Hospital Evangélico de Pernambuco (1929) 14;

Hospital Evangélico de Rio Verde (1937); Hospital Evangélico de Sorocaba (1935); Hospital

Evangélico de Curitiba (1943); Hospital Evangélico de Dourados (1946); Hospital Evangélico

de Londrina (1948); Hospital Evangélico da Bahia (1961).

Diferentemente das escolas, iniciativas denominacionais, os hospitais nasciam sob o

signo da cooperação entre as denominações evangélicas brasileiras. Isto se explica por

duas razões: o custo mais elevado de um hospital, quando comparado a uma escola, mas

também a percepção das igrejas que precisavam cooperar umas com as outras. A coope-

ração era despertada, em grande parte, pelas reações do catolicismo romano nas primeiras

décadas do século XX.

A reação da Igreja Católica ao advento da República foi em duas direções: de um lado

se dizia que era boa para a Igreja separar-se dos inconvenientes de ser a religião oficial,

mas de outro, havia o lamento da perda da influência e dos privilégios de ser a religião ofi-

cial. Num movimento de recuperação de influência na sociedade brasileira o catolicismo

investiu na vinda de padres e missionários da Europa e viu o número de dioceses saltar de

13, em 1889, para 58, em 1920. O catolicismo, diante da perda do status de religião oficial,

precisará investir na competição com seus adversários religiosos e alguns padres se dedi-

carão ao combate aos “erros do protestantismo”. Inicia-se a era das polêmicas religiosas,

sendo os debates entre o Padre Leonel Franca e o Reverendo Eduardo Carlos Pereira, nas

duas primeiras décadas do século XX, o ponto alto desse período.

A Revolução de 1930 marcou uma nova fase de reaproximação do catolicismo com o

Estado e acendeu a luz de alerta entre os protestantes. O cardeal Leme, Arcebispo do Rio

de Janeiro, havia exercido um papel importante nas negociações para deposição do presi-

dente Washington Luiz e, com isso, aproximou-se do presidente Getúlio Vargas. Os frutos

dessa amizade apareceriam nos anos seguintes, especialmente na Constituição de 1934,

como assinala Cavalcanti (1994):

A constituição começa “sob a proteção de Deus”. As ordens religiosas

mantém sua personalidade jurídica e os seus membros readquirir a

plenitude do exercício da cidadania. É consentida a assistência reli-

giosa às organizações militares. O casamento religioso é reconhecido

pela lei civil. O divórcio é proibido. O ensino religioso é admitido nas

escolas públicas, invocando o ‘interesse coletivo’. Em 1933 é fundada

a LEC (Liga Eleitoral Católica), para apoiar os candidatos comprome-

tidos com a plataforma da Igreja. Vários deles vão estar presentes à

Assembléia Constituinte, dentre eles Plínio Correia de Oliveira, futu-

ro fundador da TFP (Tradição, Família e Propriedade) (CAVALCANTI,

1994, p. 190).

 

A Igreja Católica empreendeu uma luta para firmar-se como religião da população bra-

sileira no imaginário social. Um dos símbolos mais importantes será a inauguração do Cris-

to Redentor, em 12 de outubro de 1931, com a presença do presidente Getúlio Vargas.

O protestantismo, na primeira metade da República, precisa lutar em várias frentes:

consolidar lideranças nacionais, estabelecer seminários para formação de pastores, defen-

der-se no embate com o catolicismo e, ainda, entender-se com as igrejas-mãe, geralmente

nos Estados Unidos.

No panorama religioso brasileiros das primeiras décadas do século XX é importante as-

sinalar algumas alternativas religiosas que se desenvolvem fora do campo cristão católico/

protestante. O espiritismo já estava presente no Brasil desde meados do século XIX, mas

ganhará novo impulso após o período da Primeira Grande Guerra Mundial. Porém, a grande

novidade será o surgimento da Umbanda, numa síntese de elementos do espiritismo e do

candomblé. Em 1922 houve a Semana de Arte Moderna com o lema de que era preciso

“abrasileirar o Brasil”. No contexto religioso a Umbanda aparecia como “legítimo produto

nacional”, uma religião sincrética feita em solo brasileiro. A liberdade religiosa da República

ainda não se estendia a todas as religiões sendo que os terreiros de Umbanda eram obriga-

dos a fazerem o registro de funcionamento junto às delegacias de polícia.

Na primeira fase da República, chamada de República Velha (1989-1930), apenas três

parlamentares eram protestantes: Alfredo Ellis (Luterano, filho de imigrantes, 1903 a 1925),

Érico Coelho (Igreja Evangélica Brasileira, 1906-1909, 1914-1918) e Joaquim Nogueira Pa-

ranaguá (Igreja Batista, 1896 a 1906).

No período getulista (1930-1945) houve a aproximação com a Igreja Católica, confor-

me citado acima e o surgimento de uma militância católica para eleger políticos católicos.

A proposta era que esses políticos retomassem, pela via democrática, os espaços perdidos

pelo catolicismo. A Liga Eleitoral Católica (LEC) visava eleger deputados católicos para a

Constituinte de 1933. Isso provocou uma reação no campo protestante que se sentiu amea-

çado pela ação católica.

Em 1934 foi criada a Confederação Evangélica do Brasil (CEB), mas em 1932extra-fo-

cialmente já existia e atuava e lançou um documento em oposição à LEC. Neste documento

conclamava os evangélicos a se manifestar politicamente buscar representatividade na As-

sembleia Constituinte. As pautas defendidas eram: a laicidade do Estado e do ensino públi-

co, bem como sua gratuidade, o direito ao divórcio, o pacifismo, a liberdade de pensamento,

de crença, entre outros elementos. Foram lançadas 29 candidaturas, todas independentes,

porém, evitando-se o “voto de curral” era enfatizado que não havia apoio oficial das igrejas

às quais pertenciam os candidatos. Somente o pastor metodista Guaracy Silveira, do Par-

tido Socialista Brasileiro (PSB), de São Paulo. Ele foi eleito deputado uma segunda vez, em

1946, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que ajudou a fundar. Em 1948, o metodista

liderou a criação e se tornou presidente do Partido Republicano Trabalhista (PRT), que pas-

sou a contar com a participação predominante de evangélicos. Em 1950, os evangélicos

conseguiram eleger mais de um deputado federal, era o médico presbiteriano independente

Lauro Monteiro da Cruz. Ele era presbítero da Primeira Igreja Presbiteriana Independente

de São Paulo e professor da Faculdade de Medicina da USP. Foi reeleito sucessivas vezes

deputado federal.

Retomando o panorama religioso, a partir dos anos 50 surgem algumas novidades no

cenário evangélico brasileiro. São elas: Igreja do Evangelho Quadrangular (1953), Igreja

Evangélica Pentecostal o Brasil para Cristo (1956), Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962) e

Igreja Universal do Reino de Deus (1977). Essas novas igrejas pentecostais foram fundadas

justamente no período em que o Brasil começa a intensificar o processo de urbanização.

Grandes contingentes se deslocam das áreas rurais para as periferias das grandes cidades

brasileiras, principalmente das capitais do Sudeste. Os seguintes pontos se destacam na

atuação dessas novas igrejas: o uso do rádio, propaganda de cura divina e exorcismos.

Lembremos que elas representarão um contraponto ao crescimento da umbanda nas déca-

das de 30,40 e 50.

O cenário político, após o fim da ditadura do último período de Getúlio Vargas, teve um

curto intervalo democrático (1946-1964). A Guerra Fria torna-se nesses anos e até os anos

80, o grande assunto da geopolítica mundial. O mundo divide-se entre o lado Ocidental

capitalista e lado Oriental comunista. Do lado de cá a liderança é dos Estados Unidos e, do lado de lá, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) imprimirá o ritmo dos

acontecimentos políticos.

A ditadura militar (1964-1985)

As discussões em torno da corrupção no país e da ameaça comunista culminaram no

movimento de 31 de março de 1964. Na aparência havia o propósito de aperfeiçoar a de-

mocracia brasileira livrando-a de um risco de ditadura comunista e combatendo os males

da corrupção. Entretanto, uma vez no poder, os chefes militares começaram a mudar as

instituições do país através de decretos denominados de Atos Institucionais (AI). A justifi-

cativa era que todas as revoluções exercem um Poder Constituinte. Note-se que o Golpe foi

dado em nome do povo, porém, o povo – via eleições e assembleia constituinte foi excluído

do processo de elaboração das leis.

Cassações de deputados da oposição, restrições cada vez maiores ao poder de legislar

do Congresso e, finalmente, a imposição de uma nova Constituição (1967) foram dando as

feições do novo regime autoritário. O historiador Boris Fausto assim define o modelo da

ditadura militar:

 

Uma das características do regime implantado em 1964 foi o de não

ser uma ditadura pessoal. Poderíamos compará-lo a um condomínio

em que um dos chefes militares – general de quatro estrelas – era esco-

lhido para governar o país por prazo definido. A sucessão presidencial

se realizava, de fato, no interior da corporação militar, com audiência

maior ou menor da tropa, conforme o caso, e decisão final do Alto

Comando das Forças Armadas. Na aparência, de acordo com a legis-

lação, era o Congresso quem elegia o presidente da República, indica-

do pela Arena. Mas o Congresso, descontados os votos da oposição,

apenas sacramentar a ordem vinda de cima. (FAUSTO, 1999, p. 475)

 

Com as cassações de deputados de oposição o governo militar conseguiu garantir

uma maioria estável no Congresso. A seguinte tática era utilizada para parar os projetos de

interesse do presidente militar. O projeto de lei era enviado ao Congresso e se em 30 dias

não fosse votado ficava automaticamente aprovado. Como o governo tinha maioria, ele

próprio impedia a discussão e votação por meio de obstrução, ao final dos 30 dias o projeto

estava aprovado por decurso de prazo. Observa que uma regra básica da democracia era

burlada – o poder do Congresso de fazer as leis.

Dominado o Congresso, que nas democracias é responsável pela feitura das leis, a ou-

tra ponta a ser controlada era o judiciário, responsável por julgar segundo a Constituição.

O governo militar aprovou leis que aposentavam compulsoriamente os juízes contrários à

ditadura e novos juízes eram nomeados.

As perseguições, prisões e torturas ocorreram desde o início do regime militar, entretan- to, as eleições diretas para governadores e prefeitos foram mantidas em 1965. O resultado

das urnas acendeu o sinal de alerta para os militares, pois, em vários estados e municípios

opositores ao regime foram eleitos. Menos de um mês após esse resultado, o regime militar

acabou com a eleição direta para governadores.

O golpe dentro do golpe veio no dia 13 de dezembro de 1968 com o Ato Institucional

número 5, conhecido como AI-5. O Congresso foi fechado. O AI-5 não tinha data para ter-

minar, diferentemente dos atos institucionais anteriores e duraria até 1979. O AI-5 ampliava

os poderes do Presidente da República que poderia fechar o Congresso, cassar deputados

e realizar a intervenção em Estados e Municípios a qualquer momento.

O lado mais tenebroso da ditadura ficou por conta da chamada Doutrina de Segurança

Nacional. Em sintonia com essa Doutrina o AI-5 suspendeu o habeas corpus, basicamente

o direito de uma pessoa se defender em liberdade de uma acusação. Na prática qualquer

pessoa suspeita de crítica ao regime era presa na clandestinidade, sem direito a um advo-

gado de defesa e torturada até confessar o suposto crime contra o Governo. Familiares de

presos não conseguiam obter qualquer informação e tampouco tinham permissão para

visitar os presos. Na prática estavam impedidos de cumprir Mateus 25.43 “Estive preso e

foste ver-me”.

Violência gera mais violência. O AI-5 fez multiplicar nos movimentos de esquerda a

criação de grupos de luta armada, eram os chamados movimentos de guerrilha no campo

e nas cidades. Os mais famosos foram os grupos liderados por Carlos Lamarca, um ex-ca-

pitão do Exército e Carlos Marighella.

Os abusos aos Direitos Humanos foram intensificados com o AI-5. A partir de 1969 foi

criada a Operação Bandeirantes (Oban) e, em seguida o DOI-CODI, siglas do Destacamento

de Operações e Informações e do Centro de Operações de Defesa Interna. Esses organis-

mos se estabeleceram em vários estados realizando prisões com base em denúncias tor-

turas e mortes.

O crescimento econômico em ritmo acelerado, em torno de 10% ao ano, deu origem

ao chamado “milagre econômico”. Os militares e políticos apoiadores da ditadura se es-

coravam nos bons resultados econômicos para justificar o regime e fazer vistas grossas à

violação do Direitos Humanos.

A partir de 1973 começou uma política de distensão do regime militar. Na prática os

militares percebiam as dificuldades, mesmo com poderes ditatoriais, de governar o país. A

corporação militar funciona com base na obediência à hierarquia, entretanto, um oficial de

patente inferior podia controlar informações e decidir sobre a vida e a morte de pessoas sem

que seus superiores tivessem conhecimento de todo o processo. Além de perceberem as dificuldades para governar o país, os chefes militares começavam a enxergar que a institui-

ção militar poderia se desagregar num bando de soldados sem comando. Pressionava em

favor de uma abertura do regime o fato que os resultados da economia começaram a piorar

e o crescimento do “milagre econômico” foi feito com grande endividamento do país e não

resultou em distribuição de renda ou melhores serviços de saúde, educação e transporte para

a população. Internamente a Igreja Católica começou gradativamente a ser opor ao regime

militar atuando principalmente na defesa dos Direitos Humanos. Do Exterior chegavam pres-

sões de países e organismos internacionais questionando a prática da tortura e a repressão

às críticas ao regime. Tudo isso somado, fez dos anos finais da ditadura um processo lento

de negociação com as forças da sociedade a retomada do regime democrático.

E as igrejas evangélicas?

É fato conhecido e amplamente documentado o apoio das Igrejas Evangélicas ao Golpe

Militar de 1964 e ao governo ditatorial que foi implantando. Leonildo Silveira Campos (2014)

explica minuciosamente o apoio das Igrejas Evangélicas ao regime militar. Havia uma

tensão no interior das denominações que reproduzia as divisões ideológicas da Guerra Fria.

Essa divisão tinha nuances, obviamente, mas o resultado geral era sempre um grupo que se

alinhava à defesa do modelo de sociedade capitalista representado pelos Estados Unidos

e outro grupo que questionava tal modelo e o fazia amparado por ideologia e literatura que

havia gerado o modelo Soviético, Cubano e Chinês. De modo perspicaz Campos sumariza

essa divisão da seguinte forma: de um lado das igrejas protestantes históricas estavam

aqueles que defendiam o modelo tradicional de relacionamento entre igreja e sociedade

preconizando esforços na evangelização e de outro estavam, principalmente jovens

teólogos e pastores, que sustentavam maior envolvimento da igreja com as causas sociais

e o cumprimento da missão profética denunciando as injustiças de caráter econômico.

Essa tensão foi sendo alimentada durante a década de 50. Os embates da Guerra Fria

fizeram circular nas igrejas muita propaganda sobre o ateísmo dos comunistas e a per-

seguição às igrejas cristãs. Quando o Golpe de 1964 ocorreu, as igrejas viram-no como

resposta às orações dirigidas a Deus para que o Brasil não viesse a se tornar um país de

regime comunista. Sem exceções, todas as denominações enviaram mensagens ao Presi-

dente da República expressando seu apoio ao novo regime. Cultos de ação de graças pelo

ocorrido no dia 31/03/1964 tornaram-se comuns nas igrejas evangélicas.

E qual foi a reação das Igrejas quando começaram a aparecer as violações aos Direitos

Humanos praticadas pelo regime militar instaurado no país? As igrejas não só não mani-

festaram seu repúdio, mas a máquina de tortura do Estado foi usada por lideranças conser-

vadoras para denunciar aqueles que não eram apoiadores da ditadura militar. Importante

ressaltar que não se tratava necessariamente de pessoas envolvidas em movimentos de guerrilha ou defensores do comunismo. Bastava questionar a autoridade de líderes denomi-

nacionais ou sustentar visões doutrinárias alternativas para que o instrumento da delação

fosse muitas vezes utilizado para reprimir os dissidentes.

O apoio ao regime militar não foi uma exclusividade das igrejas evangélicas, lembre-

mos que a Igreja Católica também apoio o Golpe de 1964. Nesse sentido as igrejas acom-

panhavam a maioria da sociedade brasileira. Entretanto, a Igreja Católica diante das viola-

ções dos Direitos Humanos praticadas pela ditadura militar foi gradativamente retirando

seu apoio até assumir o papel de opositora. Infelizmente o mesmo não ocorreu na seara

evangélica e, como vimos acima, não só fizeram vistas grossas às violações aos Direitos

Humanos, mas se valeram desse crime para resolver diferenças entre irmãos. Se o capítulo

seguinte das relações entre igreja e política será marcado pelo lema: irmão vota em irmão.

O capítulo igreja e ditadura militar foi marcado pelo vergonhoso lema: “irmão delata irmão”.

Mas houve resistência. O Rev. Jaime Wright, missionário presbiteriano no Brasil, ao

lado do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns denunciaram as violações aos Direitos Humanos.

O livro Brasil Nunca Mais, coordenado por eles, é o registro dos anos de chumbo. Jaime

Wright foi o responsável pela articulação do encontro entre o presidente Jimmy Carter e o

Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns em 1978. Nesse encontro o Cardeal entregou uma lista

com nomes de pessoas sequestradas e desaparecidas pela ação dos militares. Jimmy Car-

ter, ativo como membro da Igreja Batista, se notabilizou pela defesa dos Direitos Humanos.

Na sua visita ao Brasil tocou de forma superficial na defesa da liberdade humana, mas o

simples fato de receber dois críticos ao regime militar foi um ponto de inflexão no apoio dos

Estados Unidos ao Golpe de 1964.

 

UA3 –

UNIDADE DE APRENSIZAGEM 3

3. A Nova República e a Bancada Evangélica

OBJETIVOS

1 Analisar a presença evangélica na política com o advento da

Nova República

2 Refletir criticamente sobre as estratégias discursivas utilizadas

pela bancada evangélica para justificar sua existência e atuação

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Estamos percebendo como a história das igrejas evangélicas e a política brasileira fo-

ram se encontrando em meio aos acontecimentos que marcaram a República. Entramos

nesta unidade de aprendizagem na fase atual da história brasileira, por isso, examinaremos

assuntos que talvez estejam muito próximos da nossa experiência. É importante salientar

que a análise crítica não tem por objetivo a mera desqualificação dos atores envolvidos

na história, mas criação de novas perspectivas sobre e a realidade e a abertura de novos

caminhos para a ação.

Bons estudos.

O advento da Nova República

A Nova República fez nascer um novo capítulo na relação entre as igrejas evangélicas

e o poder político no Brasil. A Nova República é o período histórico que teve início em 1985,

marcando o fim da Ditadura Militar e o retorno da democracia no Brasil. Este período co-

meçou com a saída do general Figueiredo da presidência do Brasil e a entrada de um civil

no cargo, José Sarney. O Brasil continuou sendo uma República, mas desde a proclamação

desta, o país alternou períodos autoritários, ditaduras e democracia.

A redemocratização do Brasil foi um processo de reestabelecimento da democracia

que ocorreu após períodos ditatoriais de governo. O processo de redemocratização de 1985

ocorreu no contexto da ditadura militar. Teve início no governo Geisel, em 1974, e contou

com momentos de avanços e recuos.

As principais características da Nova República são:

Redemocratização do Brasil.

cas e culturais, opinião etc.

respeito aos direitos do cidadão.

A Nova República representa um novo período democrático, em oposição ao antigo

governo que representava a censura, falta de democracia e repressão aos movimentos so-

ciais. Portanto, a Nova República é um marco importante na história do Brasil, simbolizando

o retorno à democracia e o fim de um período de repressão e censura.

De repente o Brasil descobriu os evangélicos

Vimos que a presença de caráter permanente de cristãos não católicos em solo brasi-

leiro remonta a primeira metade do século XIX. Na segunda metade missionários começa-

ram a chegar no território brasileiro e as primeiras igrejas resultantes do protestantismo de

missão foram estabelecidas. O século XX viu a chegada dos pentecostais. É possível afir-

mar que até o advento da Nova República os evangélicos, embora firmemente consolida-

das, não eram quase percebidos na paisagem tropical do país. Todavia, eis que de repente

eles parecem estar por toda parte.

Alguns fatos da histórica política recente do Brasil mostram essa sensação de que os

evangélicos estão por toda parte do cenário nacional, inclusive no lugar em que sempre es-

tiveram ausentes: a política. Vejamos: Adélio Bispo, homem que esfaqueou o então candi-

dato Jair Bolsonaro, frequentava igrejas evangélicas. O ex-presidente Jair Bolsonaro, que se

declara católico romano, foi batizado no rio Jordão, em Israel, pelo pastor da Assembleia de

Deus Everaldo Pereira. A presença de políticos em eventos promovidos por igrejas evangé-

licas, principalmente pentecostais e neopentecostais passou a ser vista como estratégica.

Voltando ao ex-presidente Jair Bolsonaro, a esposa dele e os seus filhos, do primeiro ma-

trimônio, são ligados à Igreja Batista. Permanecendo ainda no primeiro escalão da política

nacional Marina Silva, candidata por três vezes à presidência, é assumidamente evangélica.

Cabo Daciolo, candidato à presidência no ano de 2018, se destacou por levar uma Bíblia

aos debates entre os candidatos e inserir em suas respostas bordões pentecostais. Dei-

xando as eleições de 2018 e a figura do presidente, porém mantendo o foco nas relações

entre evangélicos e a política recente do Brasil, recordo que o ex-presidente da Câmara dos

Deputados, Eduardo Cunha, preso pela operação Lava Jato, declara-se evangélico. O ex-

-promotor e ex-deputado Deltan Dallagnol, que fez fama na esteira da Operação Lava Jato, é membro da Igreja Batista. A associação entre evangélicos e política não é exclusividade

da esfera nacional, mas realidade igualmente presente em milhares de municípios brasilei-

ros e em todas os estados da federação. Nos períodos de propaganda eleitoral tornou-se

parte do cenário candidatos que se apresentam utilizando seus títulos religiosos: missio-

nário, pastor, bispo e apóstolo. A presença de evangélicos por todos os lados – dos vilões

aos mocinhos – cristalizou a sensação de que eles estão por toda parte e que do dia para

a noite parece que as igrejas se multiplicaram pelo solo nacional. Aqueles que não estão

familiarizados com o universo religioso evangélico inevitavelmente se perguntam: o que

pretendem ao ocupar espaço em partidos políticos e cargos no executivo e no legislativo?

A bancada evangélica: gênese e fatores de unificação

A enorme diversidade e as disputas internas entre as milhares de igrejas desaparecem,

pelo menos na superfície, quando surge o tema evangélicos e política. A percepção de que

os evangélicos, em matéria de política, agem de modo unificado emergiu na Constituinte

de 1988 com a formação da Frente Parlamentar Evangélica, conhecida desde então, como

Bancada Evangélica. Da Constituinte até a última eleição, a Bancada Evangélica seguiu

crescendo. O número de integrantes sempre oscila, mas está sempre na casa de uma cen-

tena e representa uma das mais poderosas no Congresso Nacional. Os Parlamentares lista-

dos como integrantes da Bancada Evangélica estão espalhados por praticamente todos os

partidos políticos, inclusive no Partido dos Trabalhadores (PT), escolhido nos últimos anos

como antagonista principal das bandeiras defendidas pela Bancada Evangélica. Mais raros

na Bancada Evangélica são deputados filiados ao PSOL e ao PC do B.

 

VOCÊ SABIA?

VOCÊ SABIA COMO NASCEU A BANCADA EVANGÉLICA?

A instrumentalização da fé com finalidade eleitoral se dá a

partir do argumento de que a igreja e o plano evangelizador de

Deus correm perigo. Ricardo Mariano, sociólogo da USP, expli-

ca que o “argumento de a liberdade religiosa está em xeque é

um trunfo decisivo para defender candidaturas evangélicas nos

próprios cultos”. Mariano aponta o momento em que a presença de evangélicos no

Congresso mudou para a postura atual. Segundo conta, nas eleições gerais de 1986,

as primeiras após a redemocratização, correu um boato durante os trabalhos da Cons-

tituinte de que a Igreja Católica estaria exercendo sua influência para ter uma posição

privilegiada na redação da nova Constituição, o que colocaria em risco a liberdade

religiosa. Segundo o sociólogo, por causa desse boato, “rapidamente foi organizada a

bancada na Câmara, marcando a emergência pública do ativismo evangélico em um momento crucial da democracia. O lema dos evangélicos, que até então tinha sido

“crente não se mete em política”, passou a ser “irmão vota em irmão”. Porém, diferen-

temente do panorama atual, até aquele momento, os candidatos evangélicos eram

eleitos sem instrumentalizar a identidade religiosa, ou seja, sem colocar a religião a

serviço de interesses políticos. Isso passou a acontecer a partir das eleições de 1989

e adquiriu força nos últimos anos. (SPYER, 2020, p. 196)

A dinâmica de aglutinação da Bancada Evangélica funciona numa lógica que gira em

torno de temas mobilizadores difusos e temas de interesse eclesiástico/político institucio-

nal. Os temas mobilizadores difusos são compostos por palavras-chave que despertam

a sensibilidade da população evangélica, tais como: família, aborto, criacionismo, Bíblia,

gênero, homossexualidade, drogas. São esses temas que mais despertam paixões e provi-

denciam um tipo de justificativa para a presença religiosa mais ostensiva na política. Sob

o ponto de vista da estrutura laica do Estado brasileiro, instituído a partir do modelo ilumi-

nista de separação entre religião e política, as chances de fazer a roda da história girar para

trás e aprovar leis que impeçam o exercício das liberdades comportamentais adquiridas

nas últimas décadas são nulas. Mas será que é isso que pretende a Bancada Evangélica?

Certamente não. Os enfrentamentos são mais simbólicos e transmitem a ideia que os par-

lamentares evangélicos estão atuando como barreira de contenção frente à propagação

dos novos arranjos familiares bem como das novas expressões na esfera do afeto e da

sexualidade que ganharam visibilidade nos últimos anos. Para quem falam os políticos

evangélicos? Eles falam para os setores da população brasileira que se sentem confusos e

incomodados com as transformações nas relações de gênero, com a união civil de pessoas

do mesmo sexo, com possibilidade jurídica da adoção de crianças por casais homosse-

xuais, com discussões em torno da ampliação da legislação sobre o aborto etc.

Apontar o modo como os temas comportamentais difusos mobilizam eleitores e po-

líticos evangélicos não significa um juízo de valor sobre as motivações para o uso dessa

estratégia. A cultura cristã possui um longo histórico de dualismo (Deus e o Diabo, bem e

o mal, Igreja e o mundo) e não é diferente com o mundo cristão evangélico. Aliás, a mente

humana funciona em torno da estruturação de opostos, como bem demonstrou o antropó-

logo Claude Lévi-Strauss em sua vasta análise cultural sobre a estrutura dos mitos. No caso

específico do dualismo cristão evangélico há vasta tradição em torno da batalha final entre

o bem e o mal, o Armagedon, que seria precedido pelo surgimento do Anticristo. O comu-

nismo, no período da Guerra Fria, por conta do ateísmo que o acompanhava foi identificado

como o grande inimigo. Da década de 50 até a década de 80 eram comuns nas igrejas evangélicas conferências proféticas que se dedicavam a análise da conjuntura política in-

ternacional tentando encaixá-la na linguagem das profecias bíblicas sobre o aparecimento

do anti-Cristo. A derrocada da ameaça comunista, consumada com a Queda do Muro de

Berlim em 1989, deixou vago o posto do “grande inimigo” do cristianismo. A ameaça islâmi-

ca muitas vezes é invocada, mas a distância geográfica e cultural, além do fato de se lidar

com uma religião com raízes no monoteísmo abraâmico, torna mais difícil encaixar mu-

çulmanos em posição semelhante à ameaça do ateísmo comunista de outrora. O quadro

explicativo se fecha quando observamos que os partidos de esquerda, diante da derroca-

da do comunismo no plano internacional, assumiram a defesa das pautas identitárias em

seus programas de governo, todas elas com desdobramentos na agenda comportamental

já mencionada. O caldo cultural de identificação do grande inimigo a ser combatido pelos

cristãos, de longa data cultivado entre os evangélicos, recebeu a adição das causas identi-

tárias com (feminista, LGBT etc.) geralmente encampadas pelos partidos de esquerda. Isso

é um dos fatores que explica o alinhamento que ocorreu na eleição de Jair Bolsonaro, em

2018, entre diferentes tipos de conservadorismo – apoiadores da Lava Jato, extrema-direita

olavista/bolsonarista e evangélicos. A retórica política nas últimas eleições tem mirado os

partidos de esquerda identificando-os como inimigos da civilização cristã, embora risível e

anacrônica, a alegada ameaça comunista, citada com frequência nesse tipo de argumenta-

ção, tem dado resultados no estabelecimento de uma espécie de ponte entre os inimigos

do passado e do presente.

Uma avaliação da bancada evangélica

O que pensa a bancada evangélica? É difícil responder essa pergunta uma vez que no

interior do grupo há uma diversidade de igrejas e partidos políticos. Assim, como vimos

acima, o grupo se articula em torno de interesses muito pontuais. Um dos raros documen-

tos tentando articular uma visão abrangente de propostas da bancada evangélica para o

Brasil foi apresentada em outubro de 2018. Trata-se do “Manifesto à Nação” que no prefácio

anunciava ser um esforço para transcender a pauta tradicionalmente defendida por eles em

torno “da preservação dos valores cristãos e defesa da família”. O documento é basicamen-

te uma adesão ao programa liberal de reformas econômicas. O manifesto é composto de

quatro eixos temáticos, sendo que os três primeiros estão ligados às reformas do Estado

e da Economia em atendimento às conhecidas críticas de inchaço e ineficiência da má-

quina pública. O quarto e eixo é dedicado a educação e embora tenham sido mencionado

o desejo de ir além das pautas tradicionais defendidas pela bancada evangélica, a maior

parte desse tópico é dedicado à crítica aos governos petistas por terem supostamente

adotado em todos os níveis do ensino a doutrinação ideológica, a ideologia de gênero, o

fim da meritocracia e o ataque à moralidade judaico cristã. A conexão, que já apresentamos

anteriormente, entre o comunismo e as pautas identitárias é mencionada literalmente no “Manifesto à Nação”.

De algum modo, a atitude da Bancada Evangélica de lançar o “Manifesto à Nação”, na

iminência da vitória do então candidato Jair Bolsonaro é um reconhecimento da necessida-

de de justificar sua existência avançando em outras áreas além dos temas mobilizadores

difusos. Alguns dos parlamentares que compõem a Bancada Evangélica já estão na câma-

ra há vários mandatos e têm consciência dos limites que o ordenamento jurídico brasileiro

impõe para implementação de temas comportamentais conservadores. Nesse sentido, sob

o ponto de vista eleitoral, a situação da Bancada Evangélica é mais confortável quando o

Executivo Federal é ocupado por um presidente eleito por um partido de esquerda, como no

caso do PT, uma vez que a retórica da batalha para impedir a destruição dos valores cristãos

e da defesa da família ganha maior plausibilidade no papel de oposição do que de governo.

Resta ainda à Bancada Evangélica a aglutinação pela operação de temas de interesse ecle-

siástico/político institucional. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é a segunda no

número de integrantes da Bancada e vem ocupando, nada menos que a vice-presidência da

Câmara Federal com o deputado Marcos Pereira (PRB) e já teve o bispo Marcelo Crivella na

prefeitura da cidade do Rio de Janeiro (2017-2020). O Partido Republicano Brasileiro (PRB)

é o braço político da IURD e defende os interesses do bispo Edir Macedo na manutenção da

concessão do canal de televisão pela IURD além de muitos outros, como o acesso às ver-

bas publicitárias do Executivo Federal. Membros da Bancada Evangélica oriundos de outras

igrejas que não possuem a centralização administrativa da IURD acabam operando temas

de interesse eclesiástico/institucional mais regionalizados seguindo o modelo vigente na

dinâmica dos partidos políticos dos quais fazem parte, assumindo áreas na estrutura admi-

nistrativa para construção e perpetuação de redes de apoio eleitoral.

O sociólogo Paul Freston observou que à medida que o Brasil fica mais evangélico, os

evangélicos também ficam mais brasileiros. No caso da Bancada Evangélica o raciocínio se

encaixa muito bem. No já citado “Manifesto à Nação” a Bancada Evangélica menciona, no

prefácio, a disfuncionalidade dos partidos na representação dos interesses dos cidadãos

e se refere à formação de oligarquias partidárias como impeditivas para renovação da vida

política. Era de se esperar, depois de reconhecer o problema, que o “Manifesto à Nação”

contemplasse alguma proposta de reforma política e eleitoral na direção da transparência

e da aproximação entre a classe política e os cidadãos, todavia, o documento silencia com-

pletamente sobre o tema. A julgar por isso, continuaremos assistindo os políticos evangé-

licos combatendo comportamentos da esfera privada que julgam imorais e fazendo vista

grossa para a imoralidade institucionalizada na vida política brasileira. Além disso, está

completamente ausente do documento da Bancada qualquer referência à justiça social e

à compaixão, temas tão caros à ética cristã. Difícil não recordar as palavras de Jesus re-

gistradas pelo evangelista Mateus: Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais impor-

tantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir

aquelas! Guias cegos, que coais o mosquito e engolis o camelo!

Obviamente isso não é um veredito de que a bancada evangélica será sempre assim.

Vimos por quantas mudanças a política brasileira passou desde a Proclamação da Repú-

blica, em 1889. O que apresentamos acima é um retrato do comportamento da bancada

evangélica nas últimas décadas. A vida é dinâmica e a política e os políticos, para sobrevi-

veram, precisam se adaptar às mudanças que a vida impõe. Se isto estiver correto, é de se

esperar que a bancada evangélica passe por mudanças nas próximas décadas, a torcida é

para que nesse processo ela possa ir deixando de lado o fisiologismo tão característico da

política brasileira e se tornando mais alinhada à defesa da justiça e da cidadania para todos

os brasileiros.

 

UA4 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 4

4. Formas de pensar a relação entre política e fé: instituições filantrópicas, movimentos sociais, advocacy e cultivo de virtudes cívicas

OBJETIVOS

1 Mostras formas de ação política que não são partidárias

2 Apresentar organizações com atuação política relevante em áreas diferentes

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Na unidade de aprendizagem anterior foi a examinada a relação entre fé e política sob

a ótica político-partidária, sobretudo no exame da constituição da bancada evangélica e no

seu modo de operação no Congresso Nacional. Sem dúvida essa é uma dimensão muito

importante da relação entre fé e política. Entretanto, a política é muito maior que sua ex-

pressão partidária. Na sua origem o termo política nasce de “pólis”, que é a forma grega

para designar os ajuntamentos humanos que formam as cidades. Nesse sentido amplo

política diz respeito à vida na cidade e tudo àquilo que é necessário para que as pessoas

possam viver juntas num espaço. Nessa unidade vamos pensar a política no sentido amplo

e as muitas possibilidades de organização e ação na busca por justiça e paz para todos os

cidadãos.

Antigos e novos modelos de ação política

As modalidades não partidárias mais conhecidas de ação política são os sindicatos

e os protestos de rua. Reconhecidamente essas formas de ação incidem sobre os atores

políticos do legislativo e do executivo. Por exemplo, uma greve convocada por um sindicato

pode resultar em melhores condições de trabalho e em ganhos financeiros para a categoria

representada, um protesto da população de um bairro pode ser feito reivindicando a

instalação de serviços de saúde na região. No primeiro exemplo os agentes e beneficiado

pela greve são uma categoria específica e no segundo, trata-se um grupo de pessoas mais

diversificado e o resultado do pleito, se atendido, se dirige a um grupo maior de pessoas.

Essas formas de ação política são tradicionais nas democracias. Importante frisar que

governos autoritários impedem ou impõem restrições severas para manifestações dessa natureza. A complexidade da vida nas sociedades modernas foi impondo novas formas

de ação política. A seguir examinaremos essas formas de ação política começando pelas

mais antigas e avançando em direção àquelas mais recentes.

O terceiro setor – nem público, nem privado

O Terceiro Setor é formado por associações e entidades sem fins lucrativos, que atuam

na prestação de serviços públicos e no desenvolvimento social. Essas organizações sur-

gem para suprir as falhas deixadas pelo Estado, atuando em áreas onde o poder público

não conseguiu chegar ou não quis chegar. Elas são mantidas por iniciativas privadas e até

mesmo por incentivos do governo, com repasse de verbas públicas. Os formatos jurídicos

que as iniciativas assumem são variados – desde associações até fundações. Normalmente

essas entidades são classificadas como Organizações Não-Governamentais (ONGs). Esse

modo de classificar as instituições aponta para duas características delas: seus dirigentes

não são nomeados pelo poder político e nas suas atividades tais entidades não almejam o

lucro, como no caso das empresas privadas.

Dentro dessa designação de terceiro setor cabem instituições confessionais, aquelas

criadas e mantidas por igrejas e aquelas que nasceram de iniciativas não confessionais.

Dada a complexidade dos problemas sociais, as instituições do terceiro setor foram se es-

pecializando com o propósito de obter melhores resultados na aplicação de seus recursos

para atendimento do público alvo. Assim surgiram ONGs voltadas para as mulheres, para

crianças, idosos, pessoas portadoras de alguma deficiência, animais, meio ambiente en-

tre outros. Antes dessas iniciativas temáticas especializadas, especialmente as entidades

confessionais de atuação filantrópica desenvolveram ações para públicos mais amplos.

Filantropia

A história das instituições filantrópicas no Brasil tem suas raízes na época do Brasil

Colônia e Império, quando a Igreja Católica desempenhava um papel central na assistência

aos mais necessitados. As Santas Casas de Misericórdia, criadas no século XVI, foram as

primeiras instituições a prestar assistência, oferecendo atendimento médico e apoio social.

No século XVIII, as práticas de filantropia e assistência social estavam diretamente

associadas à caridade e às iniciativas decorrentes de ações isoladas e de caráter voluntá-

rio, em grande parte, originadas nas instituições religiosas. A filantropia, nesse período, era

entendida como a prática de ajudar ao próximo, sem esperar retribuição por seu ato.

Outro campo forte da atuação da filantropia confessional é o da educação. Somente

com a chegada da República o Estado tomou para si a obrigação do oferecimento universal

da educação. No Brasil Colônia e no Império a Igreja Católica manteve escolas para edu-cação da população. A entrada do Estado no campo tanto da educação quanto da saúde

não encerrou as iniciativas filantrópicas, porém, tanto as iniciativas católicas quanto pro-

testantes nos campos da educação e da saúde se tornaram mais elitizadas. São institui-

ções que não atendem mais a população carente, porém, mantém o mínimo necessário de

atendimentos preconizados pelas leis nacionais do setor a fim de usufruir de benefícios de

isenção destinados às entidades filantrópicas.

Movimentos sociais

Movimento social é um processo por meio do qual um grupo de pessoas, grande ou

pequeno numericamente, atua no sentido de concretizar ou impedir o andamento de mu-

dança na sociedade. Os alvos de um movimento social podem ser grandes, como a queda

de um governo, ou mais específicos, como a redução da velocidade dos veículos em de-

terminadas ruas da cidade. Os modos de organização dos movimentos sociais também

são diversificados, sendo que alguns são hierárquicos e outros, descentralizados. Entretan-

to, uma característica importante dos movimentos sociais é sua distinção em relação aos

partidos políticos: enquanto estes almejam a conquista do poder, os movimentos sociais

centralizam seus esforços em mudanças específicas, independentemente de que grupo

político esteja no comando do governo. Na sociedade brasileira contemporânea, diversos

movimentos sociais desenvolvem suas atividades e podem ser divididos nas seguintes ca-

tegorias: a) movimentos sociais de reivindicações políticas abrangentes: reforma agrária,

moradia, saúde, educação, mobilidade, meio ambiente; b) movimentos sociais de reivindi-

cações políticas de direitos específicos: mulheres, crianças, negros, homossexuais.

Uma mudança que se observa nos movimentos sociais mais recente é a reunião de

pessoas em grupos de afinidade e não mais em classes sociais. Exemplo: um movimento

social que se mobilize em torno do tema da expansão das ciclovias reunirá pessoas de di-

ferentes classes sociais em torno da ampliação dessa forma de mobilidade urbana.

Por fim, movimentos sociais são construtores de identidade para as pessoas que mili-

tam neles. No lugar do lobby político tradicional, eles preferem a realização de protestos e

campanhas formadoras de opinião. Fundamental para a preservação e o sucesso do grupo

é o estabelecimento de alvo claro. Quando obtêm êxito, os movimentos sociais podem se

transformar em organizações sociais.

Advocacy

Advocacy é uma prática política que visa influenciar a formulação, aprovação e exe-

cução de políticas públicas em favor de uma causa ou grupo. Embora instituições filantró-

picas e movimentos sociais possam fazer advocacy em favor de suas causas, algumas

instituições no Terceiro Setor têm sido criadas com a missão específica de atuar fazendo advocacy. A razão parece ser a seguinte: o Estado é detentor de recursos para fazer polí-

ticas públicas, porém, muitas vezes esses recursos são mal utilizados porque não há boa

qualidade de informação para orientar as ações e, muitas vezes, nem há sensibilidade para

investimento em determinadas causas. Instituições especializadas em advocacy tornar-se

produtoras de pesquisas sobre as causas defendidas, em seguida divulgam essas informa-

ções para os meios de comunicação e mobilizam a opinião pública em favor das causas

defendidas. Numa outra ponta, fazem contato com os tomadores de decisões no mundo

político e na burocracia estatal a fim de informá-los e persuadi-los a fazerem leis e/ou in-

vestimentos nas causas defendidas. A diferença entre instituições de advocacy e organi-

zações filantrópicas e movimentos sociais é que geralmente elas não são executoras de

ações diretas. O esforço recai sobre a produção, disseminação e influência sobre os atores

políticos. A advocacy é um tipo de lobby, porém, sem as conotações de interesse privado e

corrupção que normalmente aparecem associados a ele.

 

PARA PENSAR

O PAPEL DA IGREJA NA BUSCA POR JUSTIÇA

…embora missão da Igreja reunida (institucional) seja procla-

mar o evangelho da salvação individual, conquistar pessoas

para Jesus e formar discípulos, a vontade de Deus para a igreja

dispersa – cristãos que vivem no mundo – é que ela ministre

por palavras e ações, que evangelize e faça justiça. Se a igreja

dispersa não ministrar em palavras e ações, ninguém ouvirá o evangelho anunciado

pela igreja reunida. Assim, no final das contas, a igreja missional envia seu povo como

agente de justiça no mundo. No entanto, precisamos ser mais cuidadosos do que as

pessoas que veem reforma social como tarefa da igreja – visão que geralmente resulta

na politização da igreja e na qual ela acaba sendo identificada com partidos políticos

e causas políticas. (KELLER, p. 324)

Exemplos de organizações do terceiro setor que atuam no Brasil

ChildFund Brasil (https://www.childfundbrasil.org.br)

A ChildFund Brasil é uma organização de desenvolvimento social que atua no país des-

de 1966, beneficiando milhares de pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens e suas

famílias. A organização faz parte de uma rede presente em mais de 60 países, beneficiando

20 milhões de pessoas.

A história da ChildFund Brasil começou na China com o americano Calvitt Clarke e sua esposa Helen, um casal presbiteriano. Em 1938, eles criaram o China Children’s Fund (CCF)

para amparar crianças órfãs, vítimas da guerra entre o Japão e a China. A iniciativa foi bem-

-sucedida e eles decidiram expandir a organização para vários outros países. Em 1966, foi

inaugurado o primeiro escritório regional do CCF no Brasil, com sede localizada em Belo

Horizonte (MG). Alguns anos depois, a estratégia de atuação na América do Sul mudou para

que fosse criado um escritório nacional, priorizando o atendimento às crianças brasileiras.

A missão da ChildFund Brasil é apoiar o desenvolvimento de crianças, adolescentes e

jovens em situações de privação, exclusão e vulnerabilidade social, capacitando-os a me-

lhorar suas vidas e oferecendo oportunidades para se tornarem adultos, pais e líderes capa-

zes de promover mudanças sustentáveis e positivas em suas comunidades. Além disso, a

organização mobiliza pessoas e instituições para valorizar, proteger e promover os direitos

das crianças na sociedade.

Visão Mundial (https://visaomundial.org.br/)

A Visão Mundial, conhecida internacionalmente como World Vision International, é

uma organização não governamental (ONG) internacional de ajuda humanitária, baseada

em princípios do cristianismo. Ela atua no Brasil desde 1975 e já está em 10 estados bra-

sileiros, atendendo milhões de pessoas que vivem em comunidades empobrecidas e em

situação de vulnerabilidade.

A história da Visão Mundial começou em 1947, quando Robert Pierce, um ministro ba-

tista, partiu para uma viagem missionária à Ásia. Durante uma visita à China, ele conheceu

Tena Hoelkedoer, uma professora que o apresentou a uma criança maltratada e abandona-

  1. Como Hoelkedoer não tinha os meios para cuidar da criança, ela perguntou a Pierce: “O

que você pode fazer por ela?”. Ele deu sua última nota de 5 dólares e concordou em enviar

a mesma quantia a cada mês para ajudá-la a cuidar da criança1. Assim, em 1950, Pierce

fundou a World Vision International.

A missão da Visão Mundial é seguir a Jesus Cristo, trabalhando com os pobres e opri-

midos para promover a transformação humana, buscar a justiça e testificar as boas novas

do Reino de Deus3. A organização serve a todas as pessoas, independentemente de religião,

raça, etnia ou gênero. A Visão Mundial tem como visão para todas as crianças: vida em

abundância. E a oração para todos os corações é a vontade para tornar isso uma realidade.

CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço (https://www.cese.org.br/)

A Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) é uma entidade ecumênica sem fins lu-

crativos, composta por Igrejas Cristãs que se unem no compromisso de afirmar a vida com

base na promoção, garantia e defesa dos Direitos, da Justiça e da Paz. A CESE foi fundada em 1973, durante o ano mais violento da Ditadura Militar no Brasil, quando se institucionali-

zou a tortura, se intensificaram as prisões arbitrárias, os assassinatos e os desaparecimen-

tos de presos políticos.

A CESE tem como missão apoiar projetos de organizações populares para a constru-

ção de um país justo e igualitário. Ela atua em colaboração com agências de cooperação

internacional, movimentos populares e promove uma diaconia transformadora4. A CESE

visa fortalecer a capacidade de intervenção de redes nos processos de formulação, execu-

ção e controle das políticas públicas; contribuir com processos de ação em rede das orga-

nizações sociais; e estimular a produção e a difusão de conhecimentos socialmente úteis a

partir da sistematização das experiências.

A CESE é composta pelas seguintes igrejas: Igreja Católica Romana, Igreja Episcopal

Anglicana (Comunhão Anglicana), Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IE-

CLB), Igreja Presbiteriana Independente (IPI), e Igreja Presbiteriana Unida (IPU). Ela apoia

projetos em todo o território nacional, concentrados em oito áreas: Desenvolvimento Ins-

titucional, Direitos Humanos, Desenvolvimento Econômico, Comunicação e Cultura, Meio

Ambiente, Diaconia Ecumênica (ação social das Igrejas), Saúde Popular e Educação.

Instituto Cactus (https://institutocactus.org.br/)

O Instituto Cactus é uma entidade filantrópica e de direitos humanos, sem fins lucrati-

vos, que atua de forma independente para ampliar o debate e os cuidados em prevenção de

doenças e promoção de saúde mental no Brasil. Ele apoia iniciativas e projetos que propor-

cionem melhora na qualidade de vida de todas as pessoas, olhando prioritariamente para a

saúde mental.

A história do Instituto Cactus começou em São Paulo, no dia 3 de agosto de 2020,

durante a pandemia de COVID-19. A investidora social Maria Fernanda Resende Quartiero

fundou o Instituto Cactus após um longo período gestando uma proposta inovadora3. A

organização nasceu com o propósito de transformar o futuro da sociedade brasileira por

meio da saúde mental.

A missão do Instituto Cactus é melhorar a qualidade de vida de todas as pessoas por

meio do apoio a projetos em prevenção de doenças e promoção da saúde mental. Eles

buscam ampliar as iniciativas que valorizem cada pessoa como protagonista da própria

jornada e que contribuam para democratizar o acesso a ferramentas de cuidados com a

saúde mental.

Criola (https://criola.org.br/)

A Criola é uma organização da sociedade civil fundada em 1992 e conduzida por mu-lheres negras. Ela atua na defesa e promoção dos direitos das mulheres, jovens e meninas

negras em uma perspectiva integrada e transversal.

A história da Criola começou seguindo os passos das ancestrais das fundadoras, du-

rante um período de intensa mobilização das mulheres negras no Brasil1. A organização

surgiu como um desdobramento da participação de suas fundadoras nesse contexto, sen-

do uma das primeiras organizações a promover a prevenção de infecções sexualmente

transmissíveis (ISTs) e do HIV/AIDS entre mulheres, tornando-se pioneira na construção e

difusão de uma pauta robusta em torno da saúde da população negra, especialmente das

mulheres.

A missão da Criola é instrumentalizar as mulheres negras – jovens e adultas, cis e

trans – para o enfrentamento ao racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia. Além disso,

a organização busca atuar nos espaços públicos, na defesa e ampliação dos direitos das

mulheres negras, da democracia, da justiça e pelo Bem Viver. A Criola vislumbra mulheres

negras como agentes de transformação, vivendo em uma sociedade fundada em valores de

justiça, equidade e solidariedade, em que a presença e contribuição da mulher negra sejam

acolhidas como um bem da humanidade.

Cultivo de virtudes cívicas

Os cidadãos precisam das virtudes cívicas para que a vida na pólis possa a florescer.

As virtudes cívicas são características e comportamentos que promovem o bem-estar da

comunidade e são essenciais para o funcionamento saudável de uma democracia. Elas in-

cluem o respeito pelos direitos e liberdades dos outros, a participação ativa na vida pública,

a responsabilidade social, a tolerância, a cooperação e a honestidade. O cultivo de virtudes

cívicas é possível através da educação, do engajamento cívico e da participação em organi-

zações da sociedade civil. A educação desempenha um papel crucial na formação de cida-

dãos conscientes e responsáveis, ensinando valores cívicos e incentivando a participação

ativa na sociedade. O engajamento cívico, como o voto, o voluntariado e a participação em

movimentos sociais, também ajuda a cultivar virtudes cívicas, pois permite que os indiví-

duos contribuam para o bem comum e compreendam a importância da cooperação e do

respeito mútuo.

As virtudes cívicas são fundamentais para a democracia porque promovem a coopera-

ção, a tolerância e o respeito, que são essenciais para a convivência pacífica em uma socie-

dade diversificada. Além disso, elas incentivam a participação ativa dos cidadãos na vida

pública, o que é crucial para a responsabilidade e a transparência do governo. Sem virtudes

cívicas, a democracia pode se tornar instável e suscetível a conflitos e divisões.

Portanto, o cultivo de virtudes cívicas é de suma importância para a manutenção e fortalecimento da democracia. Ele permite que os cidadãos participem ativamente da vida

pública, contribuam para o bem comum e respeitem os direitos e liberdades dos outros.

Essa é uma forma efetiva de participação política não partidária.

 

UA5 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 5

5. Ideias sobre como tratar política e eleições com a igreja

OBJETIVOS

1 Subsidiar debate, dentro da igreja e pela igreja, sobre política e eleições municipais,

estaduais e federais

2 Alertar para modos equivocados de tratar o tema

 

PARA INÍCIO DE CONVERSA

A aspiração natural de todo estudante de teologia é dividir com o povo de sua igreja

aquilo que aprendeu na Faculdade. Nessa unidade de aprendizagem chegamos exatamen-

te nesse ponto. Na primeira parte será feito um diagnóstico dos perigos que rondam o tema

e na segunda parte serão apresentadas algumas dicas sobre como conduzir o assunto com

a igreja. Ao fina há uma seleção de textos bíblicos que podem ser estudados com a igreja.

Quando for colocar em prática essa unidade, lembre-se de abrir espaço para ouvir e dialo-

gar com as pessoas sobre a experiência delas e sobre o modo como enxergar o assunto. O

caminho do diálogo é sempre mais enriquecedor para o crescimento. Bons estudos.

Algumas síndromes estranhas

Você já ouviu falar da síndrome de Jerusalém? Os hospitais de Jerusalém são prepa-

rados para receber turistas que surtam durante visitas à cidade sagrada. Visitantes sem

um histórico anterior de surtos podem ficar repentinamente agressivos, terem alucinações

e proclamarem-se investidos de uma missão divina. O caso clássico é o de um australiano

que, em 1969, colocou fogo numa mesquita. Mas existe também a síndrome de Paris, ca-

pital da França. Trata-se de outra síndrome que atinge turistas. Seus sintomas são delírios,

sentimentos de perseguição, tonturas, taquicardia, sudorese. Trata-se de um processo de-

sencadeado pelo choque cultural agudo. Síndrome de Jerusalém e Síndrome de Paris são

síndromes curiosas, mas existe outra síndrome ainda mais estranha. Trata-se da síndrome

do restaurante chinês. Você já ouviu falar? Veja comigo na do que se trata:

 

 

“Eu tenho uma síndrome estranha sempre que eu como em um res-

taurante chinês, especialmente naqueles que servem comida chinesa

do norte. A síndrome, que geralmente começa quinze a vinte minutos

depois de ter comido o primeiro prato, dura cerca de duas horas, sem efeito de ressaca. Os sintomas mais proeminentes são dormência na

parte de trás do pescoço, gradualmente irradiando para ambos os bra-

ços e as costas, fraqueza geral e palpitações… (https://pt.wikipedia.

org/wiki/S%C3%ADndrome_do_restaurante_chin%C3%AAs)

 

 

Gosto bastante da comida chinesa e já estive em alguns restaurantes chineses e sem-

pre me senti muito bem. Nunca estive em Jerusalém ou Paris, portanto, não sei se seria

acometido de algum surto.

E a síndrome eleitoral?

Mas, já que comecei a falar em síndromes, há outra síndrome que me preocupa mais

nos últimos tempos – trata-se da síndrome eleitoral. Ela não está na Wikipédia ainda, mas

vamos a ela. Evidentemente, estou usando o termo síndrome de modo metafórico e não no

sentido estrito que a medicina utiliza. Uma síndrome é um conjunto de sinais e sintomas

que define as manifestações clínicas de uma enfermidade. Então, com “síndrome eleitoral”

quero ressaltar os aspectos emocionais e inconscientes que movem as escolhas, as pai-

xões e as brigas nos períodos eleitorais. Síndrome eleitoral é um termo para falar da passio-

nalidade e agressividade que borbulham em períodos eleitorais, mas também é um termo

que ajuda a entender as ilusões e desilusões típicas desse período.

Tanto a sociologia quanto a psicologia social têm buscado identificar as forças mais

profundas que movem as escolhas que as pessoas fazem em períodos de disputas elei-

torais. A psicologia das massas tem intrigado os estudiosos do comportamento humano

desde as primeiras décadas do século XX. Portanto, a síndrome eleitoral é bem antiga e

não foi inventada pelas redes sociais, a diferença é que os recursos atuais de comunicação

tornaram sua propagação verdadeiramente viral. Vamos então à descrição da síndrome

eleitoral e o conjunto de sintomas que a identifica:

Identificação do grande inimigo

Épocas marcadas por desemprego, corrupção, retrocesso geral na economia e violência

facilitam a identificação de um grande culpado por esse estado de coisas. É um instinto

humano procurar culpados quando a vida se torna insatisfatória e insegura. O inimigo será

sempre o portador de alguma diferença, os mais comuns são: cor da pele, raça, ideologia e

comportamento moral.

Suspeita da grande conspiração

A síndrome eleitoral opera com as narrativas das grandes conspirações. Acredita-se

que uma complexa teia de instituições e pessoas sejam as responsáveis pelos problemas

do país e do mundo. De Iluminatis à grande mídia, quem foi acometido pelo surto vê os si-

nais da conspiração em qualquer informação que se oponha às suas certezas.

Promessa de retorno a um passado idealizado

A música que embala a síndrome é fazer a roda da história girar pra trás. “Bom mesmo

era quando valia a palavra de um homem”, “bom era quando a garantia era um fio de bigode”

e por aí vai. Entretanto, quando década por década, século por século, seguindo alguma me-

todologia histórica mais rigorosa, nunca se encontra o estado ideal descrito. Brutalidade,

corrupção, fome, desigualdade social e incoerência humanas são encontradas em todas as

épocas da história.

 

PARA PENSAR

OBRE O CONSERVADORISMO

… o cristianismo histórico, seja ele protestante, católico roma-

no ou ortodoxo, entende que o alcance desta tradição é rigoro-

samente delimitado e não pode incluir todos os elementos da

cultura geral transmitida pelas gerações passadas. A Grande

Tradição inclui pelo menos a Escritura, doutrinas como as da

Trindade, da encarnação e da ressurreição de Cristo, o Credo dos apóstolos e o Cre-

do de Niceia-Constantinopla e talvez, até as liturgias históricas da igreja, os escritos

patrísticos e assim por diante. Não inclui a crença na democracia ou na monarquia

como forma de governo preconizada pela Bíblia, ou no capitalismo ou socialismo

como o sistema econômico bíblico por excelência. De alguma forma, porém, a maio-

ria dos cristãos corretamente entende que o cristianismo bíblico tem a ver com todas

as áreas da vida, entre as quais a política e a economia. Além disso, devido ao papel

histórico desempenhado pelo cristianismo no desenvolvimento da nossa cultura, é

razoável supor que os sistemas políticos e econômicos já levem em si a marca da

influência cristã que contribuiu para o seu crescimento. Na pior das hipóteses, esse

conservadorismo cristão pode degenerar numa forma irracional de nacionalismo “por

Deus e pela pátria”, incapaz de diferenciar a Grande Tradição das demais tradições.

Em sua melhor forma, ele sabe distinguir corretamente quais das nossas tradições

concordam com a Tradição por excelência, e busca preservá-las e levá-las adiante

(KOYZIS, D. T. 2014, p.109-110)

 

Busca por salvadores da pátria

No auge do surto parte-se em busca de quem possa vencer o grande inimigo, desmas-

carar a grande conspiração e guiar o país na marcha rumo ao passado glorioso ou ao futuro

revolucionário. As pessoas sentem que estão desprotegidas e projetam no líder a imagem do pai que será severo com os desobedientes e carinhoso com os filhos obedientes. Nesse

ponto saímos da ciência política e entramos na psicanálise e psiquiatria.

Retórica do caos

Se não for vencedora determinada opção político-partidária só restará o caos e como

nessa fase do surto as pessoas brigam umas com as outras, de algum modo, até torcem

pelo caos para que se possa dizer: “você viu como eu estava certo”. Nessa retórica do caos

inscreve-se também a não aceitação de outras visões de mundo como válidas.

A síndrome eleitoral e os cristãos

Cristãos e líderes religiosos estão entre os mais afetados pela síndrome eleitoral. Em

períodos eleitorais milhares de vídeos circulam na internet com falas de líderes religiosos di-

zendo: “olha… fiquei calado até agora, mas diante da grande ameaça decidi falar…”. Não será

difícil encontrar os cinco itens da síndrome eleitoral nessas falas: identificação do grande

inimigo, grande conspiração, passado idealizado, salvador da pátria e retórica do caos. Isso

aplica-se àqueles que estão à direita, à esquerda e no centro das opções políticas.

Filhos de Issacar, filhos da luz

Qual é o papel dos cristãos nesse período eleitoral? O que cabe à igreja? O que cabe

aos pastores e oficiais de uma igreja? Essas perguntas precisam ser feitas se realmente

desejamos entender qual é a “boa, agradável e perfeita vontade de Deus” para a igreja. A

igreja não será fiel à sua missão responsabilidade cristã se entrar pelo caminho indiferença

argumentando que cristãos são cidadãos do céu e, por isso, não tem nada a ver com esse

mundo. Assim como não ajudará em nada no processo se a igreja e o seus pastores assu-

mirem um papel de querer ensinar em qual candidato e partido os membros da igreja preci-

sam votar. Pior ainda, se isto for feito valendo-se do vocabulário e das atitudes das guerras

culturais da atualidade. Igrejas cristãs e pastores não devem assumir uma postura: essa é

a pessoa que vai destruir a fé cristã ou essa é a pessoa que vai salvar o país e os valores

cristãos. Esse é o voto que vai destruir a família ou esse é o voto que vai salvar a família.

Que podemos fazer, então? Qual deve ser a nossa atitude? O texto bíblico abaixo é um

bom ponto de partida para reflexão sobre o tema igreja e eleições:

 

Ora, este é o número dos homens armados para a peleja, que vieram

a Davi, em Hebrom, para lhe transferirem o reino de Saul, segundo a

palavra do SENHOR… dos filhos de Issacar, conhecedores da época,

para saberem o que Israel devia fazer, duzentos chefes e todos os

seus irmãos sob suas ordens (1 Crônicas 12.23-24)

 

A expressão “conhecedores da época” pode ser entendida como “estudiosos dos fa-

tos” ou ainda “conhecedores da história e suas consequências”. Eram pessoas bem-infor- madas, atualizadas, e buscavam compreender a realidade. Não só isso. Sobre “filhos de

Issacar” é dito que buscavam entender a realidade “…para saberem o que Israel devia fazer”.

Eram responsáveis pelo discernimento, pela lucidez. Eram pessoas que iam além da psico-

logia das massas e da síndrome eleitoral. Eles estudavam a história, checavam as informa-

ções, avaliavam as consequências das escolhas. Eles ouviam a razão e ouviam a voz de

Deus, eles liam os fatos da história e buscavam a vontade de Deus. A igreja cristã deveria

agir como a tribo de Issacar em cada país. A tribo de Issacar não era a mais numerosa, não

empunhava lanças, nem tocava tambores, mas ela tinha o discernimento espiritual dos

desafios de cada época histórica. Eles sabiam quais as batalhas que deviam ser lutadas

e quais não valiam a pena. Cristãos são chamados a conhecer a época em que vivem e a

ajudar a buscar os melhores caminhos para a paz e a justiça a nação.

Um aprofundamento dessa vocação da igreja para a lucidez em tempos de insanidade

aparece na carta de Paulo aos Efésios no segundo texto que lemos:

 

 

Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim

como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus. Por esta

razão, não vos torneis insensatos, mas procurai compreender qual a

vontade do Senhor. (Efésios 5:15-17)

 

 

Preste atenção que o apóstolo Paulo escreveu: os dias são maus. Eram maus, conti-

nuaram maus por toda duração do Império Romano. Não deixaram de ser maus quando o

Império Romano ruiu. O período medieval não fez dos dias os melhores. As luzes modernas

do iluminismo parecem ter cegado ainda mais as pessoas, em suma, os dias eram maus e

continuarão sendo maus até a consumação do reino de Deus. Isso não significa que o bem

comum não deva ser buscado, mas cristãos precisam se afastar da idolatria de pessoas e

períodos da história.

O cristão que vive em dias que são maus pode se comportar como insensato ou como

sábio. Pode remir o tempo ou pode desperdiçar o tempo precioso que Deus lhe concedeu.

A diferença entre uma coisa e outra está na busca pela compreensão de qual é a vontade

de Deus. Mas nesse contexto de síndrome eleitoral, de dias maus que vivemos no Brasil e

no mundo, qual é a vontade de Deus para o cristão?

Algumas dicas para tratar do assunto eleições com a igreja

Seja cauteloso com o uso do nome de Deus para defender posições políticas

A mistura tóxica entre cristianismo e campanha política não é uma exclusividade bra-

sileira. Numa das eleições nos Estados Unidos um candidato se dirigiu aos a um grupo de

pastores da seguinte forma: “cuidado, nós estamos a uma eleição de perdermos tudo”. O

que este político estava dizendo era: “olhe o meu partido é a minha eleição preservarão a

igreja e os valores bíblicos”.

Observe: quando pastores ou candidatos que são religiosos fazem declarações de que

se essa corrente ganhar estaremos seguros ou se aquela corrente política vencer, a igreja

e a família estarão em perigo, o que estão fazendo na verdade é declarando que confiam

mais no poder político do que em Deus. Analisando o uso do nome de Deus para defender

posições políticas o teólogo Michael Horton fez uma afirmação que merece ser ouvida em

nossa síndrome eleitoral: “Jesus não é um mascote para um reduto eleitoral, mas o salva-

dor do mundo.” Michael Horton prossegue, a meu ver profeticamente, dizendo:

 

 

Vamos encarar os fatos. Liberais e conservadores, católicos e pro-

testantes, cortejaram o poder político e alegremente se permitiram

ser usados por ele. Isto sempre acontece quando a igreja confunde o

reino de Cristo com os reinos da presente época. Jesus não veio para

impulsionar a teocracia em Israel, muito menos para ser o pai funda-

dor de qualquer outra nação. A única nação cristã no mundo hoje é

aquela reunida “de toda tribo e língua e povo e nação” (Ap 5:9) diante

do seu rei, Jesus. Em sua Grande Comissão, Jesus deu autoridade à

igreja para fazer discípulos, não eleitores desse ou daquele partido;

para proclamar o evangelho, não opiniões políticas; para batizar pes-

soas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, não em nome da

direita ou da esquerda; e ensinar tudo o que ele ensinou, não nossas

prioridades pessoais e políticas. E ele prometeu que sua presença

conosco é algo que o mundo nunca pode tirar. (Michael Horton fez

uma afirmação que merece ser ouvida em nossa síndrome eleitoral:

“Jesus não é um mascote para um reduto eleitoral, mas o salvador do

mundo.” (https://www.ultimato.com.br/conteudo/os-evangelicos-es-

tao-com-medo-o-que-eles-temem-perder)

 

 

É importante que cristãos não caiam na conversa dos buscadores de votos que utilizam

argumentos para explorar a síndrome eleitoral e a, partir disso, justificando sua eleição

prometendo que utilizarão o mandato político para proteger os cristãos contra os inimigos

da fé. Quem faz isso está fazendo de Jesus um mascote eleitoral e está tomando o nome

de Deus em vão. Jesus não é cabo eleitoral de nenhum pastor ou bispo evangélico.

Mas nesse contexto de síndrome eleitoral, de dias maus que vivemos no Brasil e no

mundo, qual é a vontade de Deus para o cristão?

Engaje-se na política para além das eleições

Na unidade de aprendizagem anterior foram apontadas algumas formas de engaja-

mento político que vai além do período eleitoral e do da lógica partidária. No módulo II, na

unidade de aprendizagem 2.3 foi apresentada a teologia pública e o tema do engajamento

da igreja em favor do bem comum. Essas são formas de ir além da participação motivada

pela síndrome eleitoral. A tradição brasileira é de baixíssimo engajamento político. A Pro-

clamação da Independência foi feita de cima para baixo, a República surgiu de cima para baixo. Ao longo de todo século XX esse é o nosso período democrático mais longo, quase

40 anos. Ainda assim, com tentativas de solapara a democracia, como os atos de golpistas

que culminaram no vandalismo de 8 de janeiro na Capital Federal.

Existe na cultura brasileira certo descaso com os assuntos comunitários, por exemplo:

participação nas associações de pais e mestres das nossas escolas ou reunião do condo-

mínio, ausência em assembleias da igreja e de condomínio. Cultiva uma cultura da vitória

individual e ao custo do fracasso coletivo. Foi Luís Fernando Verissimo que disse que no

Brasil aquilo que diz respeito a todos, parece não interessar a ninguém.

Confie em Deus, qualquer que seja o resultado das eleições

Numa democracia somos responsáveis pelas escolhas que fazemos e teremos de lidar

com as consequências, boas ou ruins. Confiar em Deus não significa que não sejamos res-

ponsáveis pelas escolhas políticas que são feitas por meio do voto. Porém, filhos de Issacar,

filhos da luz enxergam mais longe porque olham para a história de joelhos, enxergam mais

longe porque estão curvados em oração diante do Rei dos reis, do Senhor dos senhores.

Quem se curva diante de Deus jamais se curvará submissamente diante de qualquer gover-

no humano. Portanto, não se deixe ser dominado pela retórica do medo que aumenta seus

decibéis sempre que se entra em períodos eleitorais. Michael Horton ajuda-nos quando

afirma que “não é quando somos jogados aos leões que perdemos tudo; é quando prega-

mos outro evangelho, é quando confiamos mais em César do que em Cristo” (https://www.

ultimato.com.br/conteudo/os-evangelicos-estao-com-medo-o-que-eles-temem-perder).

 

PARA PENSAR

OX PARA PENSAR

Nosso hábito como cristãos é de lamentar os padrões deprava-

dos do mundo com um ar de desânimo um tanto farisaico. Cri-

ticamos sua violência, sua desonestidade, sua imoralidade sua

negligência com a vida humana e sua ganância materialista.

“O mundo vai de mal a pior” – dizemos encolhendo os ombros.

Mas de quem é a culpa? Deixe-me explicar de outra forma. Se a casa estiver escura ao

anoitecer, não faz sentido culpar a casa, pois é isso que acontece quando o sol se põe.

A pergunta a ser feita é: “Onde está a luz?”. Da mesma forma, se a carne estragar e for

impossível comê-la, não faz sentido culpar a carne, pois isso é o que acontece quando

as bactérias são deixadas ao léu para reproduzirem-se. A pergunta é: “Onde está o

sal?”. Assim também, se a sociedade se deteriora e seu padrões declinam ao ponto

de ela se tornar como uma noite escura ou como um peixe fedorento, não faz sentido acusar a sociedade, pois isso é o que acontece quando homens e mulheres decaídos

são deixados à sua própria sorte e o egoísmo humano não é contido. As perguntas a

serem feitas são: “Onde está a Igreja?” Por que a luz e o sal de Jesus Cristo não estão

permeando e mudando a nossa sociedade?”. É uma hipocrisia total de nossa parte de-

monstrar surpresa, indiferença ou apreensão diante desse contexto. O Senhor Jesus

nos disse para sermos sal e a luz do mundo. Se a escuridão e a podridão abundam,

grande parte da culpa é nossa e devemos aceitá-la. (STOTT, J. 2014, p. 89)

 

Alguns textos bíblicos para estudo ou pregação

Abaixo segue uma compilação de textos bíblicos que podem ser trabalhados com a

igreja em períodos eleitorais. Na seleção estão textos do Antigo Testamento e do Novo

Testamento. A contextualização dos textos é sempre importante para a construção de uma

interpretação que faça sentido para os dias de hoje. Lembre-se que no caso do Antigo Tes-

tamento havia uma concordância entre lei civil e lei religiosa. No Novo Testamento o quadro

é diferente, especialmente nas cartas dirigidas às igrejas estabelecidas fora de Israel. Apli-

cações do Antigo Testamento dirigidas à Israel não devem ser transpostas como dirigidas

aos países e seus governantes no modelo democrático atual. Lembre-se que a nação de

Israel vivia sob Aliança com Deus, a partir da vinda de Cristo não é uma nação/governo que

vive em Aliança com Deus, mas dentre todas as nações Deus estabeleceu sua Aliança com

aqueles que pertencem à igreja. Muitos erros são cometidos pela transposição simples e

direta de passagens dirigidas ao povo de Israel no Antigo Testamento para as nações mo-

dernas onde vivem cristãos. Seja cuidadoso, seja cuidadosa. Queremos orientar a Igreja

por meio da palavra de Deus e não usar a palavra de Deus para convencer nossos irmãos

e irmãs que esta ou aquela opção política é a única possibilidade de obedecer a vontade

divina em tempos de eleições.

 

 

ANTIGO TESTAMENTO

Êxodo 3 Juízes 9.7-21 1 Samuel 8.1-21 Neemias 1

Salmo 146 Isaías 5.8-30 Daniel 1 Miquéias 2,3,7

NOVO TESTAMENTO

Mateus 5.1-13 Mateus 14.1-12 Mateus 20.20-28 Mateus 22.15-22

Mateus 27.11-26 Lucas 2.1-20 Lucas 3.8-14 Lucas 4.1-13

Lucas 9.51-56 Lucas 10.25-37 Lucas 13.31-35 João 17

Atos 4 Atos 16 Atos 21-25 Romanos 13

Efésios 5,6 Colossenses 1.13-23 1 Timoteo 2.1-7 Tito 3.1-8

Tiago 5 Apocalipse 4,5

 

 

 

 

 

 

MÓDULO 5

UA1 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 1

O Conceito de Reconhecimento

Objetivos

Ao final do estudo desta Unidade, você deverá ser capaz de:

1 Definir o conceito de reconhecimento;

2 Diferenciar e descrever as dimensões do reconhecimento;

3 Reconhecer a presença do reconhecimento em conceitos teológicos;

4 Assumir a responsabilidade de reconhecer o próximo como eixo do processo

de santificação.

Preâmbulo

Chegamos à última semana de nossa disciplina Ciências Sociais. Nesta Semana o seu

trabalho está organizado de modo diferente do das semanas anteriores. Teremos apenas

duas (2) UAs, que tratarão do conceito filosófico-social do reconhecimento e aplicarão o

conceito à interpretação do livro de Rute. Após o estudo destas duas UAs você terá bastan-

te tempo para realizar a sua TA (Tarefa Avaliativa) que tem peso maior no cômputo geral

da avaliação do seu desempenho nesta disciplina. Estudaremos o conceito de reconheci-

mento a fim de você ter acesso a uma teoria geral da sociedade, posto que nos Módulos

anteriores nós tratamos de problemas, situações e conceitos específicos da vida social no

Ocidente moderno e contemporâneo.

O conceito do reconhecimento tem sido muito importante na filosofia social das quatro

últimas décadas, porque ele possibilita uma visão geral da vida social que não privilegia um

aspecto específico da sociedade, seja o aspecto econômico, seja o político, seja o simbólico.

O conceito de reconhecimento nos ajuda a olhar para a sociedade como um todo complexo e

interrelacionado, com dimensões econômica, política, educacional, religiosa, moral e de rela-

ções entre pessoas e instituições. Embora o conceito tenha sua origem na filosofia alemã do

século XIX e tenha sido revitalizado no século XX e XXI principalmente por autoras e autores

do hemisfério Norte, ele tem sido muito útil nos estudos sobre o Brasil.

De acordo com autores como Paulo S. C. Neves, Patrícia Mattos, Jessé Souza e

outros estudiosos brasileiros, a categoria do reconhecimento é valiosa para o estudo de nosso contexto na medida em que: (a) as demandas pelo reconhecimento são mais e mais

globalizadas, com conexões e influências entre diversos países e regiões do mundo; (b)

nas últimas décadas criou-se certo consenso nas Ciências Sociais brasileiras sobre o fato

de que as injustiças no país não são apenas econômicas, mas também oriundas de uma

forte carga simbólica, que reforça e naturaliza as diferenças sociais no país; e (c) enfim, a

cidadania das classes populares no Brasil é marcada por um déficit simbólico que limita as

possibilidades de exercício dos direitos de cidadania desses grupos.

Falando sobre as mudanças experimentadas no mundo contemporâneo nas últimas

décadas, o sociólogo brasileiro Jessé Souza assim se pronunciou:

 

 

Nesse contexto de rápidas transformações, uma perspectiva teórica tem logrado gal-

vanizar a atenção de pesquisadores de diversas áreas como uma opção promissora

para a autocompreensão de aspectos importantes da nossa situação atual. No centro

mesmo dessa perspectiva teórica encontramos a proposição da categoria do reconhe-

cimento social como uma noção fundamental para uma reflexão das novas contradi-

ções do momento em que vivemos. (SOUZA, 2000, p. 133)

 

 

Passemos, então, ao estudo do conceito!

1. O conceito em si

O estudo socio filosófico do conceito de reconhecimento tem como ponto de partida

as múltiplas possibilidades de significado do verbo reconhecer. Na língua portuguesa, no

dicionário Houaiss, encontramos os seguintes:

 

 

1 t.d. conceber a imagem de (uma pessoa, uma coisa que se revê) ‹r.

um amigo de infância›

2 t.d.bit. (prep.: por) distinguir (alguém ou algo) por certos caracteres

‹r. alguém (pela voz)›

3 pron. (prep.: em) distinguir a própria imagem e/ou traços morais em

(alguém ou algo) ‹reconheceu-se na determinação do neto› ‹reconhe-

ceram-se no retrato›

4 (sXV) t.d. admitir como verdadeiro, real ‹r. a sua inocência›

5 t.d. considerar com atenção; observar, explorar ‹r. lugares, terras›

6 t.d. mostrar gratidão a; agradecer ‹r. um favor›

7 t.d. tomar conhecimento de novo ou em outra situação; constatar ‹é

pelas ações que reconhecemos as pessoas›

8 t.d.bit. (prep.: por) distinguir os traços característicos de; caracteri-

zar, identificar ‹r. os viciados (pelo olhar vazio)›

9 t.d. e pron. contar (pecado, erro etc.); declarar(-se), confessar(-se) ‹r.

seus erros› ‹r.-se culpado›

10 t.d.,t.d.pred.bit. (prep.: a) ter por legítimo; admitir como bom, legal

ou verdadeiro ‹r. o governo de um país› ‹reconheceram-no como presi-

dente› ‹r. a um empregado seus direitos›

11 t.d.; jur perfilhar legalmente ‹r. o filho ilegítimo›

 

 

Note que o verbo é usado em diferentes ambientes semânticos: visual, político, jurídico,

social, existencial e epistemológico. O filósofo e teólogo evangélico francês Paul Ricoeur

escreveu um dos livros fundamentais sobre o conceito de reconhecimento. Em sua introdu-

ção, após estudar os usos do verbo reconhecer na língua francesa, ele afirma:

 

 

Minha hipótese é a ele que os usos filosóficos potenciais do verbo “reconhecer” podem

ser ordenados segundo uma trajetória que vai do uso na voz ativa para o uso na voz pas-

siva. Essa inversão no plano gramatical carregaria a marca de uma inversão de mesma

amplitude no plano filosófico. Reconhecer enquanto ato expressa uma pretensão, um

claim, de exercer um domínio intelectual sobre o campo das significações, das asserções

significativas. No polo oposto da trajetória, a solicitação de reconhecimento expressa

uma expectativa que pode ser satisfeita somente enquanto reconhecimento mútuo, quer

este permaneça como um sonho inacessível, quer ele requeira procedimentos e institui-

ções que elevam o reconhecimento ao plano político. (RICOEUR, 2006, p. 28)

 

 

Aproveitando essa ampla polissemia do verbo (e do substantivo dele derivado), filóso-

fos sociais tem se debruçado sobre o conceito, relendo os textos fundantes de dois filóso-

fos alemães: J. G. Fichte (1762-1814) e G. W. F. Hegel (1770-1831), atualizando o conceito

para o nosso tempo. Uma sociedade se mantém unida principalmente porque as pessoas

reconhecem: a si mesmas como membros e cidadãos da sociedade; aos demais seres hu-

manos como compatriotas ou ‘irmãos’; a legitimidade das instituições econômicas, sociais

e políticas que configuram a vida social. Essa unidade, porém, não é isenta de tensões e de-

sigualdades, de modo que o reconhecimento social não é perfeito, havendo manifestações

– em maior ou menor grau – de desrespeito de pessoas e grupos sociais.

Assim, como conceito normativo para a compreensão da vida social, entende-se, por

um lado, que é o reconhecimento mútuo que mantém juntas as pessoas em sociedade. Por

outro lado, vê-se que a falta de reconhecimento é o que motiva pessoas e grupos sociais a

agirem em busca de seus direitos: “são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de re-

conhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação norma-

tivamente gerida das sociedades” (HONNETH, 2003, p. 156). O oposto do reconhecimento

é o desrespeito, termo técnico que explica as diferentes formas de injustiça, violência e

discriminação existentes nas sociedades humanas.

2. As dimensões do reconhecimento

A primeira dimensão do reconhecimento é a do autorreconhecimento, que tem a ver

com o conhecimento que tenho de mim mesmo, reconhecendo-me como pessoa, membro

de uma sociedade, portador de direitos e de responsabilidades, que me relaciono com ou-

tras pessoas de diferentes formas (amizade, amor, coleguismo, vizinhança etc.). Podemos

dizer que é a primeira dimensão do ponto de vista lógico-conceitual, pois o autorreconhe-

cimento tem início na primeira infância e é fruto do relacionamento com as pessoas que

cuidam da criança e com objetos significativos que, em conjunto, possibilitam à criança

diferenciar-se de sua mãe e reconhecer-se a si mesma como uma pessoa própria.

Na vida social (seja no âmbito da família, do bairro, da empresa, ou da sociedade como

um todo), o autorreconhecimento é um processo que dura toda a vida da pessoa e engloba

o reconhecimento da: identidade própria, dos direitos como pessoa e cidadã, da responsa-

bilidade, da memória, do prometer e do dar, das capacidades de ação, trabalho e produção

de significado, da capacidade de construir e narrar a própria identidade diante dos outros

socialmente significativos. O autorreconhecimento, como já vimos brevemente, não é um

processo individual. Ele ocorre nos relacionamentos da vida social em todos os seus âm-

bitos e pode ser marcado por momentos e situações de desrespeito – com as suas con-

sequências. Em uma perspectiva teológica cristã, devemos acrescentar outra faceta do

autorreconhecimento: o reconhecimento da condição de pecador ou pecadora diante de

Deus, mas de pecador(a) que é amado(a) por Deus. Vejamos como João Calvino, por exem-

plo, apresenta essa dimensão do reconhecimento, tema que ele trata bem no início de sua

obra clássica:

 

 

Assim, do sentimento de ignorância, vaidade, indigência, enfermidade, enfim, de depra-

vação e da própria corrupção, reconhecemos que não está em outro lugar, senão em

Deus, a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a perfeita confluência de todos os

bens, a pureza da justiça, a tal ponto que somos estimulados por nossos males a consi-

derar os bens divinos. E não podemos aspirar seriamente a isso antes que comecemos

a nos desagradar de nós mesmos. Com efeito, que homem não descansa satisfeito

em si mesmo? Quem não repousa enquanto é desconhecido para si, isto é, enquanto contente com seus dons e ignorante ou esquecido de sua miséria? Por isso, o reconhe-

cimento de si não apenas instiga qualquer um a buscar a Deus, mas ainda como que o

conduz pela mão para reencontrá-lo. (CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã.

São Paulo: Unesp, 2007, 1.1.1, p. 37)

 

 

Decorre que é preciso o autorreconhecimento para que iniciemos nossa busca de Deus.

Todavia, e como é frequente em Calvino, o conceito é paradoxal, pois não podemos nos co-

nhecer verdadeiramente a não ser na comunhão com Deus:

 

 

  1. Consta, pelo contrário, que o homem jamais chega a um conheci-

mento puro de si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, des-

sa visão, desça para a inspeção de si mesmo. Assim é que, sendo a

soberba inata a todos nós, sempre nos vemos como justos, íntegros,

sábios e santos, salvo se, por argumentos evidentes, sejamos conven-

cidos de nossa injustiça, imundície, estupidez e impureza. Contudo,

não somos convencidos disso se voltarmos os olhos exclusivamente

para nós mesmos e não também para Deus, que é a única regra da

qual se deve exigir tal juízo. (CALVINO, op. cit., 1.1.2, p. 38)

 

 

Consequentemente, podemos reconhecer (no sentido epistemológico – conhecer in-

tensamente) que o autorreconhecimento, em sua plenitude, não é possível sem o conheci-

mento de Deus – dom que Deus mesmo nos dá em seu Filho e no Espírito. Em perspectiva

cristã, quando não me reconheço como pecador(a) estou, na prática, desrespeitando a mim

mesmo, ao não enxergar a verdade de minha condição humana, de modo que jamais serei

capaz de desenvolver plenamente esta primeira dimensão do reconhecimento.

Axel Honneth, um dos principais estudiosos do tema do reconhecimento, fala em três

dimensões da luta pelo reconhecimento, que apresento a seguir. A primeira dimensão do con-

ceito, em Honneth, envolve implicitamente o autorreconhecimento. Deste modo, podemos

falar em quatro dimensões do reconhecimento, começando com o autorreconhecimento e

englobando as três dimensões do conceito em Honneth (que segue Hegel neste ponto).

Para Honneth, a principal contribuição de Hegel foi a descrição do reconhecimento

como uma luta intersubjetiva travada em três diferentes dimensões – família, sociedade civil

e Estado – formando uma totalidade tridimensional.

A segunda (primeira em Honneth) dimensão do reconhecimento é fundada na condição

biológica da espécie e se dá nas relações interpessoais primárias (família, bairro, igreja lo-

cal, Deus…), as quais possibilitam, ou não, o desenvolvimento saudável da pessoa: “O reco-

nhecimento é caracterizado por um processo duplo, no qual o outro é libertado e, ao mesmo tempo, emocionalmente vinculado ao sujeito que ama. Assim, ao falar de reconhecimento

como um elemento constitutivo do amor, quer-se afirmar a independência que é orientada

– de fato, fundada – pelo cuidado” (HONNETH, 2003, p. 107). A dimensão “pessoal” do re-

conhecimento não pode ser motivada nem imposta pela lei ou pela normatividade da socie-

dade. Ninguém pode ser obrigado a amar outra pessoa, nem pode obrigar outras pessoas

a amarem-no. Sem o reconhecimento amoroso, entretanto, o desenvolvimento pessoal e

social do indivíduo é afetado negativamente, de modo que as patologias do cuidado mútuo

estão na base de comportamentos e estilos de vida violentos e antissociais.

Nesta dimensão, o desrespeito se dá de diversas formas – inimizade, indiferença, au-

sência de solidariedade, egoísmo, violência contra a pessoa (emocional ou física) – sendo

o estupro a forma mais dramática do desrespeito pessoal, na medida em que é um ato de

violência que afeta integralmente a sua vítima. O desrespeito pessoal não pode ser descrito,

porém, apenas como causado por ações individuais – deve-se levar em conta os elementos

estruturais da sociedade que contribuem para sua generalização. Por exemplo: o individua-

lismo consumista das últimas décadas gera um habitus social que está na base do desres-

peito pessoal.

A terceira (segunda para Honneth) dimensão do reconhecimento é a cidadã, que se

dá no âmbito da normatividade social e do sistema jurídico do Estado, e se constitui no

reconhecimento dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais de pessoas e grupos.

Enquanto a dimensão amorosa não pode ser legislada – posto que derivada diretamente

da natureza humana – a cidadã é constituída historicamente e se concretiza na estrutura-

ção jurídico-política da vida em sociedade (que se dá em função de direitos). No caso da

Modernidade, “as relações de direito, por sua vez, pautam-se pelos princípios morais univer-

salistas construídos na modernidade. O sistema jurídico deve expressar interesses univer-

salizáveis de todos os membros da sociedade, não admitindo privilégios e gradações. Por

meio do direito, os sujeitos reconhecem-se reciprocamente como seres humanos dotados

de igualdade, que partilham as propriedades para a participação em uma formação discur-

siva da vontade. As relações jurídicas geram o autorrespeito…” (HONNETH, 2003, p. 198).

É nesta dimensão que podemos inserir a questão da justiça social. Esta seria a concreti-

zação da dimensão cidadã do reconhecimento, posto que não é possível haver plena igualda-

de de direitos em situações de desigualdade socioeconômica intensa. A desigualdade social

provocada por relações econômicas injustas, por exemplo, é a forma básica de desrespeito

da dimensão cidadã do reconhecimento. A ela se acrescem outras formas de desrespeito

causadas pelas demais dimensões sistêmicas da sociedade. No caso do sistema político, a

corrupção, o populismo e o clientelismo são formas bastante conhecidas de desrespeito. No

caso da dimensão midiática do sistema social, a objetivação das pessoas e o crescente apelo ao individualismo e ao consumismo são manifestações de desrespeito. No caso da dimen-

são científica, o naturalismo reducionista é a ideologia básica do desrespeito.

A quarta (terceira em Honneth) dimensão do reconhecimento pode ser chamada de

simbólica (ou cultural), na medida em que ela tem a ver com a aceitação pública de proje-

tos e estilos privados de vida, ou seja, com a valorização da contribuição peculiar de cada

indivíduo ou grupo social para o bem geral da sociedade. Segundo Honneth, “os sujeitos

humanos precisam […] além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento ju-

rídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades

e capacidades concretas” (HONNETH, 2003, p. 198). Ora, é no interior de uma comunidade

de valores, com seus quadros partilhados de significação, que os sujeitos podem encontrar

a valorização de suas identidades peculiares. Em decorrência do pluralismo, “nas socieda-

des modernas, as relações de estima social estão sujeitas a uma luta permanente na qual

os diversos grupos procuram elevar, com os meios da força simbólica e em referência às

finalidades gerais, o valor das capacidades associadas à sua forma de vida” (HONNETH,

2003, p. 207). Assim, questões privadas ultrapassam as fronteiras tradicionais e se tornam,

também, públicas – tais como questões de gênero, opção religiosa, gosto artístico etc. – e

invadem o território da ética pública. Neste caso, além das ações individuais, formas estru-

turadas de desrespeito podem ser percebidas na vida social – discriminação, preconceito,

intolerância são as formas mais evidentes de desrespeito simbólico.

Temos, assim, que às quatro dimensões do reconhecimento correspondem três dimen-

sões do desrespeito: (a) a que afeta a minha compreensão de mim mesmo e de meu lugar

diante de Deus; (b) a que afeta a integridade psicocorporal dos sujeitos e destrói sua au-

toconfiança básica; (c) a que provoca a negação de direitos de cidadania, que bloqueia o

autorrespeito e provoca o sentimento de não possuir o status de igualdade; e (d) a que afeta

negativamente o valor do modo de viver de certos indivíduos e grupos, impossibilitando a

autoestima dos sujeitos. O desrespeito impede a realização plena do indivíduo em sua rea-

lidade social. O desrespeito, portanto, é o termo que engloba as diversas categorias expli-

cativas das injustiças sofridas por seres vivos – pessoas, grupos sociais, comunidade etc.

podem ser desrespeitados em quaisquer das dimensões do reconhecimento, sendo, assim,

privadas da dignidade e da justiça indispensáveis à vida em sociedade.

3. A forma ativa do reconhecer

Nas descrições filosóficas do reconhecimento, o modo ‘receptivo’ do reconhecimen-

to é o mais estudado – se não sou reconhecido, vejo-me como vítima de injustiça. Essa

percepção do desrespeito é que, segundo Honneth e outros, motiva o ser humano à busca

de transformação social. Em perspectiva teológica, porém, devemos enfatizar também o

modo “ativo” do reconhecer (o outro). O modo como reconhecemos o próximo deriva do modo como Deus nos reconhece e, consequentemente, do modo como recebemos o reco-

nhecimento divino. Precisamos estar conscientes da necessidade de revisar alguns con-

ceitos teológicos importantes do senso comum eclesiástico (embora não possamos fazer

isto nesta disciplina).

Em primeiro lugar, podemos dizer que Deus nos reconhece como seus filhos e filhas.

Embora Deus conheça nossa situação de pecado, ele não nos reconhece como ‘pecadores

condenados’, mas como pessoas amadas por Ele e que recebem dEle o reconhecimento na

forma de justificação e reconciliação. Paulo, por exemplo, descreve a justificação e a recon-

ciliação como componentes do reconhecimento ativo de Deus em relação ao ser humano:

 

 

6 Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo

pelos ímpios. 7 Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois pode-

rá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. 8 Mas Deus prova o

seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós,

sendo nós ainda pecadores. 9 Logo, muito mais agora, sendo justifica-

dos pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. 10 Porque, se nós,

quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do

seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela

sua vida; 11 e não apenas isto, mas também nos gloriamos em Deus

por nosso Senhor Jesus Cristo, por intermédio de quem recebemos,

agora, a reconciliação. (Rm 5,6-11).

 

 

Preste atenção ao uso de palavras que indicam a condição humana alienada de Deus:

fracos, ímpios (v. 6), pecadores (v. 8), inimigos (v. 10). Se Deus nos reconhecesse nessa

condição, não teríamos jamais acesso à salvação. Deus sabe, conhece que somos peca-

dores, mas nos reconhece em Cristo como pessoas amadas por Ele, pessoas a quem Ele

deseja reconciliar consigo mesmo. Na morte do Messias, condenado e executado pelos

governantes romanos, o amor de Deus é demonstrado de forma cabal, transformadora. O

Messias morre como representante de toda a humanidade pecadora de modo que, nele,

Deus nos reconhece como seus filhos e filhas. No Messias, somos justificados, reconcilia-

dos com Deus, libertados do julgamento pelo pecado.

O reconhecimento, porém, precisa ser mútuo. Jamais o reconhecimento é automático

ou um processo de mão única. Deus nos reconhece e nos convida a reconhecê-lo tam-

bém. O que chamamos de conversão é o nosso modo de reconhecer Deus como nosso

Senhor e Salvador: cremos no Messias Jesus, reconhecemos o seu amor e sacrifício por

nós, entregamos nossa vida a Ele para, pela fé, viver na plena presença de Deus por toda a

vida (atual e pós-morte). Vejamos o que outro teólogo fala da relação de reconhecimento

mútuo com Deus, inaugurada pela ação de Deus no Messias:

 

[essa relação] é uma realidade que abre novas possibilidades. “A pessoa justa viverá

pela fé” (Rm 1,17; Hc 2,4). E vida verdadeira sempre significa uma vida vivida em meio

a possibilidades genuínas. […] A justificação da pessoa ímpia, que é a verdade que nos

liberta, fala negativamente a respeito das mentiras fatais que podem muito bem apa-

recer como ofertas de sentido. Uma vida vivida com base na justiça de Deus será uma

vida vivida na liberdade em relação à existência vergonhosa na qual pecadores estão en-

redados e na qual podem ser destruídos. (JÜNGEL, Eberhard. Justification. The heart

of the Christian faith. A Theological Study with an Ecumenical Purpose. Edimburgo: T

& T Clark, 2001, p. 261.265)

 

Dentre as novas possibilidades de viver abertas pela justificação, reconhecer o outro

é central. O termo teológico usado em o Novo Testamento, neste sentido, é amar. O amor

é o eixo da santificação da pessoa justificada e reconciliada, conforme, por exemplo, nos

ensina o apóstolo Paulo:

13 Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para

dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. 14 Porque toda a lei se

cumpre em um só preceito, a saber:“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. 15 Se vós,

porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos.

16 Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. (Gl 5,13-

16). Amar ao próximo como a mim mesmo – eis a descrição teológica do reconhecimento

mútuo. E este reconhecimento (epistêmico) de que somente mediante o amor é possível

o pleno reconhecimento mútuo, destaca os limites de toda ação humana (sem Deus) de

busca de reconhecimento e construção de sociedades justas.

Podemos, para encerrar este segmento, falar do reconhecer como um processo com

dois componentes fundamentais: (a) solidariedade constitutiva da busca social e não-vio-

lenta pelo reconhecimento, (b) o amor incondicional a Deus que nos leva a amar a nós

mesmos e ao próximo – que, por sua vez, se concretiza publicamente na missão. Se, por

um lado, o desrespeito percebido como tal é fonte motivadora para a ação das suas vítimas;

por outro, o reconhecer a necessidade, os direitos, a identidade do outro é fonte motivado-

ra para a ação de quem não é, necessariamente, vítima do desrespeito. Reconhecer – em

sentido ativo e solidário – equivale ao “sacrifício” necessário para o exercício pleno da cida-

dania, e que não pode ser motivado apenas mediante recursos humanos.

 

Conclusão

A partir do conceito de reconhecimento, portanto, a vida e a mudança social podem

ser descritas em termos éticos integrais. No que tange, por exemplo, à dimensão cidadã do

reconhecimento, a mudança social exige a concretização e ampliação dos direitos univer-

salizáveis, igualdade perante a lei, justiça etc. Ou, no que tange à dimensão simbólica do

reconhecimento, a mudança social passa pela valorização da diversidade cultural e identi-

tária, do pluralismo e da liberdade religiosa, visando a superação da intolerância e violência.

Infelizmente, o tempo não nos permite ir além. Fica o convite, assim, para que você, a seu

tempo, faça o aprofundamento do estudo do reconhecimento.

Para concluir nosso estudo, na próxima UA apresentarei um exemplo de leitura da Es-

critura a partir do conceito de reconhecimento, interpretando o livro de Rute.

 

 

 

UA2 –

UNIDADE DE APRENDIZAGEM 2

2. Exemplo de leitura bíblica a partir do conceito de Reconhecimento

Objetivos

1 Reconhecer a presença do conceito de reconhecimento na leitura bíblica de Rute;

2 Destacar as características básicas da leitura narrativa da Bíblia

Preâmbulo

Encerraremos nossa disciplina estudando o livro de Rute. Uma pequena narrativa (4

capítulos, cerca de três páginas) cujo conteúdo é situado no período da história de Israel

anterior ao estabelecimento do reinado – período tribal como se convencionou chamar. Pe-

quena, mas bela, complexa e de alta relevância para uma leitura bíblica que visa reintegrar

ética, espiritualidade e missão a partir do olhar público da fé para o texto sagrado. Pequeno

livro que recebeu diversas leituras e interpretações ao longo da história, especialmente nos

tempos da Modernidade para cá, quando a exegese se consolidou como atividade acadê-

mica. Não gastarei nosso tempo aqui com a resenha dessas diferentes formas de inter-

pretação do livro de Rute – nas leituras complementares você encontrará três textos sobre

o livro de Rute que não só darão as informações necessárias, como também oferecerão

contrapontos e diálogos com a interpretação aqui apresentada.

Vamos, então, ao que interessa?

1. O livro de Rute: considerações introdutórias

Começo de uma forma tradicional na pesquisa exegética: para ler um livro é preciso

acompanhar a sua estrutura. Na primeira Unidade desta disciplina apresentei a estrutura

do livro de Rute:

A 1,1-5 A estrangeira sem descendência

B 1,6-22 Noemi, go’el de Rute

C 2,1-23 Rute a serviço de Boaz

C’ 3,1-18 Boaz a serviço de Rute

B’ 4,1-12 Boaz, go’el de Rute

A’ 4,13-22 A estrangeira ‘mãe’ de Davi

Como aproveitar a estrutura de um livro na sua interpretação? Neste caso, uma estru-

tura quiástica nos oferece pelo menos dois caminhos para ler o livro: (a) seguir a sequência

dos versículos e capítulos, notando os contrastes que aparecem nas diferentes seções e

buscando, em especial, o ponto climático da narrativa; e (b) seguir a sequência dos parale-

los estruturais, iniciando com os centrais (a parte mais importante do livro estruturalmente

falando) e partindo destes para os demais, notando como o tema central do livro é cons-

truído a partir dos demais contrastes estruturais. Você pode fazer a experiência de seguir

esses dois modos e ver se os resultados são diferentes…

Outro modo de ler uma narrativa, não tão tradicional, mas já importante na exegese

bíblica acadêmica, é o de seguir os princípios da teoria literária. João Leonel, pesquisador

presbiteriano da Universidade Mackenzie tem se dedicado a este tipo de pesquisa. Segun-

do ele, ao lermos literariamente um texto bíblico:

 

 

devemos nos perguntar: Quem conta a história? Ou seja, quem é o narrador? Como ele

narra? Quais são os personagens? Quem ou quais são os personagens centrais? Quais

os secundários? Como eles contribuem para que a história progrida? Quais sãos os ce-

nários? Onde o enredo se desenvolve? Há mudança de cenários? Isso é relevante? Em

que período a história é situada? Isso é importante? Há mudança de tempo? Por fim,

como o enredo é construído a partir dos componentes citados anteriormente?

(http://bibliasobtresolhares.blogspot.com.br/2011_02_06_archive.html)

 

 

Outra experiência que você pode empreender…

Uma terceira maneira de interpretar um texto bíblico como o livro de Rute é fazer per-

guntas a partir das situações de injustiça presentes no contexto de quem interpreta, por

exemplo: (a) uma leitura a partir da situação da mulher; (b) uma leitura a partir da situação

de migrantes; (c) uma leitura a partir das questões de raça; etc. Nas leituras complementa-

res você encontrará exemplo de algumas dessas formas de leitura ‘contextual crítica’ como

eu gosto de chamá-las.

Outra forma de leitura de um livro bíblico, pouco comum e ‘herética’ nos espaços aca-

dêmicos convencionais é partir da recepção do livro bíblico (ou tema, ou perícope, ou cena)

nas artes. Paulo Nogueira, no blog já citado, fez esse tipo de leitura usando as litografias

de Marc Chagall sobre o livro de Rute (cinco litografias criadas em 1960 como parte de um projeto iniciado em 1958 com várias outras litografias sobre personagens bíblicos). Você

pode seguir a leitura de Paulo, ou pode se aventurar na interpretação das litografias de Cha-

gall (http://www.galerieart.cz/chagall_bible2.htm).

Bem, há várias outras maneiras de interpretar a Bíblia, mas ficamos por aqui nesta bre-

víssima descrição e provocação. A seguir, apresentarei a minha leitura de Rute – utilizando

a metodologia sêmio-discursiva a partir da pergunta pública e da busca de reintegrar ética,

espiritualidade e missão. Isto me permitirá tirar proveito dessas diferentes formas de leitura

do livro de Rute e incorporá-las em nossa própria reflexão.

2. Lendo Rute a partir de Questões de Gênero, Raça e Migração

O livro de Rute inicia de modo tradicionalmente patriarcal. O narrador apresenta as

personagens principais: Elimeleque e seus dois filhos, bem como as personagens coadju-

vantes – as esposas Noemi, Orfa e Rute (1,1-5), mas imediatamente o cenário se modifica

com a morte dos três homens, de modo que Noemi passa a ser a personagem principal

juntamente com suas noras. A partir do verso 6 até o verso 22 do primeiro capítulo a voz é

das mulheres que dialogam e decidem o que fazer de suas vidas. No capítulo 2 é Rute que

se torna a personagem principal e entra em cena Boaz, o seu coadjuvante. Note que o verso

1 introduz a cena (Noemi tem um parente …), mas a partir do verso 2 é Rute quem fala e

toma a iniciativa como trabalhadora, o capítulo conclui no verso 23 com uma espécie de

anticlímax: Rute trabalhando com as demais servas de Boaz e morando com sua sogra. No

capítulo 3 Noemi retoma a iniciativa. Vendo a situação ‘parada’ de sua vida com Rute, ela

propõe à nora um projeto dentro dos limites do mundo patriarcal em que viviam: “que tal, ao

invés de servir a Boaz como as outras, você seduzi-lo e se tornar a sua esposa? Assim, você

terá terra, descendência e segurança – e eu também terei meu futuro garantido”. E assim

Rute se foi e realizou o projeto feminista-patriarcal de Noemi – chegamos ao clímax da nar-

rativa com Rute seduzindo Boaz na eira à noite. Segue-se o capítulo 4 que, em sua primeira

parte (versos 1-12) tem Boaz como protagonista e o parente-redentor de Noemi mais os ho-

mens da região como coadjuvantes – a voz das mulheres some da narrativa, mas elas não!

Noemi é anunciada por Boaz como ‘protagonista’: irá vender a terra de seu marido falecido!

Mas, como? A terra era dela? Se era, por que ela propôs a Rute o casamento com Boaz ao

invés de ela e Rute cuidarem de sua própria terra? Bem, deixemos este detalhe guardado

para uso posterior.

Boaz astutamente consegue convencer o parente-redentor de Noemi a não usar seu

direito (para esse parente, a terra seria algo bom, mas não Rute, que criaria um problema

econômico para ele). Boaz, então, resgata a terra, assume Rute como esposa, recebendo a

bênção dos anciãos que se materializa no desejo de que ele se torne pai de multidão em Israel.

Chegamos ao desfecho da narrativa. Mas, algo mais está por vir. O desejo dos anciãos se realiza. Rute dá à luz e o garoto se torna ancestral

do futuro rei Davi – o grande modelo de monarca

na literatura da época do livro de Rute. A seção

final (4,13-22) do livro de Rute mescla mulheres e

homens como protagonistas. Em primeiro lugar,

as mulheres: Rute dá à luz; as mulheres israelitas

abençoam Noemi (não nos esqueçamos: Boaz

aparece em primeiro lugar no capítulo, mas apenas

como progenitor do filho de Rute). Em segundo, os

homens – meramente nomeados em uma lista

genealógica que termina em Davi.

Que aprendemos no tocante a gênero? Primeiro, a pessoa não precisa ser definida pelo

seu entorno (estrutura). Noemi era uma mulher gerada e vivida em um mundo patriarcal –

subalterna em relação aos homens, objeto de troca econômica de seu pai e, mesmo quando

‘proprietária de terras’, impossibilitada de gerenciar a sua terra e sustentar-se de modo autô-

nomo. Em segundo lugar, gênero é uma definição identitária, é uma construção de subjetivi-

dade. Para Noemi, ser mulher (gênero) não era assumir resignadamente o papel que lhe fora

dado pela família e pela sociedade. Foi além, tornou-se protagonista: conhecia as possibili-

dades materiais e legais para sua sobrevivência, estava empoderada pela fé (o Deus de Israel

aparece oito vezes na fala de Noemi no primeiro capítulo, só mais onze vezes nos demais

capítulos do livro) e soube planejar uma estratégia para se tornar emancipada juntamente

com sua nora Rute, a quem jamais deixou de ser fiel (cumprindo, assim, o ethos da berit de

YHWH). Terceiro: assumir seu próprio modo de viver o gênero particular não é uma prática

de negação do ‘outro’ gênero, mas de autoemancipação que possibilita (mas não de modo

automático) a emancipação do outro gênero. Boaz aprendeu com Rute e Noemi – sua reação

à sedução de Rute não foi ‘machista’ – ele não tirou proveito da sensualidade daquela ‘serva’

de sua fazenda. Ele a viu e a tratou como pessoa (3,10-13) e, em especial, viu nela a pertença

à aliança de YHWH, viu nela a sua fidelidade benigna. Ele também não se deixou definir pelo

seu entorno, e olhe que ele já estava com uma certa idade, aquela em que se costuma dizer

que ‘nada mais muda’. Boaz se deixou afetar pela bondade fiel de Rute, de modo que sua

masculinidade (gênero) não funcionou de modo patriarcal (machista).

Além das questões de gênero, o livro nos permite abordar questões de raça. O livro

inicia com Elimeleque e seus filhos saindo de Israel e migrando para Moabe a fim de es-

capar da fome. Em Moabe os filhos se casam com moabitas e, após dez anos, morrem

deixando as viúvas na terra: sua mãe Noemi e as duas esposas. Rute, a moabita, declara

sua fé no Deus de Noemi e sua pertença à aliança (1,16 – os termos da relação de aliança

estão presentes na fala de Rute). Aparentemente, tudo simples – a fome faz você mudar de país, no novo país você se casa etc., etc. Porém, nada mais anormal e complicado do

que este relato aparentemente ingênuo. Por quê? A resposta é bíblica: (a) “Acabadas, pois,

estas coisas, vieram ter comigo os príncipes, dizendo: O povo de Israel, e os sacerdotes, e

os levitas não se separaram dos povos de outras terras com as suas abominações, isto é,

dos cananeus, dos heteus, dos ferezeus, dos jebuseus, dos amonitas, dos moabitas, dos

egípcios e dos amorreus…” (Ed 9,1); (b) “Naquele dia, se leu para o povo no Livro de Moisés;

achou-se escrito que os amonitas e os moabitas não entrassem jamais na congregação de

Deus, porquanto não tinham saído ao encontro dos filhos de Israel com pão e água; antes,

assalariaram contra eles Balaão para os amaldiçoar; mas o nosso Deus converteu a maldi-

ção em bênção” (Ne 13,1-2).

Raça, como gênero, não é uma realidade biológica, mas política e cultural. Que ha-

via de errado com os moabitas? Biologicamente, nada. Porém, ressalta o texto citado de

Neemias, eles não só não ajudaram Israel como ainda o amaldiçoou! Classificar uma raça

como inferior é procedimento similar ao de classificar um gênero como inferior. Atribui-se

ao inferior uma culpa, de modo que pode ser demonizado justificadamente pelo que se con-

sidera superior, que pode invocar o próprio Deus como cúmplice da classificação injusta. A

classificação, por sua vez, fundamenta a exclusão. O livro de Rute, porém, lê a situação de

modo inverso. O casamento de Boaz com a moabita – que era parte, sim, da ‘congregação

de Israel’, mas não por decisão sacerdotal ou de escribas, mas por decisão do próprio Deus

e reconhecimento pelo povo da região – não foi maldição, mas foi bênção, ou seja, o texto

habilmente tira proveito do seu discurso opositor em Neemias 13 e o coloca a seu servi-

ço. Neemias afirma que “nosso Deus converteu a maldição [dos

moabitas] em bênção” e o livro de Rute anuncia o nascimento

do filho de Rute como bênção (4,11-12) e, mais, para garantir

que a crítica a Neemias 13 ficasse bem clara: o garoto ‘mesti-

ço’ e impuro foi ancestral do grande rei Davi – aquele que deu

a Israel o seu maior território, logo, sua maior bênção! Assim

como Deus não classifica gêneros, também não classifica ra-

ças. Todas as pessoas são suas criaturas, filhas e filhos de um

único Pai e Mãe (cf. Efésios 3,14-4,6). (Imagem: Estela de Mesa,

narra a guerra entre o rei de Mesa e os israelitas. Fonte: https://

pt.wikipedia.org/wiki/Moabitas. Acesso em 11.2.2024)

E os migrantes? No livrinho de Rute migrantes são famílias

que fogem da fome e, consequentemente, da morte. Migrar não é passeio, turismo ou en-

tretenimento. É busca de sobrevivência. É busca de realizar o direito humano mais ele-

mentar: continuar vivo. Impedir a imigração é patrocinar a morte, é desrespeitar o direito

básico à sobrevivência com um mínimo de dignidade. Atualmente, restringir os direitos de imigrantes é sentenciar à morte aquelas que já são vítimas de uma economia global injusta

e assassina. Na Escritura judaica, migrantes são a matriz do povo de YHWH. Abraão foi o

primeiro migrante eleito e de sua semente duas grandes famílias de povos nasceram. O

primeiro migrante da história – forçado é claro – Caim, foi protegido por Deus para não ser

morto pelos estranhos. Migrantes convocam – solidariedade ou medo. A escolha é decisiva

– se optamos pelo medo, nos tornamos patrocinadores da morte. Se optamos pela solida-

riedade, nos tornamos abençoadores e promotores da vida. Em um mundo injustamente

globalizado há que se criar e defender com radicalidade os direitos de imigrantes, jamais de

demonizá-los, classificá-los e exclui-los.

3. Questões de Justiça Social e Política

Você já percebeu que as questões de gênero, raça e migração são, simultaneamente,

questões específicas e genéricas – tratam de formas de subjetividade e tem a ver com a

justiça social e política. Assim, dividir tematicamente tem uma força didática apenas na

medida em que o tratamento separado não se tornar classificação isoladora. Como pode-

mos ler as questões da justiça em Rute. Por um lado, a narrativa aponta para a busca e a

concretização de formas de justiça social e política – emprego para quem precisa, partilha

de bens como expressão de solidariedade aos mais fracos, terra para quem tem o direito

a ela, participação das pessoas em pro-

cessos decisórios (3,9-10), governo nas

mãos da própria população, ‘representada’

pelos anciãos (chefes de clãs ou de famí-

lias 3,11-12). Por outro, porém, as marcas

da injustiça estão presentes. No começo,

a fome e a migração. Ora, se Elimeleque

migrou, faltou solidariedade de seus vizi-

nhos; ou faltou organização para lidar co-

letivamente com a situação de escassez.

Na volta de Noemi e Rute à região de Be-

lém, há mulheres trabalhando para Boaz, o

que sugere a existência de ‘pais’ sem-ter-

ra ou endividados. Rute foi aos campos de Boaz aproveitando o direito consuetudinário

da época: não-proprietários de terras poderiam colher nos cantos e divisas da plantação,

mas não poderiam entrar adentro da mesma. (Fonte da Imagem: https://fas.caxias.rs.gov.

br/?p=5260. Acesso em 11.2.2024)

O que ressalta, porém, é a ausência de reflexão no texto sobre o patriarcalismo. Que

podemos aprender sobre justiça ao constatarmos estes dados no livro? Primeiro: justiça plena não é parte da realidade do mundo pré-monárquico israelita – e nem do tempo da

escrita do livro (sob a dominação imperial). Segundo: a justiça precisa ser vista em sua

pluralidade dimensional, em uma sociedade a justiça pode ocorrer em algumas dimensões,

mas não em outras. Terceiro: onde há emancipação, empoderamento e autonomia para

sustentar a vida, aí há justiça. Não se trata, portanto, apenas de distribuir adequadamente

o dinheiro e o poder decisório. É preciso haver justiça de gênero, raça, cultura… Hoje em dia

as melhores teorias da justiça caminham nessa direção: a teoria das esferas da justiça de

Michael Walzer, ou a teoria da justiça de John Rawls, ou a teoria da justiça como plural a

partir do direito de justificação criada por Rainer Forst, ou a teoria da justiça como fruto do

reconhecimento e da liberdade de Axel Honneth. Lendo Rute e lendo estas novas teorias

da justiça podemos fazer a crítica retrospectiva das teologias latino-americanas do final do

século passado: Teologia da Libertação e Teologia da Missão Integral – ambas operaram

com uma teoria meramente distributiva da justiça e focaram em demasia nas estruturas

político-econômicas. Justiça é mais e, também, menos.

Em termos de fundamentação, o livrinho de Rute situa toda a narrativa no âmbito de

uma teologia da bêrit (aliança ou parceria). Ou seja, a questão fundamental da vida coletiva

é a questão da pertença mútua – Rute já o havia percebido: “teu povo será o meu povo e

teu Deus será o meu Deus” (1,16b). Boaz o reafirma e é apoiado pelos anciãos e pelo povo:

“Então, Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: Sois, hoje, testemunhas de que comprei da

mão de Noemi tudo o que pertencia a Elimeleque, a Quiliom e a Malom; e tomo por mulher

Rute, a moabita, que foi esposa de Malom, para suscitar o nome deste sobre a sua herança,

para que este nome não seja exterminado dentre seus irmãos e da porta da sua cidade; dis-

to sois, hoje, testemunhas. Todo o povo que estava na porta e os anciãos disseram: Somos

testemunhas; o YHWH faça a esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como

a Lia, que ambas edificaram a casa de Israel; e tu, Boaz, há-te valorosamente em Efrata e

faze-te nome afamado em Belém. Seja a tua casa como a casa de Perez, que Tamar teve

de Judá, pela prole que o YHWH te der desta jovem” (4,9-12). Através de Rute o nome de

Malom continuará vivo em Israel e a casa de Boaz será como a casa de Perez. Por isso, pre-

firo as teorias da justiça de Forst e Honneth, pois ambas transcendem os limites da justiça

distributiva e retributiva e situam a justiça no campo das relações mútuas entre pessoas.

Enfim, se o texto é do período pós-exílico, oferece um importante exemplo da luta popu-

lar contra a identidade étnico-religiosa monocêntrica legitimadora que se estava construin-

do no período persa. Parte da construção da justiça é a resistência contra a dominação in-

justa e sua fundamentação teológica e ideológica. Para buscar e construir justiça também

há que se pensar, há que se fazer teologia, há que se fazer teoria. Resistência, pensamento,

planejamento, ação, persistência, discernimento: atitudes humanas indispensáveis para a

realização da justiça. Ética, espiritualidade e missão se reintegram na busca por justiça, em qualquer de suas dimensões, em qualquer de suas situações.

4. Experiência de Deus a partir do gênero

A experiência de Deus sempre ocorre contextualmente, situadamente. Não há uma expe-

riência universal a ser buscada e vivenciada por todas as pessoas. Experiência é sempre úni-

ca, por isso, mutável, falível, ambígua, e inevitavelmente importante para cada um e uma de

nós. Vamos examinar a experiência de Noemi, a partir de suas próprias palavras em Rt 1,6-22.

Ao lermos este relato, o que primeiro me chama a atenção é que a situação de fome

que provou a ida de Noemi para Moabe não é atribuída a Deus – o seu sujeito é indetermi-

nado (Rt 1,1). Logo no início da fala de Noemi, porém, a Deus se atribui a volta do sustento

à terra (1,6) e no decorrer da fala a má-sorte de Noemi também é atribuída a Deus. Duas

teologias percorrem nosso texto? A do narrador e a de Noemi? Verifique você mesma(o).

Deixo aqui apenas a pergunta.

Vamos, porém, à análise da experiência de Deus de Noemi.

 

 

Nos versos 6-7 se diz que as mulheres viúvas, sabendo da condição

econômica em Judá, “começaram a voltar”. O percurso passional ca-

nônico pode ser assim descrito: (a) o cenário aflitivo de Moab aliado

ao conhecimento do cenário não-aflitivo em Judá oferecem a disposi-

ção para a ação, modalizando o sujeito (Noemi e noras) da passivida-

de para a atividade – para liquidar a paixão de falta, o sujeito precisa

ser modalizado por uma paixão-do-querer; (b) a memória da vida em

Judá antes da mudança para Moab (terra, parentes, amigos, familia-

ridade) e a nova descrição da relação do Senhor com seu povo (v. 6ª)

concretizam a sensibilização de Noemi para voltar à terra, em busca

da liquidação do que lhe faltava; (c) a performance ou emoção é a de

‘emunah (fé ou fidelidade) [trata-se de uma paixão fiduciária, pois é a

nova percepção da ação de YHWH que faz Noemi voltar. A tradução do

hebraico é complicada, pois não é clara a distinção entre fé, fidelidade

e esperança nos usos do termo ‘emunah. Minha opção é fidelidade,

que possui um tom mais intensamente pessoal do que fé e esperan-

ça]; e (d) a sanção está subentendida. A insistência de Rute pode ser

um indicativo de que o texto vê a nova paixão de Noemi (e Rute) como

positiva. Que, ao final da estória, no capítulo 4, Noemi seja exaltada

pelas mulheres (4,14-17), é indicação do caráter positivo atribuído à

fidelidade. Ressalto aqui a importância do texto atribuir às mulheres

que voltam uma paixão fiduciária (e não uma objetual). Por mais que

Noemi buscasse liquidar a falta sentida, sua modalização passional

é pessoal – busca conjunção com YHWH para alcançar a conjunção

com o sustento necessário. “Pão, família, terra”, sim – mas com e sob

YHWH! Se compararmos esta análise com o post anterior do Leonel,

podemos ver como a fidelidade de Noemi para com YHWH é flutuan-

temente teimosa (persistente) – YHWH teria deixado de “pesar sua

mão” sobre ela? Ou, como o verso 6 afirma, Noemi teria percebido que YHWH mudou de atitude para com “o povo”, mesmo que não o

tenha mudado em relação a ela mesma? Na crença de Noemi, YHWH

é retratado com paixões conflitantes e o modo como o texto faz tal

descrição tenta preservar o caráter de YHWH, ao deixar no ar o motivo

da Sua mão ter pesado sobre Noemi (Formosa), a tal ponto dela se ver

como Mara (Amargurada)? Apesar da má-sorte que pesava sobre ela,

Noemi decide voltar e se colocar, mais uma vez, debaixo do alcance

da mão de YHWH. Não é à toa que jamais na Bíblia Hebraica se des-

creve o ser humano como fiel! Nossa fidelidade é ambivalente. (http://

bibliasobtresolhares.blogspot.com.br/2011_04_24_archive.html)

 

 

Outro olhar pode nos ajudar a entender melhor a espiritualidade de Noemi:

 

A fé da moabita convertida a Yahweh parecia ser maior do que a da

própria israelita Noemi. Noemi sabia da existência de familiares na

aldeia, mas sua autoestima estava muito prejudicada; além disso, seu

ânimo para procurá-los não era suficiente. Provavelmente nenhum pa-

rente moveu uma palha sequer para sustentar as duas viúvas, mes-

mo sabendo do infortúnio. É provável que nem tivessem mostrado

interesse em saber como elas estavam ou se precisavam de alguma

coisa, pelo menos a narrativa não mostra nada em contrário. Noemi

não tinha forças para ter esperança. Foi Rute quem teve esperança

pelas duas. Sua esperança foi forte o suficiente para mudar o rumo da

situação. (MARIANNO, 2010, p. 120)

 

 

Uma fé cambaleante, quase desamparada, mas ainda viva:

 

 

Noemi determinou: Rute armaria uma cena comprometedora, cena

que pressionaria Booz a tomar uma atitude. Mas Rute tinha tudo a

perder com essa ideia maluca que Noemi confabulava. Há indícios no

texto hebraico de que embora Noemi tenha recomendado que Rute

se deitasse junto de Booz durante a festa da colheita para que ele se

flagrasse comprometido com a cena, Rute não apenas descobriu os

pés de Booz, mas se desnudou aos seus pés. Se alguém surpreendes-

se os dois nessa cena, a boa reputação de Rute estaria destruída. O

plano de Noemi era muito ousado, mas Rute tinha muito a perder se

algo saísse errado.

Não queremos discutir se a solução planejada por Noemi era correta

ou ética nem se pode usar o texto bíblico como pretexto para repro-

duzir essa empreitada. O que nos chama a atenção aqui é que, para

sobreviver em tempos de fome, a viúva mais velha colocou a serviço

das duas a sua experiência de mulher vivida, de ler o caráter das pes-

soas com os olhos que o tempo lhe permitia ter. Noemi estava em

busca de justiça e se lembrou de que entre seus ancestrais houve um

caso de um sogro que largou sua nora no esquecimento e a nora teve

que usar artifícios comprometedores para fazê-lo cumprir com suas

obrigações sociais (Gn 38). Quando a crise de autocompaixão parou

de dominar Noemi, ela começou a usar sua experiência em prol das

duas viúvas. (MARIANNO, 2010, p. 122)

 

 

Agora, retomemos este olhar feminino, mas com o foco sobre a espiritualidade de Rute:

 

 

Rute renunciou muita coisa: seu rumo (“aonde fores”), sua casa e seu

repouso (“onde repousares”), sua nacionalidade (“teu povo”), sua di-

vindade (“teu Deus”) e sua sepultura (“onde morreres”)! Na antiguida-

de, as pessoas poderiam ser deserdadas simplesmente por mudar

de cidade, mas Rute estava disposta a mudar de país. Essa era uma

renúncia radical. Ser sepultado junto dos familiares era como ser reu-

nido a seu povo ou descansar com seus pais (cf. Gn 25,8 e 1 Rs 2,10).

Com esse gesto ela escolheu ser banida de sua família, dando-lhe as

costas. O grau de renúncia de Rute foi, no mínimo, espantoso. Com-

prometeu-se com a sogra, uma velha viúva que nada tinha a oferecer

a não ser mais fome, menos terra, nenhum marido e menos família.

Decisões difíceis de tomar nos confrontam a galope em momentos de

crise e parecem secar nossas poucas esperanças no futuro. Quantos

de nós já não tivemos alguém doente na família que dependesse de

nosso amparo total? Ou por qualquer motivo tivemos que tomar deci-

sões radicais, como recomeçar a vida numa terra distante? (MARIAN-

NO, 2010, p. 118-19)

 

 

A espiritualidade demanda renúncia e sacrifício por amor ao próximo, mas sem jamais sacri-

ficar o amor a si mesmo e sem renunciar à vida cotidiana como o palco da experiência de Deus:

 

 

Rute, a amiga, percebeu que algo teria que ser feito. Elas não podiam

ficar à mercê das línguas impiedosas da aldeia de Belém, que acaba-

riam transformando aquele regresso num verdadeiro pesadelo. Rute

tomou, então, uma segunda decisão: seria o braço forte para Noemi.

Além de tudo, trabalhar é sempre um remédio melhor do que ficar

prostrado. “Vou catar espigas, somos pobres e eu sou estrangeira,

é nosso direito!” Respigar nos campos era direito de Noemi por ser

pobre, mas duplo para Rute, pois era pobre e estrangeira (Lv 19,9ss

e23,22). Ela não ficou esperando a solução cair do céu. Com esperan-

ça e com a bênção de sua sogra, partiu para a ação (2,2) (MARIANNO,

2010, p.119-20).

 

 

Deixo de tratar da espiritualidade das demais personagens do livro. Fica o convite para

que você faça esta análise. Podemos encerrar esta seção com uma reflexão crítico-teológi-

ca sobre a espiritualidade (experiência de Deus) no livrinho de Rute. Destaco a visão mais

integral de espiritualidade que perpassa a citação, iniciando com a corporeidade e abran-

gendo a pessoa como um todo em todas as suas relações:

 

 

O objetivo hermenêutico deste ensaio é fazer uma leitura feminista do

texto a partir das teorias de gênero, classe, etnia e cultura, corno ferra-

mentas que permitem a reconstrução histórica a partir dos oprimidos

na história. Para isto é preciso levar em conta algumas categorias de

análise: o corpo que tem sido o espaço maior de opressão e apropria-

ção da mulher – violação, agressão, negação, abuso, manipulação. A relação Rute-Boaz é mediada pelo corpo; o cotidiano, ou seja, o que

parte das pessoas com sua subjetividade, realidade, história, cultura,

particularidade. Trata-se de toda a vida e experiência das pessoas. O

texto de Rute apresenta o cotidiano feminino, sua transparente ami-

zade, beleza e corporeidade, o que permite a realização do seu obje-

tivo; gênero, classe e etnia. Parte de um grupo econômico étnica e

socialmente definido. Rute é mulher, representa os pobres da terra, é

estrangeira, viúva, ou seja, faz parte dos discriminados e empobreci-

dos. (LÓPEZ, 1995, p. 6).

 

 

ANOTAÇÕES:

Os cidadãos precisam das virtudes cívicas para que a vida na pólis possa a florescer. – MODULO 4 – UA4. PAG 163.

 

 

SOBRE O CONSERVADORISMO

… o cristianismo histórico, seja ele protestante, católico roma-

no ou ortodoxo, entende que o alcance desta tradição é rigoro-

samente delimitado e não pode incluir todos os elementos da

cultura geral transmitida pelas gerações passadas. A Grande

Tradição inclui pelo menos a Escritura, doutrinas como as da

Trindade, da encarnação e da ressurreição de Cristo, o Credo dos apóstolos e o Cre-

do de Niceia-Constantinopla e talvez, até as liturgias históricas da igreja, os escritos

patrísticos e assim por diante. Não inclui a crença na democracia ou na monarquia

como forma de governo preconizada pela Bíblia, ou no capitalismo ou socialismo

como o sistema econômico bíblico por excelência. De alguma forma, porém, a maio-

ria dos cristãos corretamente entende que o cristianismo bíblico tem a ver com todas

as áreas da vida, entre as quais a política e a economia. Além disso, devido ao papel

histórico desempenhado pelo cristianismo no desenvolvimento da nossa cultura, é

razoável supor que os sistemas políticos e econômicos já levem em si a marca da

influência cristã que contribuiu para o seu crescimento. Na pior das hipóteses, esse

conservadorismo cristão pode degenerar numa forma irracional de nacionalismo “por

Deus e pela pátria”, incapaz de diferenciar a Grande Tradição das demais tradições.

Em sua melhor forma, ele sabe distinguir corretamente quais das nossas tradições

concordam com a Tradição por excelência, e busca preservá-las e levá-las adiante

(KOYZIS, D. T. 2014, p.109-110)

 

A síndrome eleitoral e os cristãos

Cristãos e líderes religiosos estão entre os mais afetados pela síndrome eleitoral. Em

períodos eleitorais milhares de vídeos circulam na internet com falas de líderes religiosos di-

zendo: “olha… fiquei calado até agora, mas diante da grande ameaça decidi falar…”. Não será

difícil encontrar os cinco itens da síndrome eleitoral nessas falas: identificação do grande

inimigo, grande conspiração, passado idealizado, salvador da pátria e retórica do caos. Isso

aplica-se àqueles que estão à direita, à esquerda e no centro das opções políticas.

 

Filhos de Issacar, filhos da luz

…Eram pessoas que iam além da psico-

logia das massas e da síndrome eleitoral. Eles estudavam a história, checavam as informa-

ções, avaliavam as consequências das escolhas. Eles ouviam a razão e ouviam a voz de

Deus, eles liam os fatos da história e buscavam a vontade de Deus. A igreja cristã deveria

agir como a tribo de Issacar em cada país. A tribo de Issacar não era a mais numerosa, não

empunhava lanças, nem tocava tambores, mas ela tinha o discernimento espiritual dos

desafios de cada época histórica. Eles sabiam quais as batalhas que deviam ser lutadas

e quais não valiam a pena…

 

Michael Horton prossegue, a meu ver profeticamente, dizendo:

Vamos encarar os fatos. Liberais e conservadores, católicos e pro-

testantes, cortejaram o poder político e alegremente se permitiram

ser usados por ele. Isto sempre acontece quando a igreja confunde o

reino de Cristo com os reinos da presente época. Jesus não veio para

impulsionar a teocracia em Israel, muito menos para ser o pai funda-

dor de qualquer outra nação. A única nação cristã no mundo hoje é

aquela reunida “de toda tribo e língua e povo e nação” (Ap 5:9) diante

do seu rei, Jesus. Em sua Grande Comissão, Jesus deu autoridade à

igreja para fazer discípulos, não eleitores desse ou daquele partido;

para proclamar o evangelho, não opiniões políticas; para batizar pes-

soas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, não em nome da

direita ou da esquerda; e ensinar tudo o que ele ensinou, não nossas

prioridades pessoais e políticas. E ele prometeu que sua presença

conosco é algo que o mundo nunca pode tirar. (Michael Horton fez

uma afirmação que merece ser ouvida em nossa síndrome eleitoral:

“Jesus não é um mascote para um reduto eleitoral, mas o salvador do

mundo.” (https://www.ultimato.com.br/conteudo/os-evangelicos-es-

tao-com-medo-o-que-eles-temem-perder)

 

BOX PARA PENSAR

Nosso hábito como cristãos é de lamentar os padrões deprava-

dos do mundo com um ar de desânimo um tanto farisaico. Cri-

ticamos sua violência, sua desonestidade, sua imoralidade sua

negligência com a vida humana e sua ganância materialista.

“O mundo vai de mal a pior” – dizemos encolhendo os ombros.

Mas de quem é a culpa? Deixe-me explicar de outra forma. Se a casa estiver escura ao

anoitecer, não faz sentido culpar a casa, pois é isso que acontece quando o sol se põe.

A pergunta a ser feita é: “Onde está a luz?”. Da mesma forma, se a carne estragar e for

impossível comê-la, não faz sentido culpar a carne, pois isso é o que acontece quando

as bactérias são deixadas ao léu para reproduzirem-se. A pergunta é: “Onde está o

sal?”. Assim também, se a sociedade se deteriora e seu padrões declinam ao ponto

de ela se tornar como uma noite escura ou como um peixe fedorento, não faz sentido acusar a sociedade, pois isso é o que acontece quando homens e mulheres decaídos

são deixados à sua própria sorte e o egoísmo humano não é contido. As perguntas a

serem feitas são: “Onde está a Igreja?” Por que a luz e o sal de Jesus Cristo não estão

permeando e mudando a nossa sociedade?”. É uma hipocrisia total de nossa parte de-

monstrar surpresa, indiferença ou apreensão diante desse contexto. O Senhor Jesus

nos disse para sermos sal e a luz do mundo. Se a escuridão e a podridão abundam,

grande parte da culpa é nossa e devemos aceitá-la. (STOTT, J. 2014, p. 89)

 

 

O conceito do reconhecimento tem sido muito importante na filosofia social das quatro

últimas décadas, porque ele possibilita uma visão geral da vida social que não privilegia um

aspecto específico da sociedade, seja o aspecto econômico, seja o político, seja o simbólico.

 

esse contexto de rápidas transformações, uma perspectiva teórica tem logrado gal-

vanizar a atenção de pesquisadores de diversas áreas como uma opção promissora

para a autocompreensão de aspectos importantes da nossa situação atual. No centro

mesmo dessa perspectiva teórica encontramos a proposição da categoria do reconhe-

cimento social como uma noção fundamental para uma reflexão das novas contradi-

ções do momento em que vivemos. (SOUZA, 2000, p. 133)

 

Na vida social (seja no âmbito da família, do bairro, da empresa, ou da sociedade como

um todo), o autorreconhecimento é um processo que dura toda a vida da pessoa e engloba

o reconhecimento da: identidade própria, dos direitos como pessoa e cidadã, da responsa-

bilidade, da memória, do prometer e do dar, das capacidades de ação, trabalho e produção

de significado, da capacidade de construir e narrar a própria identidade diante dos outros

socialmente significativos.

 

Vejamos como João Calvino, por exem-

plo, apresenta essa dimensão do reconhecimento, tema que ele trata bem no início de sua

obra clássica:

Assim, do sentimento de ignorância, vaidade, indigência, enfermidade, enfim, de depra-

vação e da própria corrupção, reconhecemos que não está em outro lugar, senão em

Deus, a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a perfeita confluência de todos os

bens, a pureza da justiça, a tal ponto que somos estimulados por nossos males a consi-

derar os bens divinos. E não podemos aspirar seriamente a isso antes que comecemos

a nos desagradar de nós mesmos. Com efeito, que homem não descansa satisfeito

em si mesmo? Quem não repousa enquanto é desconhecido para si, isto é, enquanto

contente com seus dons e ignorante ou esquecido de sua miséria? Por isso, o reconhe-

cimento de si não apenas instiga qualquer um a buscar a Deus, mas ainda como que o

conduz pela mão para reencontrá-lo. (CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã.

São Paulo: Unesp, 2007, 1.1.1, p. 37)

 

  1. Consta, pelo contrário, que o homem jamais chega a um conheci-

mento puro de si sem que, antes, contemple a face de Deus, e, des-

sa visão, desça para a inspeção de si mesmo. Assim é que, sendo a

soberba inata a todos nós, sempre nos vemos como justos, íntegros,

sábios e santos, salvo se, por argumentos evidentes, sejamos conven-

cidos de nossa injustiça, imundície, estupidez e impureza. Contudo,

não somos convencidos disso se voltarmos os olhos exclusivamente

para nós mesmos e não também para Deus, que é a única regra da

qual se deve exigir tal juízo. (CALVINO, op. cit., 1.1.2, p. 38)

 

Axel Honneth, um dos principais estudiosos do tema do reconhecimento, fala em três

dimensões da luta pelo reconhecimento, que apresento a seguir. A primeira dimensão do con-

ceito, em Honneth, envolve implicitamente o autorreconhecimento. Deste modo, podemos

falar em quatro dimensões do reconhecimento, começando com o autorreconhecimento e

englobando as três dimensões do conceito em Honneth (que segue Hegel neste ponto).

 

[essa relação] é uma realidade que abre novas possibilidades. “A pessoa justa viverá

pela fé” (Rm 1,17; Hc 2,4). E vida verdadeira sempre significa uma vida vivida em meio

a possibilidades genuínas. […] A justificação da pessoa ímpia, que é a verdade que nos

liberta, fala negativamente a respeito das mentiras fatais que podem muito bem apa-

recer como ofertas de sentido. Uma vida vivida com base na justiça de Deus será uma

vida vivida na liberdade em relação à existência vergonhosa na qual pecadores estão en-

redados e na qual podem ser destruídos. (JÜNGEL, Eberhard. Justification. The heart

of the Christian faith. A Theological Study with an Ecumenical Purpose. Edimburgo: T

& T Clark, 2001, p. 261.265)

 

Dentre as novas possibilidades de viver abertas pela justificação, reconhecer o outro

é central. O termo teológico usado em o Novo Testamento, neste sentido, é amar. O amor

é o eixo da santificação da pessoa justificada e reconciliada, conforme, por exemplo, nos

ensina o apóstolo Paulo:

13 Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para

dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. 14 Porque toda a lei se

cumpre em um só preceito, a saber:“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. 15 Se vós,

porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente destruídos.

16 Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. (Gl 5,13-

16). Amar ao próximo como a mim mesmo – eis a descrição teológica do reconhecimento

mútuo. E este reconhecimento (epistêmico) de que somente mediante o amor é possível

o pleno reconhecimento mútuo, destaca os limites de toda ação humana (sem Deus) de

busca de reconhecimento e construção de sociedades justas.

 

João Leonel, pesquisador

presbiteriano da Universidade Mackenzie tem se dedicado a este tipo de pesquisa. Segun-

do ele, ao lermos literariamente um texto bíblico:

devemos nos perguntar: Quem conta a história? Ou seja, quem é o narrador? Como ele

narra? Quais são os personagens? Quem ou quais são os personagens centrais? Quais

os secundários? Como eles contribuem para que a história progrida? Quais sãos os ce-

nários? Onde o enredo se desenvolve? Há mudança de cenários? Isso é relevante? Em

que período a história é situada? Isso é importante? Há mudança de tempo? Por fim,

como o enredo é construído a partir dos componentes citados anteriormente?

(http://bibliasobtresolhares.blogspot.com.br/2011_02_06_archive.html)

 

Rute é mulher, representa os pobres da terra, é

estrangeira, viúva, ou seja, faz parte dos discriminados e empobreci-

dos. (LÓPEZ, 1995, p. 6).